Na última semana foi realizado um seminário de "diagnóstico do contencioso tributário administrativo", como resultado de esforço conjunto da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) [1].
Além de apresentar um diagnóstico, com dados sobre o contencioso administrativo tributário, o estudo ainda propõe recomendações, algumas já bem conhecidas e exploradas (como a necessidade de prevenção da litigiosidade, de harmonização jurisprudencial e de adoção de ferramentas de solução de demandas repetitivas), outras conhecidas, mas pouco exploradas (como o melhor aproveitamento do conteúdo do processo administrativo em juízo e a adoção de mecanismos alternativos de solução de controvérsias), e até questões relativamente desconhecidas (como a grande participação percentual de tributos com baixo impacto arrecadatório nos contenciosos, a exemplo do IRPF).
Como o documento constitui um "diagnóstico", e não um "plano de ação", as recomendações são fundadas em leitura preliminar dos dados, a demandar validação e complemento/aperfeiçoamento. Nesse sentido, durante o próprio evento não foram poucas as opiniões dos expositores no sentido de relativizar ou até contrapor recomendações presentes (ainda que de forma não conclusiva) no relatório, como a referente à redução do número de instâncias de julgamento, e a relativa à necessidade de análise da gratuidade do processo administrativo e avaliação quanto à factibilidade e pertinência de criação de uma Lei de Custas Processuais para a esfera administrativa, assim como a criação da obrigatoriedade de depósito para a interposição de recursos administrativos.
O relatório, focado no contencioso administrativo tributário, representa relevante iniciativa para enfrentar um grave problema que assola o Brasil: o alto volume de litigância tributária, principalmente na via administrativa. O estudo informa que em 2018 estatísticas confiáveis já apontavam para um contencioso tributário federal (administrativo e judicial) que ultrapassava o patamar de R$ 3,4 trilhões, correspondente a 50,4% do PIB nacional, remetendo a trabalho patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) [2].
Isolando-se o contencioso tributário administrativo na esfera federal, chegava-se, em 2018, a 16,4% do PIB, ante 0,28% e 0,19% de mediana nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) [3].
De lá para cá, o acervo do Carf reduziu de 120 mil para 90.200 processos [4], resultado que é fruto de algumas medidas eficazes no âmbito do tribunal administrativo, como a adoção de súmulas e o julgamento em lote de demandas repetitivas. Entretanto, persiste como fator de preocupação não só o elevado acervo, em termos numéricos e de valor, mas as razões da alta litigância. Como aponta Sandro de Vargas Serpa, a decisão do contribuinte de recorrer no âmbito do processo administrativo fiscal leva em consideração, além da probabilidade de êxito na demanda, o valor da causa e o custo baixíssimo de continuar litigando [5], fatores aos quais agregamos a possibilidade de reiniciar/duplicar o contencioso, a qualquer tempo, em juízo [6].
Até aqui o leitor deve estar se perguntando: onde está a temática aduaneira nesse contexto? Afinal de contas, nesta coluna estamos em "território aduaneiro". E no recente relatório, tratado no evento da última semana, sequer aparece a palavra "aduana" [7].
No Brasil, existem, hoje, basicamente, três tipos de penalidades aduaneiras, sujeitas a contenciosos administrativos distintos: (1) as pecuniárias-multas (que, ao lado das exigências de tributos e direitos, aduaneiros ou não, são sujeitas ao contencioso administrativo tributário, previsto no Decreto 70.235/1972); (2) as relativas a perdimento (em regra, sujeitas ao contencioso previsto no Decreto-Lei 1.455/1976); e (3) as denominadas de "sanções administrativas" (advertência, suspensão e cassação de registro, sujeitas, em geral, ao rito processual previsto no art. 76 da Lei 10.833/2003) [8].
E essas três espécies de contencioso são reguladas ainda por relevantes tratados internacionais aduaneiros recentemente ratificados pelo Brasil: o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC), promulgado pelo Decreto 9.326/2018, e a Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), promulgada pelo Decreto 10.276/2020.
Quando se fala em contencioso administrativo tributário, está-se abrangendo somente o que designamos aqui como primeiro grupo (penalidades pecuniárias-multas e tributos/direitos). O Decreto 70.235/1972 rege, como destaca sua ementa, o "processo administrativo fiscal", entendido no artigo 1º como o "processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União". É exatamente esse o contencioso submetido ao Carf, relativo a exigências pecuniárias (tributos, direitos e multas expressos em moeda) efetuadas pela RFB, e não a perdimento ou a "sanções administrativas".
Aliás, o Carf assume que sua tarefa-mor é a apreciação de contencioso administrativo tributário, como encomendou o Decreto 70.235/1972, na própria missão institucional do órgão, presente em seu mapa estratégico: "assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução de litígios tributários", abrangidos nessa categoria os lançamentos pecuniários, ainda que relativos a temas aduaneiros.
Tanto a CQR/OMA (capítulo 10 do Anexo Geral) quanto o AFC/OMC (Artigo 4) disciplinam o contencioso que verse sobre matéria aduaneira (esteja ela ou não na zona de intersecção com o Direito Tributário), além de estabelecerem disposições aplicáveis a processos de consulta (resoluções antecipadas) e a imposição de penalidades, sendo integralmente aplicáveis aos contenciosos administrativos aduaneiros previstos no artigo 27 do Decreto-Lei 1.455/1976 (perdimento) e no artigo 76 da 10.833/2003 ("sanções administrativas"), e parcialmente aplicáveis ao contencioso administrativo tributário, regido pelo Decreto 70.235/1972 (apenas em relação a tributos e direitos aduaneiros, e a multas aduaneiras).
Há, assim, duas categorias de processo administrativo tributário: uma afetada pela CQR/OMA e pelo AFC/OMC (por exemplo, processos referentes a exigência de imposto de importação e de IPI-importação, acrescidos de multa), e outra alheia a tais tratados (v.g., processos que tratam de exigência de CSLL, ou de multa por não recolhimento de estimativas-IRPJ).
É preciso reconhecer, no entanto, que seria proveitoso mesmo ao contencioso administrativo tributário relativo a matérias sem contato com a área aduaneira beber na fonte da disciplina internacional aduaneira, a título uniformizador e sistematizador, visto que as normas expressas na CQR/OMA e no AFC/OMC representam melhores práticas, internacionalmente consagradas, em matéria de contencioso administrativo.
Portanto, ao se pensar em aprimoramento do contencioso tributário administrativo, e do próprio contencioso administrativo (esse parece ser o propósito da recente criação de comissão de juristas pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e do STF, Luiz Fux) [9], deve-se ter em conta que há uma zona de intersecção entre temas aduaneiros e tributários no que se refere a pecúnia (tributos/direitos e multas). E mais, que tal zona de intersecção está sujeita a obrigações previstas na CQR/OMA e no AFC/OMC, que não vinculam necessariamente os demais tributos que são objeto de contencioso no Carf, embora possam atuar em relação a eles como soft law.
Afora isso, não convém estabelecer que os demais contenciosos aduaneiros estariam sujeitos a um rito geral de processo administrativo (a exemplo do previsto, hoje, na Lei 9.784/1999), tendo em vista que tais contenciosos administrativos aduaneiros (perdimento e "sanções administrativas") estariam regidos também por tratados internacionais específicos (CQR/OMA e AFC/OMC), além de outras disposições acordadas no âmbito multilateral (por exemplo, na OMC), regional (v.g., no Mercosul) e bilateral.
Tudo aponta para a necessidade de que sejam tomadas em conta (dentro e/ou fora da estrutura do Carf, ou do "contencioso administrativo tributário") as peculiaridades aduaneiras, a necessidade de especialização de turmas de julgamento de tal área [10], e a disciplina normativa específica aduaneira, predominantemente internacional, mormente sobre temas que não possuem relação com o Direito Tributário (como licenças de importação, defesa comercial, barreiras técnicas, proibições e restrições, e facilitação do comércio), ainda que afetem o quantum de tributos a recolher como consequência (v.g., no caso de classificação de mercadorias, valoração aduaneira e regras de origem). Há experiências de cortes administrativas com turmas especializadas em temas aduaneiros na América Latina, como se destaca em estudo no âmbito do Ciat [11], cabendo mencionar, a título ilustrativo, os Tribunais Tributários e Aduaneiros do Chile, e as salas especializadas aduaneiras dos Tribunais Fiscais da Argentina, do México e do Peru. Mesmo no Brasil, já tivemos a experiência de um "Conselho Superior de Tarifa", corte superior administrativa especializada aduaneira [12].
A área aduaneira pode contribuir significativamente ao contencioso administrativo tributário, com base na experiência multilateral com normas vinculantes. E do rico universo de benchmarking aduaneiro surgem tendências que podem reduzir o contencioso tributário, como os programas de conformidade, a exemplo do Operador Econômico Autorizado (OEA), existente desde o século passado, presente tanto na CQR/OMA quanto no AFC/OMC, e que certamente inspirou o recente "Confia" tributário brasileiro [13].
Como expusemos nas "previsões" aduaneiras (e futebolísticas) para 2022 [14], as normas da CQR/OMA, salvo em caso de solicitação de prorrogação, deverão ser aplicadas pelo Brasil em 5/12/2022. Esse é exatamente o dia em que o Brasil, que será o primeiro colocado do Grupo "G" da Copa do Mundo, enfrentará e vencerá o segundo colocado do Grupo "H" (ainda nublado na "bola de cristal").
Nesse cenário, devemos aprimorar o contencioso administrativo tributário com racionalidade, sem descuidar das melhores práticas internacionais, deixando a paixão para o campo futebolístico. É o que busca incentivar o presente texto.
[1] O vídeo da íntegra do evento está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lfQLoVaWcx8. Pode-se ainda ter acesso ao sumário executivo e ao relatório completo em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/diagnostico-do-contencioso-tributario-administrativo.
[2] O resultado geral do estudo foi publicado e comentado na Revista ETCO (São Paulo, n. 25, ano 17, ago. 2020, disponível em: https://www.etco.org.br/wp-content/uploads/WEB_Revista-ETCO_Agosto-2020_02.pdf). Em relatório do Insper, também relativo a 2018, indica-se que se fossem somados os contenciosos tributários estaduais e municipais, chegava-se a 73% do PIB (https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Contencioso_tributario_Relatorio2019_092020_v2.pdf).
[3] Estudo de Lorraine Messias, Larissa Longo e Breno Vasconcelos, citado na mesma Revista ETCO (p. 75).
[4] Evolução do Acervo do CARF – por processos. Dados abertos/Carf – março de 2022. Disponível em: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202204-final.pdf.
[5] Uma análise econômica do contencioso tributário brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília (UnB), 2021, p. 810. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/42310/1/2021_SandrodeVargasSerpa.pdf.
[6] A ponto de existir estudo de 2011 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), voltado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Inter-relação entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa – Relatório Final – no qual são propostas interessantes medidas para a instância administrativa e para o processo judicial, objetivando suprimir duplicidades. O estudo está disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/141?mode=full.
[7] Uma das possíveis aparições da "aduana" foi ofuscada pela tradução, quando "Her Majesty's Revenue and Customs" constou no relatório como "administração tributária do Reino Unido".
[8] Não se ignora, aqui, que existem outros ritos, excepcionais, afora os três principais aqui relacionados. Para uma visão integral do universo infracional aduaneiro, ver: TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.
[9] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/02/23/criada-comissao-de-juristas-para-reformar-os-processos-administrativo-e-tributario.
[10] Sobre a jurisdição especializada em matéria aduaneira, ver: BASALDÚA, Ricardo Xavier. Importancia de la Jurisdicción Especializada en Materia Aduanera: Situación en Argentina. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo, Lex, 2015, p. 66-67.
[11] No site do Ciat (Centro Interamericano de Administrações Tributárias) pode ser encontrado estudo recente com 16 tribunais administrativos (entre os quais o Carf), vários deles com especialização em matéria aduaneira: Situación de los tribunales tributarios administrativos y judiciales de Iberoamérica en CIATData (2019/2020). Disponível em: https://www.ciat.org/tribunales-tributarios-de-iberoamerica/.
[12] No Decreto 24.036/1934 podem ser encontradas diversas curiosidades sobre o Conselho Superior de Tarifa, entre eles a competência para julgar não só classificação e valor, mas "contrabando e quaisquer outras decorrentes de leis ou regulamentos aduaneiros" (artigo 161); o impressionante prazo para analisar processos (artigo 169); e a competência consultiva / não contenciosa (artigo 171).
[13] Muitas questões do contencioso administrativo que hoje são debatidas de forma apaixonada, no Brasil, poderiam encontrar soluções ponderadas e consolidadas internacionalmente, em um bom estudo de benchmarking.