Ninho de vespeiros

Suprema Corte vai anular precedente que legalizou o aborto nos EUA há 49 anos

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3 de maio de 2022, 14h44

O vazamento da primeira versão do voto do ministro Samuel Alito, relator de um caso antiaborto do estado de Mississippi, indica que a Suprema Corte dos Estados Unidos vai anular o precedente estabelecido em Roe v. Wade, em 1973, que legalizou o aborto em todo o país até a "viabilidade do feto", que ocorre por volta da 23ª semana de gestação. A versão preliminar do voto foi divulgada nesta segunda-feira (2/5) à noite pela revista Politico.

Italy in US/Flickr
Vazamento de voto do ministro Samuel Alito indica mudança da corte sobre o aborto 

"Indica" porque a decisão final só será divulgada no decorrer de junho — e a possibilidade de algum ministro mudar seu voto existe. Mas isso não deverá ocorrer. Na conferência dos ministros para discutir o caso, em dezembro de 2021, cinco ministros conservadores anunciaram que vão votar a favor da revogação do precedente: Alito, Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney (os três últimos nomeados pelo ex-presidente Donald Trump).

Os votos dos três ministros liberais — Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan — ainda não são conhecidos, mas provavelmente serão a favor de manter o precedente. O voto do presidente da corte, ministro John Roberts, também não é conhecido. Sabe-se, no entanto, que ele tem um "problema" com revogação de precedentes.

Com a revogação de Roe v. Wade e também do subsequente precedente estabelecido em Planned Parenthood v. Casey, que reafirmou a legalização do aborto, o que fica no lugar? Em nível federal, nada. O voto do relator transfere para os estados a responsabilidade de legislar sobre o aborto em seus respectivos territórios.

"Está na hora de prestar atenção na Constituição e retornar a questão do aborto aos representantes eleitos pelo povo. A permissibilidade do aborto e as limitações impostas a ele devem ser resolvidas como as mais importantes questões em nossa democracia: pelos cidadãos tentando persuadir uns aos outros e então votando", escreveu Alito em seu voto inicial.

"O aborto apresenta uma profunda questão moral. A Constituição não proíbe os cidadãos de cada estado de regulamentar ou proibir o aborto. (Os precedentes) Roe e Casey usurparam essa autoridade. Agora, revogamos essas decisões e retornamos essa autoridade ao povo e a seus representantes eleitos", diz trecho da conclusão do voto do ministro.

E como vai ficar a legislação sobre o aborto nos EUA? Uma colcha de retalhos. Dos 50 estados, 15 têm leis que protegem o direito ao aborto (mais Washinton D.C.), 14 têm leis antiaborto (que foram aprovadas em antecipação à decisão da Suprema Corte), quatro têm leis antiaborto que não entraram em vigor, cinco têm leis antiaborto que serão promulgadas após a decisão oficial da corte e o restante não tem lei alguma, segundo um mapa do jornal Washington Post.

Entre as leis antiaborto, algumas vão bani-lo, simplesmente; outras vão criar restrições ou empecilhos. O Congresso Nacional poderia aprovar uma lei federal, mas isso não vai acontecer porque nem o Partido Republicano, nem o Partido Democrata, tem votos suficientes para aprovar um projeto de lei sobre o aborto no Senado.

Posicionamento da Suprema Corte
Em nota, a Suprema Corte dos EUA afirmou que os juízes "circulam rascunhos de opinião internamente rotineiramente", e que a prática é essencial para o trabalho deliberativo confidencial da Corte. "Embora o documento descrito na reportagem seja autêntico, ele não representa a decisão da Corte nem a posição final de qualquer membro sobre as questões analisadas".

O presidente, John Roberts, deu a seguinte declaração:

"Embora essa traição de confiança da Corte tenha tentado atacar a integridade das nossas operações, isso não vai acontecer. O trabalho da Corte não será afetado de forma alguma.
Nós na Suprema Corte somos abençoados por uma equipe de trabalho — tanto de empregados permanentes quanto de assistentes — intensamente leal à instituição e dedicada ao Estado de Direito. Empregados da Corte têm uma tradição exemplar e importante de respeitar a confidencialidade do processo judicial e garantir a confiabilidade da Corte. Esse ato foi um episódio singular e chocante de quebra de confiança, uma afronta à Corte e à comunidade de servidores públicos que trabalham aqui.
Eu ordenei ao delegado da Corte que abra uma investigação sobre a fonte do vazamento."

Outras justificativas de Alito
"Decidimos que (os precedentes) Roe e Casey devem ser revogados. A Constituição não faz referência a aborto e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer dispositivo constitucional, incluindo aquele em que os defensores de Roe e Casey se apoiam agora — a Cláusula do Devido Processo da 14ª Emenda. Aquele dispositivo tem servido para garantir alguns direitos que não são mencionados na Constituição, mas tais direitos devem ser profundamente enraizados na história e na tradição desta nação e implícitos no conceito da liberdade ordenada".

"(A decisão em) Roe v. Wade foi flagrantemente errada desde o início. Sua fundamentação foi excepcionalmente fraca e a decisão tem consequências danosas. Longe de trazer um entendimento nacional sobre a questão do aborto, (os precedentes) Roe e Casey inflamaram o debate e aprofundaram a divisão".

No entanto, em seu voto, que muda decisão do Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região a favor de manter os precedentes, Alito reconheceu, de certa forma, que a nova decisão vai inflamar o debate e aprofundar a divisão:

"Não podemos permitir que nossas decisões sejam afetadas por quaisquer influências externas, tais como a reação do público a nosso trabalho. Não pretendemos saber como nosso sistema político ou nossa sociedade irá responder à decisão de hoje, que revoga Roe e Casey. E, mesmo que pudéssemos prever o que vai acontecer, não temos autoridade para permitir que esse conhecimento influencie nossa decisão".

Alito sabe — e todos os ministros sabem — qual será a reação do público: céus virão abaixo.

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