Opinião

Excesso culposo na legítima defesa no Tribunal do Júri: quesitos e consequências

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3 de maio de 2022, 17h06

O presente artigo foi inspirado em casos práticos oriundos do Tribunal do Júri e, em caso mais recente, no júri da comarca de Praia Grande (SP), nos autos do processo nº 0001212-78.2015.8.26.0536.

Neste último, o Ministério Público denunciou o réu por homicídio qualificado por motivo fútil e emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima. A defesa, por sua vez, alegou a legítima defesa e o excesso culposo. O Ministério Público continuou afirmando que, ainda que houvesse legítima defesa, o excesso teria sido doloso em razão do número de facadas em região vital.

Ocorre que, o Conselho de Sentença acatou a tese defensiva de excesso culposo na legítima defesa, e a juíza presidente desclassificou o delito de homicídio doloso para culposo. Isto após a resposta ao quesito de absolvição (3º quesito).

Então remanesce as perguntas: qual a natureza jurídica do excesso culposo na legítima defesa? Quando ele deve ser quesitado? Após ou antes do 3º quesito absolutório? Quais as consequências jurídicas do reconhecimento do excesso culposo na legítima defesa?

Investigamos através da lei, da doutrina e da jurisprudência, as respostas para estas questões de suma importância na prática forense do Tribunal do júri. Senão vejamos.

Prefacialmente, faz-se necessária a distinção entre o erro culposo e o excesso culposo. Ambas as formas podem decorrer de um elemento culposo e podem ser utilizadas como teses em plenário do tribunal do júri a depender do caso.

Com efeito, o denominado erro culposo decorre de uma situação fática, equivale ao erro de tipo vencível ou a legítima defesa putativa; ou pode ocorrer o excesso culposo, este quanto aos limites de uma excludente de ilicitude, in casu, a legítima defesa, o qual tem como natureza jurídica de erro de proibição indireto como classificado na doutrina.

Quanto ao erro de tipo vencível ou a legítima defesa putativa (descriminante putativa), este se refere à situação fática, o agente supõe situação de fato que, se existisse, legitimaria sua ação. Por exemplo, um desafeto vem em direção do agente e saca uma caneta do bolso. Este, pensando que aquele puxaria uma arma, age  imaginando estar em legítima defesa e mata o suposto agressor, incidindo em erro de tipo.

Na lição de Rogério Greco (Código Penal comentado, pág. 63/64, 5ª edição, editora Impetus) sobre a descriminante putativa:

"Diz respeito à situação em que o agente, nos termos do §1º do art. 20 do Código Penal, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. (…) Diante dessa expressão, podemos fazer a seguinte ilação: somente quando o agente tiver uma falsa percepção da realidade no que diz respeito à situação de fato que o envolvia, levando-o a crer que poderia agir amparado por uma causa de exclusão da ilicitude, é que estaremos diante de um erro de tipo. Quando o erro cair sobre a existência ou mesmo sobre os limites de uma causa de justificação, o problema não se resolve com erro de tipo, mas, sim, como erro de proibição, previsto no artigo 21 do Código Penal".

Com efeito, neste caso o erro de tipo se invencível ocasionaria a absolvição como excludente da culpabilidade, conforme o artigo 20, §1º, 1ª parte, Código Penal. Outra possibilidade seria que o erro de tipo fosse vencível, admitindo-se a punição por culpa, caso haja previsão legal (artigo 20, §1º, 2ª parte, Código Penal). Aqui não teria problema de quesitação nas duas situações abarcadas, pois o quesito absolutório resolve a questão. 

É que com o advento da Lei nº 11.689/2008, houve a simplificação dos quesitos, incorporando a tese de legítima defesa putativa no quesito absolutório.

De fato, o que se avalia na hipótese do erro culposo do agente é se ele agiu em legítima defesa putativa ou não. A possibilidade de punição por culpa não desvirtua o elemento doloso do agente. Diz-se que é uma adoção do legislador de punibilidade por questão de política criminal apenas. Por isso não se trata de uma tese desclassificatória da defesa. Caso assim fosse, a defesa deveria demonstrar todos os elementos do crime culposo, o que não ocorre para a caracterização do erro culposo na legítima defesa putativa (descriminante putativa).

Seguindo esta linha, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul assim já decidiram:

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. JURI. AUSÊNCIA DE ELABORAÇÃO DE QUESITO ESPECÍFICO REFERENTE À LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA. DESNECESSIDADE. JULGAMENTO OCORRIDO APÓS AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.689/2008. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. ACLARATÓRIO DESACOLHIDO. 1. Explicitada a razão pela qual se entendeu que a tese da legítima defesa putativa, com o advento da Lei nº 11.689/08, foi incorporada ao quesito obrigatório da absolvição, prevista no artigo 483, inciso III e §2º, do Código de Processo Penal, não havendo, portanto, que se falar em nulidade pela ausência na sua quesitação, inexiste omissão a ser sanada. 2. Nos termos do artigo 571, inciso VIII, do Código de Processo Penal, as nulidades do julgamento em plenário devem ser arguidas logo após a sua ocorrência, sob pena de preclusão. 3. Embargos de declaração rejeitados.
(STJ  EDcl no AgRg no AREsp: 767879 PE 2015/0214009-6, relator: ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 07/12/2017, T5  QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/12/2017).
JÚRI. QUESITO SOBRE LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA. DESNECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DO JULGAMENTO. O apelante reclama a nulidade do julgamento, porque não se fez um quesito específico sobre a legitima defesa putativa. A jurisprudência desta Corte, como se verá nos exemplos que segue, entende que tal situação é desnecessária e, portanto, não há nulidade no julgamento, cujo quesito específico não é formulado: 'Com a alteração dada pela Lei 11.689/08, faz-se necessária apenas a elaboração de pergunta genérica, questionando se o jurado absolve o acusado ou não. Tal quesito engloba todas as teses de defesa, porventura alegadas em plenário, sendo desnecessário quesito específico sobre a tese de legítima defesa. Quando os jurados o negaram, consequentemente a tese defensiva de legítima defesa foi rejeitada, não sendo cabível quesito próprio, nos termos da nova lei processual'. DECISÃO: Apelo defensivo desprovido. Unânime. ( Apelação Crime Nº 70058270901, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 07/05/2014)
(TJ-RS  ACR: 70058270901 RS, relator: Sylvio Baptista Neto, Data de Julgamento: 07/05/2014, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 15/08/2014)".

Situação completamente diversa é o excesso culposo que pode ocorrer quanto aos limites de uma excludente de ilicitude. Esta tese é mais usual pela defesa no Tribunal do Júri. Por exemplo, o caso de Praia Grande o agente desferiu 14 facadas alegando estar em legítima defesa ou quanto ao número de disparos com arma de fogo. Alega-se, aqui, que o agente se excedeu culposamente, passou da linha, do limite quanto a utilização moderada dos meios, um dos requisitos da legítima defesa e, portanto, desdobramento desta.

In casu, não se trata de erro de tipo ou erro culposo quanto a uma situação de fato, mas um erro de proibição segundo a doutrina penal, posto que se refere aos limites da legítima defesa. Como leciona Cleber Masson, livro Direito Penal, 15ª edição, 2019, pág.703:

"(…) 'Atualmente, porém, o erro de proibição relaciona-se com a culpabilidade, podendo ou não excluí-la, se for escusável ou inescusável'.
(…) o erro de proibição indireto, também chamado de descriminante putativa por erro de proibição, o agente conhece o caráter ilícito do fato, mas, no caso concreto, acredita erroneamente estar presente uma causa de exclusão da ilicitude, ou se equivoca quanto aos limites de uma causa de exclusão da ilicitude efetivamente presente". 

De igual forma, o erro de proibição ele pode ser vencível ou invencível. Sendo invencível, exclui a culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. O quesito absolutório também resolve a questão neste ponto.

O problema reside quando o erro de proibição é vencível, o que normalmente é utilizado em plenário do júri pela defesa. Nesta situação ocorre uma causa de diminuição da pena sendo necessária a quesitação após o 3º quesito, na forma do artigo 483, inciso IV, do Código de Processo Penal.

Seguindo essa linha de entendimento, assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis:

"PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. LEGÍTIMA DEFESA. QUESITAÇÃO. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DESDOBRAMENTOS DA LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE QUESITAÇÃO. NULIDADE ABSOLUTA. SÚMULA 156/STF. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado que, na atual sistemática de quesitação dada pela Lei nº 11.689/08, todas as questões relativas às excludentes de ilicitude e de culpabilidade integram, necessariamente, o quesito da absolvição (HC 207.158/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/10/2011, DJe 13/10/2011), razão pela qual não há falar em nulidade no julgamento em que se inseriu quesito sobre a ocorrência de excesso culposo. 2. A Sexta Turma já se pronunciou no sentido de que A ausência de quesitação quanto aos desdobramentos da legítima defesa, nos termos da Súmula nº 156 do Supremo Tribunal Federal, constitui nulidade absoluta, a qual, como é consabido, não se convalida com o tempo, vale dizer, não está sujeita à preclusão (REsp 434.818/GO, relator ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 23/08/2010). 3. Agravo regimental improvido.
(STJ  AgInt no REsp: 1626186 RS 2016/0241563-2, relator: ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 15/05/2018, T6  SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/05/2018)".

Com efeito, destaque-se a questão dos desdobramentos da legítima defesa, posto que o excesso culposo ou erro de proibição está inserido, enquanto o erro culposo ou a descriminante putativa (erro de tipo) não. Este avalia a própria existência ou não da causa excludente, reforçando o argumento esposado acima.

Agora voltemos ao quesito do excesso culposo. No caso do júri da comarca de Praia Grande/SP, houve a desclassificação, quando o correto seria a incidência de uma causa de diminuição da pena.

Isto ocorre porque laboramos em erro ao acreditar que o excesso culposo quanto aos limites da causa de justificação, como o próprio nome diz, desclassificaria o delito, o que não é o caso. Comumente, em plenário, alega-se na defesa o artigo 23, parágrafo único, do Código Penal.

Aí seguimos essa linha de desdobramento e achamos que o crime é culposo. O que não é. Ocorre que, aqui, o código penal não fala que haverá desclassificação, apenas diz que o agente responderá pelo excesso, podendo ele decorrer por dolo ou culpa a depender do caso.

Analisando e investigando a natureza jurídica do erro de proibição vencível (excesso culposo quanto aos limites da legítima defesa/número de facadas/uso moderado dos meios), tem-se que se trata, na verdade, de uma causa de diminuição de pena imposta pelo legislador como medida de política criminal.

Desta forma, impera a inteligência do artigo 21, in fine, c/c artigo 23, parágrafo único, do Código Penal.

"Artigo 21  O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único  Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência
Artigo 23  Não há crime quando o agente pratica o fato:
(…)
Parágrafo único  O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo".

Repise-se, a consequência neste caso não é a punição pela modalidade culposa, mas configura uma causa de diminuição da pena como política criminal, não desnaturando a origem dolosa do ato. No caso em testilha houve error in judicando na sentença.

Neste entremear, o quesito, de fato, seria após o quesito absolutório (3º quesito). Mas, nota-se que, o Conselho de Sentença já rechaçou a tese desclassificatória e absolutória nos quesitos anteriores, não se tratando de desclassificação da conduta ou desnaturação do elemento doloso, mas sim como uma verdadeira causa de diminuição da pena como dito alhures.

Tanto é assim que a defesa não argumenta em nenhum dos requisitos da modalidade do tipo culposo. Deveras, sendo este o argumento defensivo, de desclassificação para crime culposo, o quesito, evidentemente, deve ser após o segundo que versa sobre a materialidade.

A esse respeito merece atenção a transcrição, na íntegra, do artigo 483 do Código Penal Brasileiro, a saber:

"Artigo 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I – a materialidade do fato;
II – a autoria ou participação;
III – se o acusado deve ser absolvido;
IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
§1º A resposta negativa, de mais de três jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado.
§2º Respondidos afirmativamente por mais de três jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:
O jurado absolve o acusado?
§3º Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre:
I – causa de diminuição de pena alegada pela defesa;
II – circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
§4º Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2o (segundo) ou 3o (terceiro) quesito, conforme o caso".

E quanto ao §4º, do artigo 483 do CPP? Que fala sobre o quesito de desclassificação posteriormente ao 3º quesito? É que neste caso, tem-se a previsão da participação dolosamente distinta, em concurso de agentes. Quando se alega que o coautor ou partícipe queria participar de delito menos grave, ainda que doloso. Como, por exemplo, uma lesão corporal dolosa. O que não é a hipótese do excesso culposo na legítima defesa quanto aos limites da causa de justificação, que é erro de proibição por natureza como dito acima.

Vê-se, assim, que não tem a possibilidade de se discutir a culpa depois do quesito absolutório no ordenamento processual penal pátrio. Seria uma teratologia. Isto porque, o Conselho de Sentença precisa primeiro confirmar, ratificar sua competência, para somente depois dizer se absolve ou não.

Esta posição do quesito é fundamental para que haja a confirmação da competência do Tribunal do Júri, sob pena de nulidade absoluta do julgamento. Isto porque, a Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXXVIII, prevê que ele é competente apenas para os crimes dolosos contra a vida. Ao Conselho de Sentença não seria dado decidir sobre a absolvição ou não sem antes decidir se o crime é doloso ou não. Seria ferir a Constituição Federal tal hipótese, pois o Júri absolveria, julgando, um possível crime não doloso. O que não encontra ressonância na legislação penal vigente.

À guisa de conclusão, o excesso culposo na legítima defesa como erro de proibição, como fora defendido em plenário no caso do júri de Praia Grande/SP, provocaria mudança da pena, mas não do crime em si, que continua a ser doloso, e o seu reconhecimento não decorre a desclassificação para delito culposo, mas uma causa de diminuição de pena. Isto decorre de uma opção, uma escolha, do legislador por questões de política criminal. O que possibilitaria, inclusive, a votação dos demais quesitos, haja vista não haver nenhuma contradição e mantida a soberania dos vereditos.

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