Contas à Vista

Emenda 119/2022 escancara falta de prioridade da educação

Autor

3 de maio de 2022, 8h00

Na última quarta-feira (27/4), o Congresso promulgou a Emenda Constitucional nº 119/2022 para anistiar prefeitos e governadores que deixaram de aplicar plena e adequadamente os recursos vinculados à educação nos anos de 2020 e 2021, supostamente por força das dificuldades trazidas pela pandemia da Covid-19.

Spacca
Tal anistia está condicionada à compensação, até o final de 2023, do déficit verificado nos últimos dois anos. Ocorre, contudo, que sequer foi resguardada a correspondente correção monetária, diante de uma inflação em aceleração, a qual pode implicar até 30% de defasagem no período de 2020 a 2023 dos valores que deixaram de ser tempestivamente aplicados na política pública educacional naqueles exercícios pandêmicos.

Segundo a calculadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (disponível aqui), o prejuízo já acumulado com a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a 15,12%, no período de dezembro de 2020 (quando se consumou o déficit do primeiro exercício regido pela EC 119/2022) até março de 2022 (último disponível na calculadora desse instituto).

A EC 119/2022, a bem da verdade, comporta-se como adiamento fiscalmente prejudicial da vinculação constitucional que ampara a educação, na medida em que empurra a perda inflacionária do período para a comunidade escolar. Na contramão da Emenda 108/2020, o acatamento do déficit de aplicação em manutenção e desenvolvimento do ensino durante os anos de 2020 e 2021 usou o pretexto da pandemia da Covid-19 para literalmente negar imediata aplicação a regras de combate a desvios históricos no setor trazidas pela Emenda do Fundeb permanente. Por exemplo, o cômputo de inativos em educação (§7º do artigo 212 da CF/1988) responde, sozinho, por mais de R$ 20 bilhões anualmente desviados do setor, conforme estudo de Fábio Araújo de Souza disponível aqui.

Resta, assim, escancarada a falta de prioridade real para a consecução da política pública educacional em nosso país. A pandemia apenas reforçou a constatação recorrente de que, em regra, os gestores municipais e estaduais priorizam o gasto em saúde e adiam o gasto educacional, mesmo havendo pisos constitucionais e demanda de alocação de recursos em ambos os setores. Daí se explica a grande preocupação que causa a proposta de unificação dos pisos, porque o prejuízo à educação tende a ser incomensurável, tal como bem evidencia o Texto para Discussão 2596, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Eis o contexto cínico e historicamente recalcitrante de baixa prioridade do gasto educacional em que emerge o artigo 119 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, trazido pela EC 119/2022:

"Em decorrência do estado de calamidade pública provocado pela pandemia da Covid-19, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os agentes públicos desses entes federados não poderão ser responsabilizados administrativa, civil ou criminalmente pelo descumprimento, exclusivamente nos exercícios financeiros de 2020 e 2021, do disposto no caput do art. 212 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Para efeitos do disposto no caput deste artigo, o ente deverá complementar na aplicação da manutenção e desenvolvimento do ensino, até o exercício financeiro de 2023, a diferença a menor entre o valor aplicado, conforme informação registrada no sistema integrado de planejamento e orçamento, e o valor mínimo exigível constitucionalmente para os exercícios de 2020 e 2021".

Com sinceridade e frieza analítica, devemos reconhecer o fato de que a maior finalidade da aludida emenda encontra-se no seu artigo 2º, de modo a impedir sanções pessoais ou institucionais em função do déficit em manutenção e desenvolvimento do ensino, conforme o seu teor:

"Artigo 2º — O disposto no caput do art. 119 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias impede a aplicação de quaisquer penalidades, sanções ou restrições aos entes subnacionais para fins cadastrais, de aprovação e de celebração de ajustes onerosos ou não, incluídas a contratação, a renovação ou a celebração de aditivos de quaisquer tipos, de ajustes e de convênios, entre outros, inclusive em relação à possibilidade de execução financeira desses ajustes e de recebimento de recursos do orçamento geral da União por meio de transferências voluntárias.
Parágrafo único. O disposto no caput do art. 119 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias também obsta a ocorrência dos efeitos do inciso III do caput do art. 35 da Constituição Federal".

Aludida anistia foi ostensivamente demandada pelas entidades associativas de gestores municipais (como se pode ler aqui). Ainda que os prefeitos tenham sido os que mais se expuseram politicamente em busca da aprovação da PEC 13/2021 (de cuja aprovação decorreu a EC 119/2022), é preciso também reconhecer que ela aproveitou a muitos governadores, sobretudo porque significou literalmente o adiamento da resolução de um grande impasse fiscal que acomete o financiamento da educação, qual seja, o cômputo de inativos como gasto falseado no setor.

A Emenda 119/2022 conferiu perdão universal, abstrato e retroativo a calotes educacionais, o que traz consigo o elevado risco moral de que, em futuros exercícios financeiros, novas PECs de teor semelhante venham a ser apresentadas no Congresso para negar cumprimento aos artigos 212 e 212-A da Constituição.

É falso o pretexto invocado durante a tramitação da PEC 13/2021 de que, durante a pandemia, os gastos educacionais restaram prejudicados pelo fechamento das escolas, porque, na verdade, deveriam ter sido expandidas as despesas com o ensino remoto e o aprimoramento da infraestrutura escolar. Em sua essência, a EC 119/2022 esconde um movimento opaco e ardiloso de desconstrução de parte dos avanços trazidos pela Emenda 108/2020, notadamente a exclusão dos inativos no cômputo do gasto em manutenção e desenvolvimento do ensino (cabe aqui repetirmos).

Ora, adiar nada mais é do que negar prioridade, na prática. Significa dizer: a Emenda 119 anistia toda sorte de estratégias contábil-financeiras de postergação da efetividade do arranjo estabelecido pela Emenda 108/2020 e, antes dela, pelas Emendas 14/1996 e 53/2006.

As consequências dos calotes educacionais estaduais e municipais são sentidas nas escolas e na precária capacidade de o país oferecer ensino público de qualidade aos seus cerca de 43 milhões de alunos matriculados na educação básica obrigatória. Segundo nota do gabinete do senador Flávio Arns — que foi o relator do PEC do Fundeb Permanente no Senado —, denominada "Por que somos contra diminuir investimentos educacionais durante a pandemia":

"(…) A PEC (13/2021) parte de uma premissa equivocada de que, durante a pandemia, os investimentos em educação devem ser minorados, porque as escolas permaneceram fechadas grande parte do tempo.
No entanto, o raciocínio deve ser o inverso: é justamente por causa desse contexto calamitoso que as necessidades educacionais aumentaram e precisam, portanto, de um cuidado especial, para permitir adaptação dos sistemas de educação à nova realidade de ensino remoto ou híbrido.

Não se pode admitir como razoável a redução generalizada de investimentos na educação púbica durante a pandemia. Primeiramente, há muitas necessidades represadas que precisam de imediata atenção, como, por exemplo, reforma e adaptação da infraestrutura das escolas. Em 2020, identificou-se que 4.325 escolas sequer possuem banheiro, 8.674 não têm água potável e 35.879 não possuem coleta de esgoto.
(…) Os alunos precisam de acesso a equipamentos eletrônicos e internet para lidar com esse novo contexto de ensino, mas, infelizmente, os dados revelam que cerca de 40% dos estudantes da rede pública não possuem computador ou tablet em casa e 4,1 milhões não possuem sequer acesso à internet.
(…) Somos contra qualquer retrocesso na educação, e não podemos concordar com a diminuição dos recursos educacionais justamente quando o Brasil precisa intensificar seu olhar sobre a educação, ou seja, no momento em que as crianças e jovens mais vulneráveis, que dependem de escola pública, estão mais precisando da atuação incisiva do Poder Público".

A Emenda 119/2022, nesse contexto, premia os descumpridores da prioridade constitucional fixada em prol da manutenção e do desenvolvimento do ensino, na forma dos artigos 212 e 212-A da CF/1988 e do artigo 60 do ADCT, os quais não passam de maus pagadores que, direta ou indiretamente, optaram pela ignorância da população, quiçá como projeto de perenização no poder.

O atraso educacional em nosso país tem raízes profundas nesses instrumentos de fraude contábil-financeira e de fuga à correspondente responsabilização. Não é à toa que a maioria da nossa população adulta com 25 anos ou mais de idade sequer havia terminado o ensino médio, ou seja, não havia concluído a educação básica obrigatória, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2018, divulgados em junho de 2019 pelo IBGE. Dito de forma ainda mais direta, somos majoritariamente um país semialfabetizado porque, entre outros motivos, alguns dos nossos governantes negam aplicação tempestiva e suficiente aos recursos vinculados à educação.

Somente sofremos tanto com a baixa qualidade da educação pública porque ela aproveita a alguns maus pagadores que se recusam inconstitucionalmente a cumprir o dever de custeio adequado do futuro do nosso país. Enfim, a ignorância é escolha política que passa pelo ciclo orçamentário e que literalmente impõe um atraso multissecular ao Brasil.

A Emenda 119/2022 escancara essa inversão de prioridades de modo doloroso e fiscalmente prejudicial à educação, adiando, sem correção monetária, o dever de aplicação de 2020 e 2021 até 2023, como se a política pública educacional e o desenvolvimento efetivo da nossa sociedade pudessem esperar…

P.S.: Nesta quarta-feira (4/5), será retomada a mesa de debates do Instituto de Direito Financeiro (IDFin) com a participação do professor José Roberto Afonso, para debatermos os 22 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Convido a todos os leitores desta coluna Contas à Vista a acompanhar nossas mesas, que ocorrerão na primeira quarta-feira de cada mês, das 17h às 18h30, clicando aqui.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!