Defesa da Concorrência

Da Resolução 2/2012 à Resolução 33/2022: estabilidade jurídica necessária

Autor

  • Ticiana Lima

    é doutora em Direito Econômico e Economia Política e mestre em Direito do Estado pela USP LL.M. pela Harvard University e sócia do escritório VMCA Advogados.

2 de maio de 2022, 8h10

Há algumas semanas o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a Resolução 33/2022, que consolida matérias de outros normativos relacionados a atos de concentração. A ausência de qualquer alteração no conteúdo da regulação editada é um fator digno de nota e de comemoração. Em um ambiente institucional cada vez mais acostumado a ataques às instituições e normas fundamentais da república, um pouco de segurança jurídica vem muito bem a calhar.

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As normas que foram consolidadas constituem a base do sistema de análise prévia de atos de concentração estabelecidos pela Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011). Notadamente, a Resolução 2/2012 e as resoluções que lhe fizeram alterações posteriores: Resolução 9/2014 e Resolução 16/2016. São esses os normativos que dão alguma concretude às previsões da Lei de Defesa da Concorrência que determinam a submissão obrigatória de atos de concentração ao Cade e proíbem sua implementação antes da aprovação do órgão de defesa da concorrência. Sem essa regulamentação, os agentes econômicos não teriam, por exemplo, orientações básicas sobre como calcular o faturamento do grupo econômicos para os fins de verificar o atingimento dos patamares legais a partir dos quais surge a obrigação de notificar. Também é ali que estão estabelecidos os critérios para submissão de aquisições de participação societária, para a notificação de operações realizadas em bolsa, sem falar no prazo de 30 dias que o Cade tem para análise de casos pelo rito sumário.

Esse tipo de regulação, para surtir o efeito pretendido de dar segurança e previsibilidade à condução dos negócios, precisa de alguma estabilidade para funcionar. Daí a importância de se comemorar a falta de alteração recente. É preciso ter cautela com movimentos revisionistas que a pretexto de melhorar as normas vigentes podem, na verdade, ter um grande impacto negativo no sistema de análise prévia de atos de concentração como um todo.

Discussões que por vezes surgem em torno da notificação de aquisições de participação acionária são um bom exemplo desse tipo de postura a ser evitada.

A Lei de Defesa da Concorrência estabelece em seu artigo 90 que aquisições de participações societárias se enquadram na definição de ato de concentração e, por isso, devem ser submetidas à aprovação prévia do Cade sempre que o critério de faturamento dos grupos econômicos envolvido for atingido. Essa disposição legal foi regulamentada pela Resolução 2/2012, agora revogada pela Resolução 33/2022, que estabelece critérios objetivos para a configuração dessa obrigação de notificar.

Assim, ficou estabelecido via regulação que a aquisição de participação societária de que trata o artigo 90 da Lei de Defesa da Concorrência será de notificação obrigatória apenas quanto atingir determinados patamares de participação no capital social. Mais especificamente, nos casos em que a empresa investida seja concorrente ou atue em mercado verticalmente relacionado ao do adquirente, a notificação passa a ser obrigatória apenas quando a aquisição conferir ao adquirente direta ou indireta de 5% ou mais do capital votante ou social ou cada incremento de 5% ou mais nas participações anteriormente detidas. Em se tratando de empresas que não sejam concorrentes nem atuem em mercado verticalmente relacionado, o patamar que estabelece a necessidade de notificação é de 20%.

As normas atualmente vigentes não deixam dúvidas, portanto, de que participações inferiores a 5% ou 20% (a depender do contexto) não são de notificação obrigatória ao Cade independentemente de uma análise do tipo de influência que conferem ao seu titular. As razões para o estabelecimento desses patamares objetivos como parâmetro para configuração da obrigação de notificar são óbvias e importantes.

A primeira foi impedir que toda e qualquer aquisição de participação societária, independentemente da quantidade adquirida, por ínfima que fosse, ensejasse a obrigação de notificar. A segunda foi evitar que o grau de influência conferido por dada participação fosse usado como parâmetro para a definição da obrigação de notificar, a exemplo do que acontecia no regime da lei anterior. No regime da Lei 8.884/1994, na ausência de critérios objetivos mais seguros, as noções de influência relevante e influência determinante eram o principal fator a embasar a necessidade ou não de notificação de aquisições de participação societária ao Cade. De um lado, na teoria, isso gerava bastante discussão em função da natureza aberta desses conceitos. De outro, na prática, restava muita dúvida sobre quando operações de aquisição de participação societária minoritária de fato deviam ser notificadas.

Não obstante esse fato, não raro surgem propostas para alterar a regulamentação nesse ponto com o objetivo declarado de garantir que a eventual possibilidade de exercício de influência determinante não fique fora do escrutínio do Cade. Os defensores dessa ideia ora argumentam que os critérios objetivos consolidados na Resolução 33/2022 devem ser passíveis de relativização no caso concreto, ora defendem que esses patamares precisam ser reduzidos. O problema é que ambos os caminhos tornam o filtro estabelecido via regulamentação menos eficaz do que é hoje em dia.

No primeiro caso, defende-se que sempre que se identifique a possibilidade de exercício de influência relevante com aquisições de participação em patamares inferiores a 5% ou 20%, a aquisição de participação societária deve ser notificada ao Cade. A notificação deve ser feita, portanto, mesmo que os patamares de participação no capital social estabelecidos via regulação não tenham sido atingidos.

O problema com esse tipo de proposta é que ela acaba com qualquer possibilidade de determinar objetivamente quando notificar operações de aquisições de participação societária. O conceito de influência relevante é aberto e adotá-lo como critério para estabelecer a obrigação de notificar significa, na prática, apenas trazer dúvidas sobre que operações devem ser notificadas ao Cade. Isso não quer dizer que o conceito de influência relevante deve ser ignorado pelo Cade. Esse conceito faz parte da análise de mérito que o órgão antitruste deve fazer das operações que são notificadas. Ele apenas não serve como parâmetro para definir quando existe a obrigação de notificar.

Já os defensores da necessidade de redução dos níveis de participação no capital social estabelecidos na regulamentação normalmente costumam levantar a bandeira da necessidade de atualizar a Resolução 33/2022 diante de alterações na legislação societária como justificativa para sua posição.

De fato, especificamente com relação às companhias abertas, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) reduziu as porcentagens mínimas de participação acionária necessárias ao exercício de alguns direitos políticos a até 1% do capital social em algumas situações. Ocorre que o sentido dessa modificação promovida pela CVM em sua regulamentação foi apenas tornar mais efetiva a proteção dos acionistas minoritários ao conferir a eles maior poder de fiscalização. Assim, as alterações dizem respeito a direitos que tendem a não ser relevantes da perspectiva do Cade, tais como a exibição de livros da companhia e propositura de ação de responsabilidade, por exemplo. Além disso, um filtro que estabelecesse patamares tão baixos quanto a aquisição de 1% das ações para a obrigação de notificação ao Cade estaria, na verdade, filtrando muito pouco.

De modo geral, nesse tipo de discussão, é sempre bom ter em mente que a regulamentação da notificação de atos de concentração necessariamente envolve um trade off entre a opção por critérios de notificação objetivos, capazes de dar maior segurança jurídica aos agentes econômicos, e critérios mais diretamente ligados à determinação do potencial de uma dada operação ter impactos anticompetitivos. Em um mundo ideal, é evidente que todos os órgãos antitruste do mundo gostariam de poder analisar apenas operações capazes de impactar negativamente a concorrência. O problema é que não existe uma maneira objetiva de determinar esse potencial antes da análise concorrencial propriamente dita.

Por isso, um bom sistema de análise prévia de atos de concentração é aquele que consegue eleger critérios objetivos aptos a filtrar pelo menos parte das operações que não tem potencial de ter impactos anticompetitivos. Invariavelmente, mesmo com a adoção de bons filtros, acaba-se analisando muitas operações que não tem nenhum potencial de impacto, mas um filtro eficiente é aquele capaz de eliminar a necessidade de análise de uma parte relevante das operações. Um bom filtro, portanto, é aquele capaz de evitar que o órgão antitruste fique sobrecarregado e se torne um gargalo para o fechamento de negócios importantes para a economia.

Considerando-se que as normas agora consolidadas na Resolução n° 33 tem feito esse papel muito bem, qualquer discussão sobre alteração, mesmo que a pretexto de uma suposta necessidade de atualização, precisa ser tomada com cautela. Melhor do que alterar normas vigentes que tem funcionado bem, seria direcionar os esforços e o debate para promover a regulamentação de temas ainda carentes de regras claras como, por exemplo, as operações de aquisições de ativos que ainda são permeadas por bastante insegurança jurídica.

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    é doutora em direito econômico e economia política e mestre em direito do Estado pela USP, LL.M. pela Harvard University e sócia de VMCA Advogados.

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