Opinião

Aspectos práticos da não incidência de IRPJ/CSLL sobre indébito tributário

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2 de maio de 2022, 19h32

Como sabemos, acompanhar a formação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF) é de suma importância para a aplicação do Direito Tributário pelos seus operadores, uma vez que a Suprema Corte se debruça com frequência sobre conceitos constitucionais que justificam ou a afastam a incidência de determinada tributação, à luz dos preceitos trazidos pela Constituição da República (CRFB/88).

São muitos os conflitos entre fisco e contribuinte que chegam ao STF, como se verifica, verbi gratia, na quantidade de temas de repercussão geral em matéria tributária naquela Corte [1].

No presente estudo, analisaremos a não incidência de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro sobre a Selic no recebimento de indébitos tributários, principalmente no que diz respeito à definição de acréscimo patrimonial para fins da incidência de tais tributos.

Em primeiro lugar, é importante recordar que o Código Tributário Nacional (CTN, Lei nº 5.172/66) assegura ao contribuinte a restituição do que pagou a maior ou indevidamente [2].

A legislação federal acerca do tema determina, ainda, que o indébito será devolvido ao sujeito passivo, acrescido de juros equivalentes à taxa Selic acumulada mensalmente, contada desde a época do recolhimento indevido e de 1% (um por cento), relativa ao mês que for efetuada  seja por restituição ou compensação [3].

O litígio se resume, aqui o fazemos de maneira absolutamente sintética, no seguinte: o ente tributante entende que tais juros seriam passíveis de tributação pelo IRPJ e CSLL, enquanto o contribuinte sustenta em juízo a inconstitucionalidade dessa tributação. Fato é que o caso concreto chegou à análise do STF, tendo como leading case o RE 1.063.187, objeto do tema de Repercussão Geral nº 962 [4] (TRG 962).

Tal paradigma foi julgado pelo plenário do STF em 27/09/2021, tendo sido fixada a tese de que "é inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário" [5].

Olhando o caso com cautela, a razão de decidir que levou à conclusão acima foi a definição de que os juros moratórios pagos ao contribuinte, em repetição de indébito, funcionam como indenização, isto é, visam a recompor efetivas perdas, não ensejando efetivo acréscimo patrimonial[6].

Entre os fundamentos utilizados pelos ministros encontra-se aquele segundo o qual o contribuinte teria incorrido em prejuízos ao ter originalmente seu caixa  reduzido de forma indevida, ainda que temporariamente, por meio do pagamento imerecido ao ente tributante.

Importante aqui destacar que não temos a intenção de exercer nenhum tipo de juízo de valor sobre a decisão em si, mas sim entender o julgado e tentar saltar alguns dos obstáculos para implementar tal direito adquirido à rotina de todos os contribuintes em situação afim.

O primeiro desafio é que, não obstante a fixação da tese em comento, a legislação tributária define que as variações monetárias do direito de crédito, ocorridas em razão de índice legal, são em conjunto consideradas receita financeira pela legislação do imposto de renda [7].

Este obstáculo, deveras, poderia ser superado por meio da leitura coesa do ordenamento jurídico: é possível interpretamos que tal dispositivo não tem efeitos sobre a Selic incidente sobre o indébito tributário, visto que tal fato estaria fora da hipótese de incidência do IRPJ e CSLL, uma vez que, de acordo com o STF, falta-lhe o elemento nuclear constitucional que permitiria a cobrança: o acréscimo patrimonial.

Aqui é importante recordar que o afastamento da incidência de IRPJ e CSLL sobre verbas indenizatórias não é novidade na Suprema Corte. Como recordado pelos próprios ministros, o tema nº 808 da Repercussão Geral já teria tese fixada no sentido de que "não incide imposto de renda sobre os juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função" [8].

Outra dificuldade a ser superada é o fato de que a contabilidade define receita como "aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio".

Por essa leitura, fica evidente que a contabilidade, tendo como fim informar ao mercado, registrará, a priori, a Selic como receita da entidade. O que aqui entendemos como sustentável, na medida em que o ativo da pessoa jurídica não teria como crescer, em reais, sem a correspondente contrapartida no resultado.

Bem sabemos que as Ciências Contábeis são responsáveis tão somente por refletir, mas não por definir o que é fato gerador dos tributos, função esta que cabe apenas à lei, em atendimento ao princípio da legalidade (esta, a lei, sempre deve ter baliza na estrita delegação constitucional).

Nessa senda, vale registrar que o STF já se manifestou expressamente no sentido de que, além de existir diferença entre o conceito jurídico e o conceito contábil, é possível extrair um conceito constitucional de receita, conforme excerto da ementa do acórdão proferido no RE n° 606.107/RS colacionada abaixo:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. HERMENÊUTICA. CONTRIBUIÇÃO AO PIS E COFINS. NÃO INCIDÊNCIA. TELEOLOGIA DA NORMA. EMPRESA EXPORTADORA. CRÉDITOS DE ICMS TRANSFERIDOS A TERCEIROS.

I – Esta Suprema Corte, nas inúmeras oportunidades em que debatida a questão da hermenêutica constitucional aplicada ao tema das imunidades, adotou a interpretação teleológica do instituto, a emprestar-lhe abrangência maior, com escopo de assegurar à norma supralegal máxima efetividade.

II – A interpretação dos conceitos utilizados pela Carta da República para outorgar competências impositivas (entre os quais se insere o conceito de 'receita' constante do seu artigo 195, I, 'b') não está sujeita, por óbvio, à prévia edição de lei. Tampouco está condicionada à lei a exegese dos dispositivos que estabelecem imunidades tributárias, como aqueles que fundamentaram o acórdão de origem (artigos 149, § 2º, I, e 155, § 2º, X, 'a', da CF). Em ambos os casos, trata-se de interpretação da Lei Maior voltada a desvelar o alcance de regras tipicamente constitucionais, com absoluta independência da atuação do legislador tributário.

(…)

V – O conceito de receita, acolhido pelo artigo 195, I, 'b', da Constituição Federal, não se confunde com o conceito contábil. Entendimento, aliás, expresso nas Leis 10.637/02 (artigo 1º) e Lei 10.833/03 (artigo 1º), que determinam a incidência da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins não cumulativas sobre o total das receitas, 'independentemente de sua denominação ou classificação contábil'. Ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições.

(…)

(RE n° 606.107/RS, relatora ministra Rosa Weber, j. 22/05/2013)".

Porém, a apuração do Imposto de Renda toma por base natural de diálogo a escrituração contábil e, como o acórdão proferido em controle difuso, como é o Recurso Extraordinário, não tem efeito vinculante perante o Poder Executivo, a Secretaria Especial da Receita Federal (SRF) segue emitindo normas complementares, exigindo os tributos.

Como exemplo, temos a Solução de Consulta Cosit n° 183/2021, segundo a qual o indébito fiscal e os juros de mora (como é entendida a Selic) sobre ele incidentes até a data do trânsito em julgado devem ser oferecidos à tributação do IRPJ no trânsito em julgado da sentença judicial que já define o valor a ser restituído.

Não sendo a sentença líquida, a SRF dispõe que o imposto deverá incidir no momento da primeira declaração de compensação, que deve ser naturalmente precedida de devida quantificação pelo contribuinte.

Pode-se entender que uma solução de consulta, com efeitos vinculantes como é o caso, se caracteriza como norma complementar nos termos no artigo 100, I, do CTN. Ademais, já que tem efeito vinculante para os auditores fiscais, fato é que o contribuinte que decide por não seguir a orientação do fisco está sujeito à autuação/não homologação, isto é, cobrança do fisco acrescido de multa punitiva fixada em 75%.

Tal risco, por sua vez, estaria ilidido a partir da publicação de Despacho da Procuradoria da Fazenda Nacional dispensando a contestação e recurso em casos correlatos, desde que o contribuinte tenha processo em curso com esse objeto.

Para os contribuintes que possuem ação ajuizada, o trânsito em julgado permite a compensação do tributo recolhido indevidamente (artigo 170-A, CTN) e garante, ainda, bloqueio de eventuais exações por parte da SRF.

Ultrapassado o óbice administrativo, entendemos que o cenário ideal seria a Administração Pública regulamentar a decisão, até mesmo para evitar dissonâncias operacionais, tal como ocorreu com a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e Cofins [9], ou até mesmo da decisão que julgou ilegal a restrição do conceito de insumo para a não cumulatividade dessas mesmas contribuições [10].

Restando silente o órgão público, entendemos que há, porém, conforto normativo suficiente para retirar tal receita do lucro tributável, uma vez que, nos termos do artigo 261, II, do Regulamento do Imposto de Renda (RIR, aprovado pelo Decreto nº 9.580/2018), para a apuração da base de cálculo do Imposto de Renda, poderão ser excluídos do lucro líquido os valores nele incluídos que não devam fazer parte do lucro real.

Tal refresco, porém, não está disponível a todos os contribuintes por ora. Poderão respirar aliviados no oásis apenas aqueles que possuem decisão judicial favorável definitiva, ao menos até que surjam vozes sugerindo ações rescisórias para aplicar modulação de efeitos a situações que deveriam estar já estabilizadas pelo trânsito em julgado. Sobre o tema, a percuciente análise de Sacha Calmon [11]:

"De sobredobro, no processo difuso, basta haver uma decisão interpartes declarando a constitucionalidade de dada lei, para que o Estado, com o apoio do STJ, promova ações rescisórias, como se fora um recurso baseado na uniformização da jurisprudência, com espeque no princípio da igualdade, mas com ofensa à segurança jurídica, visando a desconstituir os feitos transitados em julgado com a tese de que a lei envolvida era inconstitucional.

Curiosamente, a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias dos Estados-Membros, quando suas leis, especialmente as tributárias, são declaradas inconstitucionais, pleiteiam que o efeito seja interpartes (âmbito pessoal da norma jurisdicional) e que valham ex nunc e até pro futuro (âmbito temporal da norma jurisdicional constitucional). São des-propósitos, mas às vezes a Suprema Corte acolhe-as à luz de 'relevante interesse público', na medida em que pode, por força de lei, 'modular' os efeitos de suas decisões".

Voltamos a defender que, por mais argumentos que existam, lastreados em utilitarismos e análise econômicas, o direito tributário e as garantias que lhe são próprias são proteções dos indivíduos contra o arbítrio, que pode se manifestar como abuso escancarado ou como subterfúgios para descumprir as "regras do jogo".

Por fim, o que pretendemos é que a decisão da Corte Constitucional seja cumprida sem novos embates entre contribuintes e fisco e que a postura colaborativa (e não adversarial) tome assento em definitivo nesta relação.

 


[2] Artigo 165 do CTN.

[3] Artigo 39, §4° da Lei 9.250/95.

[4] Tema 962 de Repercussão Geral: "Incidência do Imposto de renda  Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a taxa Selic (juros de mora e correção monetária) recebida pelo contribuinte na repetição do indébito".

[6] Recurso extraordinário. Repercussão geral. Direito Tributário. IRPJ e CSLL. Incidência sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário. Inconstitucionalidade. 1. A materialidade do imposto de renda e a da CSLL estão relacionadas com a existência de acréscimo patrimonial. Precedentes. 2. A palavra indenização abrange os valores relativos a danos emergentes e os concernentes a lucros cessantes. Os primeiros, que correspondem ao que efetivamente se perdeu, não incrementam o patrimônio de quem os recebe e, assim, não se amoldam ao conteúdo mínimo da materialidade do imposto de renda prevista no artigo 153, III, da Constituição Federal. Os segundos, desde que caracterizado o acréscimo patrimonial, podem, em tese, ser tributados pelo imposto de renda. 3. Os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas (danos emergentes). A demora na restituição do indébito tributário faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos para atender a suas necessidades, os quais atraem juros, multas, outros passivos, outras despesas ou mesmo preços mais elevados. 4. Foi fixada a seguinte tese para o Tema nº 962 de repercussão geral: "É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário". 5. Recurso extraordinário não provido.

[7] Artigo 9° da Lei 9.718/98.

[8] Leading case: RE 855.091/RS.

[11] COELHO, Sacha Calmon Navarro. O controle de Constitucionalidade das Leis e o Poder de Tributar na Constituição de 1988. 4ed.rev.atual.Rio de Janeiro: Forense, 2016.p.180.

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