Opinião

Concessionária pode transferir concessão para empresa que não venceu licitação

Autor

  • Melina Rocha Maracaja Vaz

    é advogada membro da Coordenação Geral Jurídica de Transportes Terrestre e Aeroviário da Consultoria Jurídica do Ministério da Infraestrutura MBA em Gestão Empresarial e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas/ Brasília e especialista em Direito Processual Civil pela Unisul.

2 de maio de 2022, 16h28

Serviço público e decentralização
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade e comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados. Assim, o Estado assume serviço público como pertinente a seus deveres e presta, por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público, total ou parcialmente (MARINELA, 2017).

A competência para prestação dos serviços públicos está disposta no rol exemplificativo dos artigos 21, 23, 25, §§ 1º e 2º e 30 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Nessa toada, serviços de interesse geral devem ser prestados pela União; os de interesse regional, pelos estados; e os de interesse local são de competência dos municípios.

Nos parâmetros do princípio do dever inescusável de promover a prestação dos serviços públicos, o Estado não pode se recusar a promover a prestação dos serviços rotulados como públicos, seja diretamente pelo Poder Público, seja por intermédio de transferência à iniciativa privada, por meio de um contrato de concessão ou de permissão.

Institutos de descentralização da atividade administrava, a concessão ou a permissão de serviços possuem previsão constitucional. O embasamento constitucional está estipulado no artigo 175 da CF/88, in verbis:

"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos."

No que concerne à legislação ordinária, o artigo 2º, II e IV, da Lei nº 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, aduz serem estas delegações, necessariamente, precedidas de licitação, eis o dispositivo:

"Artigo 2º — Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:
[…]
II – concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência ou diálogo competitivo, a pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado; (Redação dada pela Lei nº 14.133, de 2021)
[…]
IV – permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco."

Transferência de concessão e impugnação via ADI ao artigo 27 da Lei nº 8.987/95 (ADI 2.946/DF)
O artigo 27 da Lei nº 8.987/95 permite que se transfira a concessão ou o controle societário da concessionária para uma outra pessoa, desde que o poder público concorde e sejam respeitados os requisitos legais, ipsis litteris:

"Art. 27. A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão.
Parágrafo único. Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo o pretendente deverá:
I – atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e
II – comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor."

Referido dispositivo foi impugnado por intermédio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pelo Procurador-Geral da República. Alegou-se, na mencionada ação, que essa transferência seria uma forma de burlar a exigência de prévia licitação gravada no artigo 175 da CF/88.

Defendeu-se, também, que o dispositivo seria contrário ao § 1º do artigo 26 da mesma lei, o qual insculpe que a subconcessão de serviço público exige licitação:

"Art. 26. É admitida a subconcessão, nos termos previstos no contrato de concessão, desde que expressamente autorizada pelo poder concedente.
§ 1º A outorga de subconcessão será sempre precedida de concorrência.
[…]"

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente o pedido formulado na ADI proposta. Explanou a Corte Suprema, que em atenção ao parágrafo único do artigo 27 da lei nº 8.987/95, mesmo com a transferência, a base objetiva do contrato continuará intacta.

Ou seja, permanecem as mesmas obrigações contratuais, o mesmo objeto contratual e a mesma equação econômico-financeira. Outrossim, a modificação existente no contrato é de natureza subjetiva, a qual pode decorrer, por exemplo, da substituição do contratado ou de uma reorganização empresarial.

Ainda, o ato de transferência da concessão e do controle societário da concessionária, nos termos do artigo 27 da lei nº 8.987/95, não se assemelha, em essência, à subconcessão de serviço público, prevista no art. 26 da mesma lei, o que justifica a diferenciação.

No ordenamento jurídico brasileiro, a seleção da proposta mais vantajosa é a prioridade da Administração Pública. Para Di Pietro (2010):

"…um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitam as condições do instrumento convocatório, a possibilidade de formularem as propostas dentre as quais selecionará e aceitará a que for mais conveniente para a celebração do contrato administrativo".

Por outro lado, aspectos puramente subjetivos não são relevantes para o deslinde licitatório. No entendimento da Corte Suprema, o importante é que o particular contratado possua idoneidade, isto é, demonstre comprovada capacidade para cumprir as obrigações assumidas no contrato, observados por critérios objetivos e preestabelecidos.

Ademais, o princípio constitucional da impessoalidade deve nortear os referidos contratos, que nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2013):

"O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (art. 37, caput), nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal."

Neste contexto, a Administração Pública busca o cumprimento de requisitos objetivos, previamente definidos na lei e no edital, logo, frise-se, transformações de ordem subjetiva não interferem na base objetiva do contrato.

Além disso, em atenção ao princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos, as concessões públicas necessitam de um regime jurídico que faculte aos concessionários se adequarem aos percalços da execução contratual.

Outrossim, a retomada do serviço pelo poder concedente colide com o interesse público, pois a morosidade gerada traduz em precarização e encarecimento dos serviços prestados, em prejuízo à modicidade tarifária.

Nesse diapasão, a Constituição da República, em seu artigo 175, exige a licitação, mas permite que o legislador ordinário possa dispor e adequar as normas às diferentes situações fáticas e à dinâmica contratual.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 de fevereiro de 1995.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 2946/DF, rel. min. Dias Toffoli, julgado em 8/3/2022 (Info 1.046).
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

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    é advogada, membro da Coordenação Geral Jurídica de Transportes Terrestre e Aeroviário da Consultoria Jurídica do Ministério da Infraestrutura, MBA em Gestão Empresarial e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas/ Brasília e especialista em Direito Processual Civil pela Unisul.

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