Opinião

Eutanásia, liberação de drogas, democracia direta e Corte Constitucional italiana

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2 de maio de 2022, 15h01

No começo deste ano, dois assuntos inquietantes que motivam discussão por toda parte do globo foram objeto de debate também na Itália. Movimentos progressistas mobilizaram uma parcela da população para tentar viabilizar a análise de dois "referendos para revogação de lei" (referendum abrogativo, em italiano), que tinham o intuito de ab-rogar parcialmente o artigo 579 do código penal, que prevê pena de reclusão a quem comete o homicídio consentido e o decreto do presidente da República de 1990, nº 309, que prevê pena de reclusão aos produtores e consumidores de cannabis. Ou seja, os líderes políticos almejavam ouvir a população, por meio de consulta direta, para, eventualmente, tornar a eutanásia um instituto legal dentro do ordenamento italiano e para flexibilizar as regras regulamentadoras da maconha e de seus derivados.

Por se tratar de uma forma de democracia direta que somente deve ser usada ocasionalmente, o constituinte italiano optou por estabelecer critérios rigorosos para atestar validade do referendo ab-rogatório. Definiu-se como necessárias 500 mil assinaturas de eleitores ou a manifestação favorável de cinco conselhos regionais (órgão legislativo das regiões italianas) apoiando a proposta. A análise da validade dos atos praticados até então e da sua conformidade com a lei cabe ao "Escritório Central do Referendo", parte integrante da Corte de Cassação. Também prevista em lei é a participação da Corte Constitucional na análise da validade constitucional da proposta de referendo.

Vencidas todas essas etapas com êxito, a proposta segue à votação de todos os eleitores aptos para eleger os deputados italianos. É válido ressaltar que, na Itália, o voto não é obrigatório, o que cria um desafio extra aos promotores do referendo. Isso porque a Constituição estabelece um "duplo quórum"[2] que exige, para a validade da proposta, tanto a maioria dos votos favoráveis, como a participação da maioria detentora do direito ao voto. Uma vez cumpridos os requisitos de forma e obtida a maioria de votos pela revogação do artigo, o presidente da República declara, com um decreto, "que assume, neste caso, normativa e paralegislativa"[3] a ab-rogação referendária.

Tornando aos casos concretos, os promotores do referendo em favor da eutanásia realizaram a proposta de revogação parcial do artigo. O objetivo era recortar determinadas palavras do texto da norma e, com isso, alterar seu sentido geral. Sugeriu-se a revogação de todo o segundo inciso do artigo 579 do Código Penal, além das palavras "se aplicam" no terceiro inciso. Desse modo, o texto idealizado com o intuito de assentar a indisponibilidade do direito à vida passaria a admitir a sua abdicação, salvo se se tratasse de menor de 18 anos, de incapaz por problemas mentais, ou em caso de anuência sob coerção. O resultado objetivo do sucesso da ação referendaria seria, portanto, tornar parcialmente lícito o homicídio com consentimento da vítima.

Os promotores lograram êxito em reunir as assinaturas necessárias e obtiveram sucesso no escrutínio da Corte de Cassação. Como previsto pela Constituição, após as etapas já cumpridas, coube à Corte Constitucional verificar se existiam eventuais contradições entre o possível resultado referendário e a o texto constitucional.

Nas palavras do juiz relator Franco Modugno da Corte Constitucional, "no artigo 579 elaborado pelo legislador em 1930 havia a intenção de tutelar a vida humana, ainda que o titular do direito quisesse a ele renunciar, seja manu alius, seja manu propria"[4]. Desse modo, o artigo tipifica o homicídio consentido como hipótese autônoma de crime, com previsão de pena de 6 a 15 anos, sanção substancialmente menor do que a cominada para o crime de homicídio comum, que parte de um mínimo de 20 anos de reclusão. Mesmo com a diferença significativa no valor da pena, os militantes da eutanásia insistiam em alterar o texto do artigo, para que, objetivamente, resultasse lícito o homicídio com a anuência da vítima.

O texto da decisão da Corte Constitucional inicia, indicando problemas da proposta, como o de que, com as alterações desejadas, não haveria proteção da vítima portadora de doença. Tampouco estava esclarecido que o executor deveria ser profissional de saúde. Muito menos que o mecanismo usado para encurtar a vida deveria ser um fármaco que causasse morte indolor — com o que se abria margem a que fossem usados meios violentos. Ou seja, o juiz redator criticou a proposta por não cuidar de regular adequadamente a matéria, permitindo situações de absurdo que, seguramente, não estavam na intenção dos promotores.

Além disso, a decisão reiterou que o direito à vida está implicitamente previsto no artigo 2º da Constituição italiana e que, portanto, pertence à categoria dos direitos invioláveis: "Uma categoria de direito que ocupa posição privilegiada no ordenamento por compor a essência dos valores supremos sobre os quais se funda a Constituição"[5]. Recorreu também à jurisprudência do tribunal[6], para assinalar que leis ordinárias que sirvam para assegurar princípios constitucionais fundamentais para o Estado italiano não podem ser objeto de referendo ab-rogatório, e esse seria o propósito do artigo 579 do Código Penal, orientado à preservação da vida humana.

Outro detalhe interessante da discussão é o fato de que os idealizadores do referendo já haviam proposto ao parlamento, anos antes, a lei "eutanásia legal" com o mesmo objetivo do atual movimento, mas em busca do posicionamento do Parlamento. Diante da inércia do Congresso, decidiu-se abandonar a via representativa e apelar para o mecanismo da democracia direta, por meio do referendo. Curioso ainda é o fato de que a mesma Corte Constitucional já havia, por meio de sentenças anteriores, pressionado o Parlamento a manifestar-se sobre o assunto. Contudo, isso não interferiu no julgamento de admissibilidade da proposta, uma vez que, como já havia sido dito anteriormente pela mesma Corte, "são irrelevantes em sede de julgamento de admissibilidade do referendo as intenções terceiras dos promotores, como seria a de provocar um posicionamento dos deputados italianos". "Relevante é, somente, a proposta de revogação, que é avaliada objetivamente e por seus efeitos diretos [7]."

Afinal, a Corte Constitucional se posicionou contrariamente à proposta de referendo e o caso foi dado por encerrado antes mesmo de que a população italiana se manifestasse sobre o assunto.

Assim como a proposta de referendo pela ab-rogação da lei contra a eutanásia, a proposta pela ab-rogação do decreto presidencial de 1990, que disciplina a matéria de drogas na Itália, reuniu as assinaturas necessárias e foi considerada válida pelo escritório central de referendo anexado à Corte de Cassação. Os promotores da ideia almejavam retirar da norma proibitiva a palavra "cultiva" presente no inciso um do artigo 73 do decreto presidencial de 1990, bem como a previsão do inciso quarto do mesmo dispositivo, que comina reclusão de dois a seis anos por ações relacionadas ao entorpecente. Pretendia-se, também, a suspensão do artigo 75 que prevê a perda da carteira de motorista para aqueles flagrados com a posse de drogas enquanto dirigem. Caso se confirmassem as alterações, no âmbito penal, passaria a ser lícito o cultivo da marijuana para consumo pessoal, bem como seu consumo. Já na esfera administrativa, seria revogada a possibilidade de perda da autorização para dirigir carros e motos em caso de flagrante de direção com porte de entorpecentes.

A Corte Constitucional mais uma vez , no momento da avaliação de admissibilidade do referendo, julgou-o inadmissível. Após uma longa referência de julgados semelhantes, o tribunal concluiu que a eventual revogação dos dispositivos mencionados resultaria em violação de tratados internacionais de combate às drogas firmados pela Itália e incorporados ao sistema nacional. Por consequência, seria violado o artigo 75 da Constituição que regula a aplicação do referendo e o proíbe em matérias de lei tributária, de indulto e de autorização para ratificar tratados internacionais. Tal violação ocorreria em razão da interpretação feita pelos juízes do Tribunal Constitucional de que o mesmo tratamento especial dado pelo constituinte à lei de ratificação de tratados internacionais deveria ser aplicado às leis que garantem a eficácia desses tratados.

Os promotores da proposta apontaram exemplos de países como Uruguai e Canadá, que já flexibilizaram as leis de proibição da cannabis sem que isso houvesse resultado na suspensão das convenções internacionais. A essa questão, a decisão respondeu, explicando que, devido ao modo como está estruturado o decreto presidencial, a revogação desejada pelos promotores resultaria automaticamente na liberação do cultivo, não somente da marijuana, mas também da folha de coca e do ópio, matérias primas para a cocaína e para a heroína. Os promotores retrucaram, alegando que tais drogas necessitam de refino (prática que permaneceria criminalizada) para o consumo, argumento que não sensibilizou a Corte Constitucional. Além disso, A Corte afirmou que não poderia determinar um desmembramento da proposta de revogação, por meio de um julgamento de inconstitucionalidade somente parcial, que liberasse para a votação popular a parte que não contrariaria os tratados internacionais. Por isso, o tribunal emitiu a decisão final de inadmissibilidade da proposta de referendo.

O debate criado em torno dos referendos enriqueceu a polêmica em torno dos temas da legalização da eutanásia e da flexibilização das drogas. No entanto, a relevância dos casos vai além de suas temáticas centrais, ela também se expressa nas questões técnicas de direito constitucional que suscitou e exemplifica modos do direito comparado de participação da sociedade em questões políticas. É instigante observar o papel político da Corte Constitucional e a sua interferência no debate público, fenômeno que, por variados modos, ocorre no Brasil e em toda parte.


[2] CARNEVALE, Paulo; CELOTTO Afonso; COLAPIETRO, Carlo; MODUGNO, Franco; RIMOLI, Francesco; RUOTOLO, Marco; SERGES, Giovanni; SICLARI, Massimo. Diritto Pubblico. Torino: Giappichelli, 2012. P.200

[3] Supracit. Diritto Pubblico. P.201

[4] ROMA. Corte Constitucional. Sentença n.50 de 2 de março de 2022. Disponível em: https://www.gazzettaufficiale.it/eli/id/2022/03/02/T-220050/s1.  Acesso em: 27 de abril de 2022.

[5] ROMA. Sentença da Corte Constitucional n. 35 de 1997

[6] ROMA. Sentença da Corte Constitucional n. 27 de 1987; Sentença n.25 de 1981; sentença n.35 de 1997 e sentença n. 45 de 2005.

[7] ROMA. Sentença da Corte Constitucional n.17 da Corte Constitucional de 1997

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