Opinião

Mandado de segurança, restituição e as Súmulas 269/271 do STF

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2 de maio de 2022, 20h14

Tema ainda recorrente nos tribunais e de grande relevância aos contribuintes diz respeito à possibilidade ou não de expedição de precatório em mandado de segurança destinado à restituição de tributos.

A relevância decorre do fato de que, não raro, uma vez finalizada a discussão sobre determinada incidência tributária e sagrando-se vencedor na demanda, ao contribuinte não interessa percorrer o caminho comumente tido como mais adequado, qual seja, a compensação no âmbito administrativo. Às vezes, dependendo de sua situação, o recebimento via compensação sequer é materialmente possível.

Isto pode ocorrer por diversas razões, tais como: (1) quando o volume de créditos supera em muito o de débitos, o que implicaria anos até o recebimento total dos créditos (e possível litígio com a Receita Federal, que entende necessária a implementação total da compensação em cinco anos [1], muito embora tal entendimento seja questionável, na linha de precedentes de que o prazo diz respeito apenas ao início das compensações, não ao seu término [2]); (2) o contribuinte, uma vez decorridos vários anos desde o ajuizamento da ação, não mais se encontra em situação operacional e/ou não possui débitos passíveis de compensação; (3) o contribuinte pretende realizar de imediato seu crédito e o cede a terceiros, a quem a restituição é a única via cabível, posto que a legislação veda a compensação de débitos próprios com créditos cedidos por terceiros (sendo que a Câmara Superior do Carf vem entendendo que a restrição aplica-se inclusive no caso de cessão judicial de créditos [3]); ou, ainda, (4) por simples vontade do contribuinte em receber em dinheiro ao invés de compensar.

Em 2019 tivemos a oportunidade de escrever [4] que, naquele momento, a jurisprudência do STJ inclinava-se no sentido de admitir a aplicação da Súmula nº 461/STJ ("O contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado") inclusive na via mandamental, ao menos quanto aos pagamentos efetuados após a distribuição do mandado de segurança. A dúvida remanescia quanto aos pagamentos anteriores, em relação aos quais prevalecia o entendimento de que a expedição do precatório acarretaria violação às Súmulas 269 e 271 do STF ("O mandado de segurança não é substitutivo da ação de cobrança" e "Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria").

O fato é que, de lá para cá, alguns julgados têm novamente se inclinado para a posição original de que a via mandamental e a expedição de precatório não seriam compatíveis, por força das Súmulas 269 e 271 antes mencionadas. Há precedentes que, a pretexto de explicar a questão da expedição de precatório na via mandamental para fins de restituição de tributos, como vinha sendo admitido, o fazem no sentido de que "o mandado de segurança é via adequada para declarar o direito à compensação ou restituição de tributos. Uma vez concedida a ordem, os pedidos devem ser requeridos na esfera administrativa, revelando-se incabível a utilização na via do precatório, sob pena de conferir a vedada natureza de ação de cobrança ao mandamus" [5]. Recentemente, inclusive, houve a publicação de acórdão da 1ª Seção do STJ [6] rejeitando em definitivo o conhecimento de embargos de divergência opostos por contribuinte sobre o tema em questão.

O ponto nodal em discussão diz respeito a verificar em que medida as citadas súmulas do STF constituiriam, efetivamente, óbice à expedição do precatório a contribuintes detentores de decisões que declaram o direito ao não pagamento e/ou à restituição de tributos, sendo que algumas questões relevantes relacionadas ao tema, ao que consta, não têm sido objeto de debate mais aprofundado.

A primeira e mais relevante consideração é a de que as Súmulas 269 e 271 foram editadas há quase 60 anos, em contexto substancialmente distinto. Envolviam, em regra, pleitos de servidores públicos relacionados à incorporação de determinados direitos (vantagens), cumulativamente com o recebimento de atrasados, que seriam decorrência do reconhecimento do direito pleiteado.

O próprio STJ já teve oportunidade de afirmar, a propósito da Súmula nº 269, que "tem a seu favor a ancianidade de sua edição — 55 anos — de modo que, somente por milagre, haveria de se manter atual e ensejadora de observância irrestrita", razão pela qual "a interpretação deste verbete, porém, deve ser temperada com a edição de várias regras legais que alteraram o perfil do Mandado de Segurança", o que implica o reconhecimento de que "não encontra razão jurídica e nem moral a alternativa de encaminhar-se o pleito de valores anteriores à impetração para as chamadas vias ordinárias, quando já se tem uma decisão mandamental favorável ao direito da parte", pois "isso significaria protelar para as calendas gregas a fruição do direito pela parte que o titula, congestionar as instâncias judiciais em situação de desnecessidade, expor-se a UNIÃO ao pagamento de honorários, porque a Ação de Cobrança, fatalmente, lhe seria desfavorável e, além disso, amesquinhar o préstimo do Mandado de Segurança, encurtando o alcance de sua eficácia" [7].

Mais importante do que a questão da antiguidade das Súmulas é a constatação de que as decisões que lhes deram origem foram no sentido de que "quanto a estes (recebimentos de atrasados) os recorrentes não têm razão, porque devem pleiteá-los, ou na via administrativa, ou mediante ação direta (…)" [8], sendo "pacífico, entre nós, que o mandado de segurança não se destina à obtenção de vantagens econômicas pretéritas" [9] e também que "não se pode obter, pelo mandado de segurança, diretamente, uma ordem de pagamento" [10].

A leitura dos precedentes que deram origem às Súmulas evidencia que o tema fora — como não poderia deixar de ser — analisado sob a ótica da Lei do Mandado de Segurança então vigente (1.533/51). Discutiu-se, à época, se "estaria, pois, violado o art. 15 da L. 1.533 (…)" [11], ao estabelecer que "A decisão do mandado de segurança não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais".

Não se examinou em tais precedentes se poderia haver expedição de precatório na via do mandado de segurança — procedimento previsto na Constituição de 1946, então vigente. Discutiu-se se poderia haver a obtenção de efeito patrimonial diretamente (RE nº 48.567), isto é, aquela ordem de pagamento advinda da própria decisão, sujeita a prazo conferido pelo juiz ou tribunal competente.

Tal constatação é relevante porque, de um lado, a atual Lei do MS (12.016/09) estabelece expressamente no artigo 14, §4º, que "o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial".

De outro lado, o STF decidiu, em repercussão geral, que as ordens de pagamento emitidas por força de decisão mandamental devem ser cumpridas, em regra, via precatório, afastando-se a possibilidade de pagamento imediato (via ofício à autoridade impetrada, p.ex.): "é assente a jurisprudência desta Corte no sentido de que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública estão adstritos ao sistema de precatórios, nos termos do que dispõe o artigo 100 da Constituição Federal, o que abrange, inclusive, as verbas de caráter alimentar, não sendo suficiente a afastar essa sistemática o simples fato de o débito ser proveniente de sentença concessiva de mandado de segurança (…)" [12].

A conjugação da Lei atual do MS com o precedente vinculante oriundo da Suprema Corte confirma que a decisão do writ pode gerar efeitos patrimoniais, ao menos no que respeita às parcelas incorridas após a distribuição da ação, condicionando-se o pagamento à regra geral dos precatórios, salvo situações excepcionais advindas de legislação específica que estabeleça o pagamento direto, sem necessidade de observar-se o artigo 100, §5º, da CF (e desde que exista previsão orçamentária), conforme decidido pela Suprema Corte, p.ex., em matéria de pagamentos a anistiados políticos [13].

Outra alteração relevante na Lei do MS reforça o quanto exposto: o artigo 19 da Lei atual estabelece que "a sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais". Não havia dispositivo similar na Lei anterior, além do já mencionado artigo 15 que vedava todo e qualquer efeito patrimonial da decisão mandamental.

Se a denegação da segurança sem exame do mérito viabiliza ao impetrante buscar a reparação patrimonial pela via ordinária, forçoso reconhecer que, na hipótese de concessão de segurança, a obtenção do efeito patrimonial é perfeitamente viável nos próprios autos mandamentais, sob pena de tornar redundante o dispositivo.

Aliás, não só a Lei do MS sofreu alterações que influem no exame e superação de uma leitura fria das Súmulas 269 e 271 do STF. A legislação processual também. O Código de Processo Civil atual elenca, dentre os títulos executivos judiciais, as "decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa" (artigo 515, I).

Com base nisso o próprio STJ já decidiu que, se "a sentença declaratória contém juízo de certeza e definição exaustiva a respeito de todos os elementos da relação jurídica questionada, reconhecendo em favor do contribuinte o direito de haver a repetição (e, portanto, o dever da Fazenda pagar (…). Submeter o contribuinte a nova ação cognitiva como condição para receber o pagamento significaria, conforme sustentado, atividade jurisdicional desnecessária e inútil, incompatível com o princípio da coisa julgada e com a própria razão de ser da função jurisdicional" [14]. Em ao menos uma oportunidade, idêntico entendimento foi adotado em caso de indébito reconhecido pela via do MS, julgando-se o contribuinte carecedor de interesse para a propositura de posterior ação de restituição [15].

Não parece razoável, portanto, submeter o contribuinte à via ordinária tão somente para quantificar e formar um título executivo originário de decisão declaratória que já fixou, ela própria, os contornos da obrigação tributária a ser devolvida. Implicaria transformar a ação de repetição de indébito em mero procedimento de liquidação e/ou cumprimento de sentença, em prejuízo, inclusive, ao próprio erário, à vista da inexorável condenação da Fazenda Pública em honorários advocatícios, como ressalvado em um dos julgados citados.

Em conclusão, a partir da constatação de que (1) as Súmulas 269 e 271 do STF foram editadas há quase 60 anos em contexto legislativo distinto, (2) a Lei atual do MS contém regra acerca do pagamento de valores, ainda que a servidores públicos, sendo que (3) o STF decidiu, em regime de repercussão geral, pela possibilidade de expedição de precatório em MS, ao menos quanto aos valores devidos a partir da propositura da ação, (4) o STJ tem temperado a aplicação das citadas Súmulas em outros temas que também envolvam a cobrança/restituição de valores e (5) o STJ também já reconheceu a força executiva das decisões de natureza declaratória, dispensando a propositura de nova ação; parece cabível a expedição de precatório em mandado de segurança para fins de restituição de tributo, notadamente em relação às parcelas recolhidas após a sua impetração.


[1] Solução de Consulta 239 – Cosit (19/8/2019).

[2] STJ, REsp 1.469.954, Min. Og Fernandes, J: 18/8/2015. TRF-3, Apel. 0010596-68.2013.4.03.6143, juiz conv. Silva Neto, J: 2/8/2017.

[3] Acórdão 9303-012.037, J: 20/10/2021.

[5] AgInt no REsp 1.947.645, min. Regina Helena Costa, J: 22/11/2021. No mesmo sentido: AgInt no REsp 1.563.406, min. Sérgio Kukina, J: 04/10/2021 e AgInt no AgInt nos EDcl no REsp 1.616.074, min. Benedito Gonçalves, J: 12/4/2021.

[6] AgInt nos EREsp 1.895.331, min. Herman Benjamin, J: 15/2/2022.

[7] MS 22.221, min. Napoleão Nunes Maia Filho, J: 10/4/2019.

[8] RMS 6.747, min. Victor Nunes Leal, J: 27/5/1963.

[9] RMS 10.629, min. Ary Franco, J: 11/3/1963.

[10] RE 48.567, min. Victor Nunes Leal, J: 15/5/1962.

[11] AI 26.672, min. Victor Nunes Leal, J: 12/3/1963.

[12] RE 889.173, min. Luiz Fux, J: 7/8/2015.

[13] Tema 394 (RE 553.710, min. Dias Toffoli, J: 23/11/2016): "ii) Havendo rubricas no orçamento destinadas ao pagamento de indenizações devidas aos anistiados políticos e não demonstrada a ausência de disponibilidade de caixa, a União há de promover o pagamento do valor ao anistiado no prazo de 60 dias. iii) Na ausência ou na insuficiência de disponibilidade orçamentária no exercício em curso, cumpre à União promover sua previsão no projeto de lei orçamentária imediatamente seguinte".

[14] EREsp em REsp 609.266, min. Teori Albino Zavascki, J: 23/8/2006.

[15] AgRg no REsp 1.504.337, min. Herman Benjamin, J: 19/3/2015.

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