Público & Pragmático

PL 2.630/2020: avanços, pontos de atenção e perspectivas

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris ex-controladora geral do município de São Paulo e professora do Insper.

1 de maio de 2022, 8h00

O projeto de PL 2.630, que trata da liberdade, responsabilidade e transparência na internet, foi originalmente apresentado em julho de 2020 e sofreu substanciais alterações durante o processo legislativo, estando o substitutivo de 31 de março muito mais em consonância com o que se espera em termos de transparência, responsabilidade, proteção de dados, empoderamento de usuários e repressão às notícias mentirosas e discursos de ódio na rede.

Referido processo, aliás, contou com intensa participação da sociedade civil, com a realização de diversas audiências públicas e a contribuição marcante da Coalização Direitos na Rede, que reúne mais de 50 organizações em defesa dos direitos digitais.

Pretensa votação em regime de urgência foi rejeitada em 6 de abril último, devendo os trâmites normais de discussão serem observados — não sem forte oposição do governo e sua marcante e já costumeira resistência às medidas de transparência, devido processo de moderação e combate às fake news — inclusive com fins eleitorais.

Regulação na rede: espaço público ou privado?
Uma das premissas básicas a orientar as discussões atinentes aos limites, diretrizes e grau de ingerência estatal na rede é a sua compreensão como lócus de expressão, como grande arena participativa em que a todos é dado interagir e se manifestar.

Há os que defendem que a natureza privada das plataformas como Meta/Facebook, Google, Instagram, Telegram etc. implicaria na possibilidade de elas criarem as suas próprias regras, absolutamente independentes e alheias a quaisquer diretrizes estatais ou públicas.

Fala-se aí em autorregulamentação, baseada na lógica end-to-end, segundo a qual o usuário final, e não os intermediários, deve definir como usar os aplicativos e ferramentas disponíveis (VAN SCHEWICK, 2010).

Leva em consideração receio — não de todo descabido — de que eventual regulação estatal possa se transformar em instrumento de censura por governos com pretensões autocráticas ou outros interesses escusos.

 Trata-se, porém, de compreensão falaciosa que limita indevidamente o alcance, a importância e repercussão das plataformas, que são em verdade espaços públicos, arenas conceitualmente plurais, abertas e pretensamente democráticas em que aos mais diversos atores é dado se expressar, trocar e absorver informações.

Sua performance é determinante na definição dos rumos da sociedade, dos avanços/retrocessos científicos, alterações e consolidações políticas, sedimentação e evolução de valores culturais, sociológicos e comportamentais.

Não podem, portanto, ficar ao alvedrio de grupos econômicos cuja única razão de ser é a obtenção de lucro e defesa dos interesses próprios, mediante o uso das mais diversas — e potencialmente perigosas — ferramentas de indução, estímulo, triagem de informação, tagueamento, perfilhamento e propaganda.

Daí a urgente necessidade de uma disciplina minimamente estável, que leve em conta o seu imenso potencial e importância na vida dos indivíduos, os riscos decorrentes da sua própria existência e a perene defesa de valores básicos como democracia, acessibilidade, isonomia, liberdade de expressão e autodeterminação e preservação/proteção de dados e informações pessoais.

O engajamento dos diversos players na arena pública digital — estados, organizações internacionais, instituições privadas, partidos políticos e sociedade civil em geral — leva a que a tradicional regulamentação por atores exclusivamente estatais já não se mostra suficiente nem adequada:

(…) Uma sociedade complexa e diferenciada em várias arenas comunicativas coloca uma série de problemas específicos com um grau de incerteza tal que a simples ordenação “de cima para baixo” pelo Estado pode criar um Direito incapaz de tratá-los. (…) Em contraponto a tal configuração jurídico-estatal surge o diagnóstico de que a legislação, a jurisprudência e o regramento administrativo podem ser instrumentos excessivamente rígidos, lentos ou insensíveis para enquadrar juridicamente fenômenos emergentes. As teorias políticas, jurídicas e econômicas passam a valorizar então os discursos da “regulação” e da “governança”. A teoria jurídica passa a falar de “direito reflexivo”, “programas relacionais”, “procedimentalização” e “autorregulação regulada”. (AMATO, 2021, pp.41-42)

Por meio desta — autorregulação regulada — combinam-se a expertise, o dinamismo e conhecimento técnico das plataformas com a visão estatal dos interesses públicos.

Nesse modelo, cabe ao Estado induzir os agentes de mercado a se autorregular da forma mais inclusiva e consentânea com os interesses coletivos, com a previsão de instrumentos garantidores, por exemplo, do contraditório e ampla defesa, de uma reação rápida, em tempo hábil a evitar danos maiores em caso de manifestações inadequadas/ ilegais/ ofensivas às normas vigentes.

Importante, ainda, a previsão de mecanismos de avaliação de conteúdo com a participação de diferentes setores da sociedade civil, de forma a garantir a sua legitimidade e fixar eventual responsabilidade do provedor (definido pelo artigo 5º, IX do PL como aplicações de redes sociais, ferramentas de busca e de mensageria instantânea) por eventual inobservância do processo de moderação (nunca em razão da veiculação do conteúdo propriamente dito).

Foi igualmente consagrada no artigo 35 do substitutivo, segundo o qual poderão (faculdade, em contraposição à obrigatoriedade prevista no projeto original) os provedores criar instituição de autorregulação voltada à transparência e à responsabilidade no uso da internet.

De qualquer forma, não se pode negar a importância da iniciativa, a outorgar mais legitimidade e responsividade ao processo de moderação de conteúdo e sintonia fina do tratamento da liberdade de expressão, pensamento, preservação de dados e informações pessoais e proteção contra notícias falsas e mecanismos de influência e manipulação de massas.

Avanços do PL
Talvez o dispositivo do projeto que tenha causado maior frisson seja aquele que criminaliza a promoção e financiamento da disseminação em massa de notícias falsas (tanto que recebeu a alcunha de "PL das fake news"), desde que: (i) ocorram mediante contas automatizadas ou outros meios não fornecidos diretamente pelo provedor; (ii) o responsável pela divulgação tenha ciência da falsidade do conteúdo; (iii) seu teor seja capaz de comprometer a higidez do processo eleitoral; (iv) ou causar dano à integridade física de alguém, sendo passível de sanção criminal.

Não obstante a intenção louvável da proposta, o seu alcance ficou por demais restrito — compreensivelmente, tendo em vista o cenário turbulento e de busca de instabilização democrática que já vem marcando as próximas eleições.

Nesse ponto, entendemos que não apenas as notícias falsas relacionadas ao processo eleitoral deveriam ser nos moldes propostos combatidas: há uma série de outros "fatos" mentirosos com potencial igualmente nefasto, tais como aquelas relacionadas à pandemia do coronavírus — causa de incontáveis óbitos e posturas ofensivas às políticas de preservação da saúde da população e contenção do espraiamento do vírus, conforme detalhado na nota 2 adiante.

Outro importante avanço foi a equiparação dos provedores de redes sociais, ferramentas de busca e mensageria instantânea com pelo menos 10 milhões de usuários no país aos meios de comunicação social para fins de inelegibilidade estabelecida na LC 64/90, ou seja: em caso de uso indevido de tais plataformas por candidatos ou partidos políticos, estarão os responsáveis sujeitos a uma pena de inelegibilidade por até 8 anos, além da cassação do registro ou diploma.

Trata-se de medida voltada a corrigir distorções decorrentes do descompasso entre evolução tecnológica e a legislação, compatibilizando o ordenamento pátrio com as atuais ferramentas rotineiramente utilizadas pelos candidatos no jogo eleitoral — em total consonância com a jurisprudência do TSE.

A redação do dispositivo, porém (artigo 2, §2º), pode gerar embaraço, na medida em que, em assumindo as plataformas tal condição de meios de comunicação social, se chegaria à conclusão de que os sites de busca, redes sociais e aplicativos de mensagem responderiam da mesmíssima forma que os jornais e canais de televisão, que gozam de toda a liberdade e são amplamente aparelhados para triar e editar o conteúdo que veiculam. A ficção de que tais provedores tenham alguma condição de selecionar ou direcionar o conteúdo por seu intermédio veiculado é, para além de ingênua, incompatível com a sua estrutura e própria razão de ser da internet…

A sujeição das contas oficiais de agentes políticos aos princípios orientadores da Administração foi um outro avanço: tendo em vista se tratar de perfis institucionais, não pode seu titular bloquear ou negar a qualquer cidadão acesso imediato e irrestrito ao conteúdo publicado — nem tampouco de qualquer forma monetizar tal conta.

Outros pontos interessantes: a proibição de uso eleitoral de contas comerciais, sob pena de bloqueio; o estabelecimento de um devido processo, com possibilidade de recurso/ampla defesa nas hipóteses de bloqueio de conteúdo; transparência quanto aos conteúdos impulsionados e publicidade; a elaboração de relatórios semestrais de transparência, de que deverão constar os procedimentos e decisões relativas à intervenção ativa em contas e conteúdos que impliquem a exclusão, indisponibilização, redução de alcance, sinalização ou qualquer outra espécie de restrição à liberdade de expressão; delineação da atividade de mensageria como de comunicação interpessoal, e não em massa.

Pontos de atenção
O projeto traz, além dos traços evolutivos supra referidos, alguns aspectos a demandarem maior reflexão, com efetiva e ampla discussão com a sociedade, incluídos aí especialistas e entendedores da tecnologia e dinâmica das redes — cujo envolvimento, condicionante da legitimidade democrática do texto, é ainda determinante da sua compatibilização do estado da arte dos algoritmos e inteligência artificial, rarissimamente dominados por congressistas, gestores ou terceiros que não se dediquem diretamente à questão.

A primeira grande questão é a obrigatória remuneração, pelas plataformas, dos veículos de imprensa — política que muito provavelmente redundará na hegemonia dos grandes, com o comprometimento da democratização dos meios de comunicação e acesso à informação.

A mídia independente, os pequenos veículos sem projeção ou formalidades organizacionais acabarão ficando excluídos da incidência da norma, até em razão da dificuldade da compreensão do que efetivamente se classifica como veículo de imprensa — e se ferramentas como blogs e sites de notícias falsas estariam inseridos nessa categoria.

Tais questões não são resolvidas por meio da determinação — insuficiente — de que serão consideradas veículos de imprensa as empresas constituídas há pelo menos um ano da publicação da lei, que produzam conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e com endereço físico e editor responsável no Brasil. E ainda: o que/quem será, para os fins da lei, considerado jornalista/jornalismo? Quem fiscalizará a fiel observância das normas colocadas, com a imposição de eventuais sanções?

Outro aspecto merecedor de crítica é a exigência de que os provedores tenham personalidade jurídica constituída no Brasil, já não bastando simples representação para que possam aqui atuar, conforme originariamente previsto no projeto.

Tal interpretação, para além de prestigiar cultura burocrática e segmentada do mundo, incompatível com a globalização e relativização das fronteiras entre os Estados, traz exigência desencorajadora da atuação de importantes (inclusive em termos de democratização do acesso à informação) organizações potencialmente promotoras de maior inclusão e diversidade no ambiente virtual.

Uma maneira mais consentânea com tal cenário, e plenamente compatível com a redação do dispositivo, é a compreensão da "representação" em referência como não necessariamente a constituição de pessoa jurídica filial ou tradutora de descentralização da empresa: poderia se constituir contratualmente, como, exemplificativamente, via outorga de poderes especiais a terceiros.

Houve também a exclusão do dispositivo que vedava o uso de dados de usuários de redes sociais para a venda de publicidade direcionada — o que, ao nosso ver, tem pouquíssimo ou nenhum impacto, tendo em vista a obrigatória observância dos parâmetros e lógica da LGPD imposta pelo parágrafo único do artigo 9º — a qual já traz proteção nesse sentido.

Registre-se ainda a outorga de imunidade parlamentar quanto a todas as opiniões lançadas nas redes: o instrumental concebido para a defesa do mandato e da democracia sofre assim notável subversão, transmutando-se em licença para todos os mandatários legislativos se utilizarem da agilidade e alcance sem precedentes da rede para divulgar conteúdo sem qualquer preocupação com a sua procedência ou veracidade — inclusive notícias sabida e intencionalmente falsas, com potencial até mesmo de colocar em risco a vida das pessoas[2].

Conclusões
A necessidade de regulamentação das atividades desenvolvidas em âmbito virtual, de modo a garantir e promover transparência, liberdade de expressão, proteção de dados, combate às fake news e ao discurso de ódio é absolutamente premente.

A rede mundial de computadores, arena pública fundamental à troca de ideias e amadurecimento social não pode ser tratada como terra de ninguém, em que regras postas por grandes conglomerados econômicos reforçam descompromissadamente seus interesses e pretensões.

O substitutivo em discussão tem muitos méritos, inclusive o de incorporar ao seu processo a legitimidade emanada do envolvimento e efetiva escuta da sociedade civil.

Ainda que não seja um texto perfeito e definitivo, traz sistematicamente uma série de ferramentas capazes de tornar o meio virtual no Brasil mais saudável e compatível com os preceitos constitucionais básicos.

Daí a importância de sua aprovação, com a maior celeridade possível — sem prejuízo, conforme previsto no próprio texto, de futuras revisões e aprimoramentos.

Referências
AJZENMAN; Nicolás; CAVALCANTI, Tiago; DA MATA, Daniel. More than words: leader’s speech and risky behavior during a pandemic. Cambridge-INET Working Paper Series No: 2020/19. Cambridge Working Papers in Economics: 2034. Disponível em https://www.econ.cam.ac.uk/research-files/repec/cam/pdf/cwpe2034.pdf. Acesso em 02/10/2021.

ALLINGTON, Daniel; DHAVAN, Nayana. The relationship between conspiracy beliefs and compliance with public health guidance with regard to COVID-19. London: Centre for Countering Digital Hate. 2020. 6p. Disponível em https://kclpure.kcl.ac.uk/portal/files/127048253/Allington_and_Dhavan_2020.pdf. Acesso em 03/05/2020.

AMATO, Lucas Fucci. Fake news: regulação ou metarregulação? Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 29-53, abr./jun. 2021. Disponível em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p29

BRENEN, J. Scott; SIMON, Felix; HOWARD, Philip N.; NIELSEN, Rasmus Klein. Types, sources and claims of COVID-19 misinformation.  2020. Disponível em https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/types-sources-and-claims-covid-19-misinformation. Acesso em 02/05/2020.


[2] Experimento do Centre for Countering Digital Hate do King’s College London comprovou que as pessoas que acreditam nas informações mentirosas sobre o Corona vírus estão 60% mais propensas a descumprirem medidas de isolamento social. (ALLINGTON; DHAVAN. 2020). No mesmo sentido, o estudo More than words: leader’s speech and risky behavior during a pandemic, publicado na Cambridge Working Papers in Economics da Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, segundo o qual há uma direta relação entre as declarações e atitudes negacionistas do presidente brasileiro e o afrouxamento das medidas de isolamento social. (AJZENMAN; CAVALCANTI; MATA, 2020). Ainda: pesquisa do Reuters Institute de Oxford, segundo a qual políticos, celebridades e pessoas públicas são responsáveis pelo espraiamento de 70% das notícias relacionadas ao Covid-19 nas redes sociais – dessas, cerca de 20% são falsas. (BRENEN, SIMON, HOWARD, NIELSEN. 2020)

Autores

  • é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris e ex-controladora geral do município de São Paulo.

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