Opinião

Desmistificando o garantismo penal

Autor

  • Emetério Silva de Oliveira Neto

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

1 de maio de 2022, 6h33

As linhas mestras do garantismo penal
São inúmeras e por vezes equivocadas as discussões travadas em torno do termo garantismo penal. Nesse ambiente, há quem coloque em polos opostos o ideal garantista e a necessidade de um direito penal que efetivamente cumpra as missões de prevenir e punir o crime [1]. Para além disso, surgiu no debate jurídico brasileiro o chamado garantismo penal integral, cujo propósito, com o qual não se pode anuir, é demonstrar que a materialização (e até a ampliação) do poder punitivo do Estado teria uma conotação garantista, pois implicaria em garantia da sociedade contra a perpetração de crimes, vale dizer, contra o próprio cidadão, com isso desnaturando o genuíno sentido da expressão, se considerada a sua acepção primeira.

Quando erigiu a sua monumental obra "Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale", originalmente publicada em 1989, o jurista Luigi Ferrajoli estava fortemente preocupado com a agigantamento do poder absoluto na Itália, o qual ganhou guarida a partir da confecção de uma "legislação de emergência", resultante dos "anos de chumbo" vividos naquele país do final dos anos 1960 até meados da década de 1980 [2]. Com efeito, é certo que se afiguram nefastas as consequências jurídicas, sociais e econômicas dos regimes políticos autoritários, que se expressam, dentre outras questionáveis metodologias, em reiteradas tentativas de calar a voz da cidadania, no intuito de aviltar a capacidade humana de irresignação frente às práticas arbitrárias que solapam direitos fundamentais, como a liberdade.

Tendo por base o turbulento contexto italiano, do qual emergiu a noção de garantismo penal disseminada notadamente entre os países de civil law, calha transcrever excerto em que Ferrajoli enfrenta e explicita a temática "justificação e garantismo", defendendo a "utopia garantista
, que não se confunde com "abolicionismo penal":

"(…) se observarmos o funcionamento efetivo dos ordenamentos penais, e, exemplarmente, daquele italiano, são a 'abolição' da pena e a justificação para seu lugar de instrumentos de controle extrapenais que se manifestam, hoje, como os fenômenos mais inquietantes. A pena em sentido próprio — ou seja, enquanto sanção legal post delictum e post iudicium — representa, sempre mais, na Itália, uma técnica punitiva secundária. A prisão preventiva e, de outra parte, o processo como instrumento espetacular de estigmatização pública antes da condenação acabaram por tomar o lugar da pena enquanto sanções primárias do delito ou, mais precisamente, do suspeito autor do delito. E o cárcere passou a ser, em muito maior escala, um lugar de trânsito ou de custódia cautelar, como era na Idade Pré-moderna, do que um lugar de cumprimento de pena. De outra parte, paralelamente ao sistema penal ordinário e ao seu desordenado conjunto de garantias, uma ininterrupta tradição policialesca ligada à época pós-unitária, desenvolvida pelo fascismo e posteriormente pela recente legislação de emergência, erigiu, progressivamente, um sistema punitivo especial, de caráter não penal, mas substancialmente administrativo. A propósito, passemos ao amplo leque de sanções extra, ante ou ultra delictum e extra, ante ou ultra iudicium, representado pelas medidas de segurança, medidas de prevenção e de ordem pública e medidas cautelares de polícia, por meio das quais funções substancialmente judiciárias e punitivas são confiadas a órgãos policiais, ou de qualquer modo exercitadas em formas discricionárias ou administrativas" [3].

O garantismo penal, portanto, constitui, em sua essência, fundamentalmente uma couraça protetiva do cidadão contra a verve punitiva do Estado, incrustada nas suas instituições, órgãos e agentes. Daí que Ferrajoli, sem descurar dos problemas do garantismo penal [4], formata o seu sistema na base de axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, que traduzem garantias penais e processuais penais, sendo eles: A1 Nulla poena sine crimine, A2 Nullum crimen sine lege, A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate, A4 Nulla necessitas sine injuria, A5 Nulla injuria sine actione, A6 Nulla actio sina culpa, A7 Nulla culpa sine judicio, A8 Nullum judicium sine accusatione, A9 Nulla accusatio sine probatione, A10 Nulla probatio sine defensione [5]. Assim, Ferrajoli denomina garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o seu modelo-limite, o qual, consoante faz questão de advertir, é apenas tendencialmente, mas jamais perfeitamente satisfazível.

Como bem dito por Norberto Bobbio no prefácio feito à primeira edição de "Direito e razão", ao elaborar um sistema geral de garantismo, Ferrajoli apostou na construção das vigas-mestras do Estado de direito, tendo por fundamento a tutela da liberdade do indivíduo contra as variadas formas de exercício arbitrário do poder, que se manifesta particularmente odioso no âmbito do direito penal. Para sintetizar, é de se afirmar que o sistema garantista, articulado como está em sólidas premissas, visa assegurar dignidade à existência humana.

Garantismo e minimalismo penal
O Estado deve intervir minimamente na esfera de liberdade do cidadão. O direito penal é a ultima ratio do sistema de justiça social e a punição pelo cometimento de crimes deve criteriosa obediência aos ditames do devido processo legal. Nesse sentido, é importante sublinhar que a ideia de garantismo em nenhum momento defende a abolição do sistema penal, mas tão-somente a sua contenção, pois essa é uma maneira de se minimizar o arbítrio estatal.

Embora o sistema criminal apresente falhas e distorções de todo indesejáveis, mormente porque reproduz as inumeráveis injustiças sociais, o garantismo penal não se volta preferencialmente contra tais aspectos, centrando os seus esforços na descoberta de parâmetros que tragam soluções para os principais problemas do direito e do processo penais, para tanto buscando responder com proficiência às quatro perguntas que justificam a punição, a proibição e o julgamento: "se, por que, quando e como punir", "se, por que, quando e como proibir" e "se, por que, quando e como julgar".

O direito penal mínimo empunha potentes armas contra os pensamentos utilitários que levam à formalização de meios penais fortes e ilimitadamente severos (v.g., prisão perpétua e pena de morte). Conforme ressaltado por Ferrajoli, esse padrão utilitário "deve ser partido ao meio", ou seja, deve-se ter em mente que além do máximo bem-estar possível dos não desviantes, a ordem estatal precisa assegurar o mínimo mal-estar necessário dos desviantes [6]. Almeja-se, com isso, tornar vigente "um direito penal mínimo necessário", que inexoravelmente redundará em penas mínimas, a serem aplicadas à luz de critérios humanitários, que são, por definição, critérios garantistas, entabulados na Constituição e, por espelho, nas leis infraconstitucionais.

Com isso não se está a descurar do efeito dissuasório (punitur ne peccetur) que deve animar a positivação do direito penal. O próprio Ferrajoli justificará o minimalismo nos seguintes termos: "trata-se da prevenção, mais do que dos delitos, de um outro tipo de mal, antitético ao delito, que normalmente é negligenciado (…). Este outro mal é a maior reação — informal, selvagem, espontânea, arbitrária, punitiva mas não penal — que, na ausência das penas, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou institucionais solidárias a ele" [7]. Por esse prisma, Ferrajoli sentencia que a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas no mesmo passo as injustas punições (reação violenta ao delito), de sorte que tutela tanto a pessoa do ofendido quanto o delinquente, sendo o contrário disso a barbárie.

O minimalismo penal reivindica que o limite máximo das penas não pode violar as razões que justificam a assunção pelo Estado do jus puniendi em detrimento das vetustas práticas de vingança privada. O direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, ambas de caráter negativo: a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas [8]. Em outras palavras, a história do direito penal e do seu mais palpável produto, que é a pena, compreende uma longa e permanente luta contra as práticas de vingança, pouco importando se promanadas de indivíduos ou inclusive da entidade estatal.

Garantismo penal versus impunidade
Do que já fartamente assinalamos nesse texto, infere-se que a versão penal do imaginário garantista tem por escopo a tutela do inocente e a minimização da reação estatal ao delito. Desse modo, o garantismo não objetiva e sequer tem vocação para produzir impunidade no seio social, ao contrário do que propalam os seus detratores, carentes de argumentos mais substanciosos.

Em verdade, a impunidade é maléfica e possui diversas causas. Nenhuma delas, porém, está ligada ao sentimento garantista, o qual, repita-se, mira objetivos outros, extraídos do paradigma liberal-positivista. Além disso, pode expandir-se em três direções: 1) na tutela dos direitos sociais e não somente dos direitos de liberdade; 2) em contraste com os poderes privados e não somente com os poderes públicos; e 3) a nível internacional e não somente estatal [9]. Nesse diapasão, cumpre destacar que o garantismo penal definitivamente não rima com impunidade.

Por todo o exposto, ressuma sem sentido a oposição ordinariamente feita entre "garantismo", de um lado, e "punitivismo", do outro, uma vez que a aplicação do direito penal com a respectiva imposição de punição ou sanção ao infrator não pode prescindir do respeito aos postulados garantistas. Trata-se, pois, de um falso dilema, engendrado com a finalidade de justificar plataformas autoritárias.

Não há dúvidas de que o "punitivista" de hoje será o "garantista" de amanhã quando a arbitrariedade punitiva do Poder Público bater a sua porta. Ser garantista, em suma, significa não mais do que respeitar a Constituição Federal — considerada a sua força normativa — e as leis, que a ela devem subserviência.

Conclusão
O garantismo torna o exercício do poder penal mais humano, sendo um dos pilares do Estado democrático de direito. Corolário do modelo garantista, o direito penal mínimo se pauta, dentre outros critérios, na presunção de inocência do acusado até a sentença condenatória definitiva, no princípio in dubio pro reo e na interpretação teleológico-restritiva dos tipos penais, opondo-se à irracionalidade do maximalismo penal. É inválido o argumento segundo o qual o garantismo penal semeia a impunidade, de vez que a legitimidade da condenação depende da real observância aos preceitos constitucionais e legais, firmados em bases eminentemente garantistas.


[1] A propósito, o artigo 59 do Código Penal brasileiro diz que o juiz estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: as penas aplicáveis dentre as cominadas; a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; e a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

[2] Referência a um período de grave agitação social, marcado por desenfreados atos de violência, inclusive com práticas de terrorismo, em que uma juventude radical e desiludida com as condições político-sociais da época resolveu travar uma insana luta antifascista, incorporando, na Itália e em outras partes da Europa, o lema de "fazer justiça com as próprias mãos". A legislação de emergência, assim, surgiu com o fito de conter tais atitudes, sem embargo de ter trazido um sistema punitivo especial, porquanto representado por medidas notadamente de caráter policialesco, infensas ao moderno sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. de Ana Paula Zomer Sica et al. 4ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 317-318.

[4] Um deles consiste na elaboração de técnicas jurídicas (garantias ou condições de legitimidade do exercício do poder judicial) no plano teórico, torná-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prático, o que pode dar azo à discricionariedade da função judicial, confrontando o poder de cognição com o poder de disposição. Confira-se: FERRAJOLI, op. cit., p. 70-71.

[5] FERRAJOLI, op. cit., p. 91.

[6] FERRAJOLI, op. cit., p. 308.

[7] FERRAJOLI, op. cit., p. 309.

[8] Confira-se, a esse respeito: FERRAJOLI, op. cit., p. 310.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Trad. de Alexandre A. de Souza. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2012, p. 85.

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

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