Embargos Culturais

Eduardo Bittar e o tema dos "enunciados doutrinários"

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de maio de 2022, 8h03

Tenho comigo aqui a edição de 2019 de Introdução ao Estudo do Direito, de Eduardo Carlos Bianca Bittar, professor da Universidade de São Paulo. O livro é uma inovação no mercado editorial. Do ponto de vista temático e estrutural é um avanço em relação aos textos tradicionais, que lemos nos últimos anos: Miguel Reale, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Paulo Dourado de Gusmão, Hermes Lima, Paulo Nader, Ronaldo Polleti, Piragibe da Fonseca, entre tantos outros, todos de altíssima qualidade.

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O livro de introdução do professor Bittar é particularmente interessante no capítulo dedicado às fontes do Direito, que me parece o tema central de qualquer discussão jurídica de maior seriedade. Bittar evita o trato comum do assunto. Discorre sobre fatos sociais e fatos jurídicos. Não se trata de nova concepção do tema das fontes materiais e formais. Há uma sutilidade aqui. O autor repassa a metáfora da fons et origo e demonstra que, de fato, a teoria das fontes é um apêndice da glorificação do monismo jurídico, característica da tradição continental que herdamos.

Há problemas com essa concepção, que Bittar explica a partir de uma outra metáfora, com referência a uma cortina de fumaça, no âmbito da qual insere-se o direito estatal. O corte cartesiano (a expressão está no livro) identifica preocupação com fontes formais, estatais, o que neutralizaria a reflexão sobre as complexidades da origem do direito. Na compreensão do livro, a metodologia do monismo (parece-me) desvia a atenção para com as fontes de legitimação popular. Diminui-se a extensão da sociologia e da antropologia, de importância para a reflexão jurídica.

Do ponto de vista das chamadas fontes sociais, o livro enfatiza o permanente estado de mutação da ordem jurídica positiva, que não despreza um diálogo com demais nichos da experiência cultural, a exemplo da moral, da religião, da política, da economia e da ciência. Pelo que entendi do livro (e posso estar enganado), a crise do paradigma legalista-positivista sugere uma erosão nos postulados nas teorias tradicionais das fontes do direito.

Emergem teorias críticas, democráticas e pluralistas, com consequente questionamento da premissa da unidade das fontes do Direito. Para o autor, a teoria tradicional só leva em conta a fonte que tem poder de vinculação. Concordo. Posso ilustrar a premissa com decisão de tribunal estadual que reconheceu (atendendo à argumentação de advogados da Funai) que a punição determinada por uma comunidade indígena, em relação a um homicídio cometido na tribo, afastava a pretensão punitiva do Estado. Os promotores pretendiam levar o homicida ao tribunal do júri. Houve condenação na comunidade, com penas muito mais brandas, se buscamos compreender o assunto com o preconceito típico do monista intransigente.

O poder de vinculação, no caso, decorria do reconhecimento da Constituição e da legislação de regência, que reconhecem a prestabilidade da fonte normativa e regulatória tradicional. Nesse caso, ao contrário do que se possa apressadamente conceber, vingava o monismo, e não o pluralismo. O poder de vinculação era substancialmente estatal.

O autor trata também das fontes do Direito em espécie. Explicada detalhadamente a legislação, com explicações sobre validade, vigência, eficácia, legitimidade e justiça. Há também explicações sobre tratados internacionais, convenções coletivas de trabalho, negócios jurídicos. Esses últimos são parcimoniosamente classificados.

O autor nos dá conta de uma visão contemporânea de jurisprudência, cuja polissemia identifica de imediato: ciência do direito e ato de decisão. Trata do assunto com referência ao estado da arte que presenciamos, à luz do postulado da uniformização do direito, como lemos no artigo 926 do Código de Processo Civil. Entende-se nas entrelinhas que de nada adianta sermos iguais perante a lei, se não o somos perante a jurisprudência.

No livro de Bittar há também uma sistematização do tema dos costumes, que o autor identifica como práticas socioculturais espontâneas, comuns e não escritas. Trata inclusive da prova do costume, com referência ao artigo 376 do CPC. Em seguida cuida da doutrina, que eu penso ser mais uma construção conceitual que tomamos da teologia. Para o autor a doutrina é um corpo metódico que organiza o conhecimento jurídico. Remete o leitor ao direito romano. O assunto também foi estudado por Antonio Bento Betioli, em outro livro de Introdução que, ao lado do livro de Bittar, talvez identifique o que hoje de melhor temos no assunto.

O ponto que me chamou a atenção no livro de Bittar está no assunto dos “enunciados doutrinários” como fonte do direito. Enunciados doutrinários são postulados definidos por estudiosos e práticos, a exemplo de conclusões sumuladas de Jornadas de Direito Civil, de Direito Processual, entre outras. Cuida-se de um assunto que sugere investigação permanente. Qual a natureza, a extensão, o limite e as possibilidades desses enunciados?

Construídos em congressos e jornadas, a exemplo de encontros no Superior Tribunal de Justiça, revelam um poder persuasório frequentemente utilizado em peças judiciais, inclusive em decisões. Consubstanciam linha argumentativa poderosa, ainda que não vinculante, porém substancialmente persuasiva. Esse tópico, que toma poucas páginas, qualifica a inovação do livro.

O autor ainda trata (quanto a teoria das fontes) de práticas contemporâneas de cidadania. Apresenta, ao fim, uma concepção hierárquica diferente, marcada por um afastamento do escalonamento, em favor de um movimento textual, que concebe como anéis conceituais que circulam.

O livro de introdução de Bittar (ao lado de outros, como o de Antonio Betioli, de Dimitri Demoulis, de Alysson Mascaro, de Georges Abboud, de Henrique Carnio, de Rafael Tomaz de Oliveira) mostra-nos que ainda há doutrinadores no país. É uma reação ao lugar comum e a barafunda de achismos que fazem da literatura jurídica contemporânea muitas vezes um terreno de palpiteiros e de aventureiros. Um importante livro, que trata de assuntos importantes. O tema e o mistério dos “enunciados doutrinários” confirmam a afirmação.

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