Opinião

Discurso de ódio visa à subjugação ou eliminação do outro

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30 de junho de 2022, 12h04

Apesar de seu crescente destaque no debate público, o discurso de ódio ainda gera pouca discussão no Brasil. Pode-se atribuir isso, em parte, à cultura do "deixa-disso", na qual se relevam os excessos verbais como forma de evitar conflitos.

Além disso, o brasileiro valoriza a liberdade de expressão, consolidada como cláusula pétrea da Constituição, que, em seu artigo 5º, inciso IV, diz: "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

A importância desse direito é indiscutível. Não haver perseguição por exposição de ideias é base de qualquer sociedade civilizada. Sem liberdade de expressão, perde-se a própria identidade, por não se poder mostrar quem é.

Ela é igualmente cara à coletividade, porque o avanço do conhecimento humano depende da discussão de ideias. Sem liberdade para expressá-las, o debate e o avanço estagnariam.

Tal liberdade significa o direito ao dissenso. Ela está consagrada no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos[2] e também em outros acordos internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos[3], o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[4] e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial[5], dos quais o Brasil é signatário.

Há quem a defenda em grau absoluto. Nesse caso, qualquer fala, não importando seu teor, deveria ser permitida, prevalecendo as melhores ideias após debate público. No entanto, essa posição deve ser vista com reservas. A liberdade de expressão ilimitada pode ameaçar a sociedade com a difusão de discursos de ódio.

O Guia para Análise de Discurso de Ódio, editado pela FGV Direito SP e pela Congregação Israelita do Brasil, define discursos de ódio como manifestações que avaliam negativamente um grupo vulnerável ou um indivíduo enquanto membro de um grupo vulnerável, a fim de estabelecerem que ele é menos digno de direitos, oportunidades ou recursos do que outros grupos ou indivíduos membros de outros grupos, e, consequentemente, legitimar a prática de discriminação ou violência[6].

O discurso de ódio pode assumir diversas formas, de maior ou menor gravidade, podendo ser toleradas, reguladas ou sancionadas, conforme uma análise de sua magnitude[7].

Na melhor das hipóteses, o discurso de ódio visa subalternizar um grupo social. No pior dos casos, a prática pretende eliminá-lo. No Brasil, é frequente e até naturalizado o discurso de cunho racista, misógino e homotransfóbico.

Em 2020, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, mantida pela Safernet, registrou 10.684 denúncias de racismo, 12.698 de misoginia e 5.293 de LGBTfobia na Internet brasileira[8]. Tais números refletem o ódio real contra esses grupos.

Nesse mesmo ano, dos mais de 50 mil assassinatos intencionais ocorridos no Brasil, 38 mil, ou 76%, foram de pessoas negras. Houve aqui, ainda, 1.350 feminicídios, enquanto 60 mil mulheres foram vítimas de estupro. Ainda nesse período, o assassinato de pessoas LGBTQIA+ subiu quase 25% no país[9].

Em 2021, segundo a organização Transgender Europe, o Brasil respondeu por 125 dos 375 assassinatos de pessoas trans no mundo, um terço do total[10].

Vê-se, portanto, a correlação entre a fala e a ação violentas. Podemos dizer que as duas andam de mãos dadas. Exemplo disso é o holocausto judaico na 2ª Guerra Mundial. Os discursos de Hitler foram precursores da execução de seis milhões de judeus pelos nazistas.

No ano passado, a conselheira especial da ONU para prevenção do genocídio, Alice Wairimu Nderitu, afirmou que "não há um único genocídio que não tenha sido precedido por discursos de ódio" [11].

Tudo isso deixa claro que a liberdade de expressão não pode ser ilimitada, como não o é em nossa legislação. O Código Penal pune a incitação pública ao crime (artigo 286) e os atos de calúnia, difamação e injúria (artigos 138,139 e 140). A Lei nº 7.716, de 1989, prevê pena de reclusão e multa por incitação a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Em janeiro deste ano, o Executivo promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Seu Artigo 4 determina o combate aos atos de racismo, discriminação e formas correlatas de intolerância, incluindo aí a disseminação do discurso de ódio [12].

Importante que se diga que o discurso de ódio é incompatível com um ambiente democrático. Ele não visa ao debate, mas à subjugação ou eliminação do outro. Visa a uma hegemonia destrutiva, e não à convivência pacífica entre os diferentes.

Tal prática colide frontalmente com o artigo 3º, inciso IV, de nossa Carta Política, que estabelece como objetivo de nossa República a promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação.

O terreno mais fértil para propagação do discurso de ódio é hoje a Internet, por sua capilaridade e velocidade na disseminação de informações, especialmente nas redes sociais.

Em 2021, quase 5 bilhões de pessoas usaram a Internet, cerca de 60% da população global[13]. Boa parte desse total acessa plataformas de redes sociais. Só o Facebook, em março deste ano, teve uma média diária de quase 2 bilhões de pessoas conectadas[14].

Assim, uma publicação em redes sociais tem o potencial de atingir centenas de milhões de pessoas.

Há também um enorme volume de informações nas redes. Em 2020, 3,2 bilhões de imagens e 720 mil horas de vídeo foram compartilhadas diariamente na Internet[15]. Tal conteúdo variava do factual ao falacioso.

No que tange ao uso de falácias visando ao ódio, vale retornar à questão do holocausto. Muito da propaganda antissemita alemã baseava-se em mentiras. Durante as décadas de 1920 e 1930, o partido nazista divulgou na Alemanha o livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, que descrevia uma suposta conspiração judaica para dominar o mundo. O texto era inteiramente falso, mas chegou a ser usado em escolas da Alemanha nazista [16]. A disseminação sistemática de informação duvidosa foi assim essencial ao genocídio do povo judeu. Hoje, como chamaríamos Os Protocolos dos Sábios de Sião? Muito provavelmente de fake news. Fake news tem sido o termo genérico a designar o caos informacional de hoje, mas o entendemos limitado para esta discussão. Adotaremos desinformação em seu lugar. Há vários meios de desinformar. Um deles é apresentar como sátira um ataque a um grupo, como no caso de "piadas" racistas, misóginas e homotransfóbicas. Também é possível mesclar informações verdadeiras com falsas, para conferir alguma verossimilhança à publicação. Outra abordagem é apresentar informações verdadeiras, mas falsear ou omitir o seu contexto, induzindo as pessoas a erro. No limite, pode-se divulgar conteúdo 100% fabricado, como os Protocolos dos Sábios de Sião[17].

Hoje, o caso mais preocupante de conteúdo fabricado chama-se deepfake. Com o uso de inteligência artificial, é possível produzir vídeos falsos muito convincentes. Em 2018, um cineasta criou um vídeo de Barack Obama xingando Donald Trump. Obama jamais fez isso, e o cineasta revelou a fraude no próprio vídeo, alertando para os perigos dessa tecnologia[18]. Por tudo isso, a desinformação e o discurso de ódio devem ser contidos. Alcançar essa meta envolve vencer ao menos dois obstáculos.

O primeiro é a detecção dos conteúdos nocivos em meio a tantos dados; o segundo é separar informação legítima da adulterada, nesse oceano informacional.

Superá-los requer a colaboração das plataformas digitais. Sem moderação de conteúdo por elas, a missão é quase impossível. O volume de dados demanda um alto nível de automatização na identificação da retórica da violência e dos conteúdos enganosos. As plataformas de mídias sociais possuem recursos tecnológicos, humanos e financeiros para isso.

Quanto à moderação de conteúdo, existe um conflito de interesses das empresas donas das redes sociais. As maiores receitas dessas plataformas advêm da publicidade divulgada em seus ambientes. Ou seja, Facebook, Twitter, YouTube e similares lucram conforme sua audiência.

A promoção de conteúdos é feita por algoritmos criados para maximizar a audiência. Temas polêmicos ou chocantes atraem mais usuários, destacando-se nas plataformas.

Em 2018, uma rede social foi apontada por investigadores da ONU como tendo papel crucial no massacre de minorias muçulmanas em Mianmar, ao permitir que o discurso de ódio prosperasse em seu ambiente. Isso impulsionou ações violentas contra as pessoas seguidoras do Islã naquele país[19].

Houve situações similares em outras nações. Parte dos problemas na moderação residia em falhas nos algoritmos de controle, ou em moderadores humanos incapazes de notar a gravidade dos conteúdos[20]. Aparentemente o lucro ficou à frente da proteção das pessoas.

Tais cenários podem se repetir no Brasil, pois 70% dos internautas se informam por redes sociais[21].

A educação é essencial para enfrentar essa ameaça. À formação tradicional deve somar-se o letramento digital, fomentando o pensamento crítico ante os conteúdos recebidos. Deve-se também capacitar as pessoas a checar informações na própria Internet, bem como fornecer os meios para isso.

Em 2020, 58% dos usuários brasileiros acessavam a Internet exclusivamente pelo celular[22]. Em 2021, mais de 60% dos brasileiros usavam planos móveis pré-pagos[23], oferecidos muitas vezes com dados ilimitados para uso do Whatsapp, grande fonte de desinformação[24], mas restritos para navegação na Internet.

Seria razoável que o acesso a sites de checagem de informações fosse também ilimitado nesses planos.

Nessa linha, o Senado Federal aprovou a PEC nº 47/2021, que visa tornar a inclusão digital um direito fundamental da população[25]. Se promulgada, a medida obrigará o poder público a promover políticas públicas de ampliação de acesso à Internet em todo território nacional[26].

Barrar o discurso de ódio e a desinformação requer moderação de conteúdos mais efetiva por parte das redes sociais.

É urgente legislar sobre esse tema. Sem controle sobre os conteúdos publicados — não confundir com censura prévia — e remoção daqueles fraudulentos ou violentos, persistirão o discurso de ódio e a desinformação.

O Estado deve promover campanhas educativas contrárias à retórica do ódio. Deve também prover mecanismos de proteção às vítimas dessa prática.

Também é preciso promover ações judiciais por crimes de injúria, difamação, racismo e homofobia quando praticados pela Internet.

Sem a mobilização do Estado e dos cidadãos, as agressões tendem a crescer, o que pode levar à ruptura social. Nesse cenário, a coletividade se fragmentará em muitas facções conflitantes, levando à derrocada deste país.

Combater o discurso de ódio e a desinformação é, portanto, mais do que proteger populações específicas; é garantir às próximas gerações a existência de uma nação chamada Brasil.


[*] Este texto é uma adaptação de palestra proferida pelo autor em 22/06/2022 na Escola Superior do Ministério Público Federal.

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em 13/06/2022.

[4] Art. 19, 2. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 02/06/2022.

 

[5] Art. 5º, VII. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html. Acesso em 02/06/2022.

 

[6] Aqui.  Acesso em 13/06/2022.

 

[7] Aqui.  Acesso em 13/06/2022.

[8] Dados disponíveis em https://indicadores.safernet.org.br/. Acesso em 06/06/2022.

[9] Conforme informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/infografico-2020-v6.pdf. Acesso em 02/06/2022

[10] https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2021/. Acesso em 25/05/2022.

[11] Em entrevista à Agência Pública. Disponível em https://apublica.org/2021/08/nao-ha-um-unico-genocidio-que-nao-tenha-sido-precedido-por-discursos-de-odio. Acesso em 03/06/2021.

[12] Conforme o texto do Decreto nº 10.932, de 2022. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm. Acesso em 03/06/2022

[13] Conforme notícia do portal G1, disponível em https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2021/12/01/mais-de-um-terco-da-populacao-mundial-nao-tem-conexao-com-a-internet-segundo-a-onu.ghtml. Acesso em 02/06/2022.

[14] Conforme notícia do site Canaltech. Disponível em https://canaltech.com.br/apps/facebook-volta-a-apresentar-crescimento-de-usuarios-em-2022-215101/. Acesso em 02/06/2022.

[15] Conforme artigo disponível em https://theconversation.com/3-2-billion-images-and-720-000-hours-of-video-are-shared-online-daily-can-you-sort-real-from-fake-148630. Acesso em 02/06/2022.

[16] https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/protocols-of-the-elders-of-zion. Acesso em 02/06/2022.

[17] Tipos de desordem informacional propostos pela organização FirstDraft, no ebook Guia Essencial da First Draft para Entender a Desordem Informacional. Disponível em https://firstdraftnews.org/wp-content/uploads/2020/07/Information_Disorder_Digital_AW_PTBR.pdf?x58095. Acesso em 03/06/2022.

[18] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/nem-vendo-para-crer/. Acesso em 08/06/2022.

[19] Conforme reportagem do jornal The Guardian. Disponível em https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/13/myanmar-un-blames-facebook-for-spreading-hatred-of-rohingya. Acesso em 04/06/2022

[20] Conforme reportagem do jornal El País. Disponível em https://brasil.elpais.com/economia/2021-10-26/facebook-tolerou-discursos-de-odio-em-paises-em-guerra-em-prol-de-seu-crescimento.html. Acesso em 04/06/2022

[21] https://canaltech.com.br/seguranca/7-em-cada-10-brasileiros-se-informa-por-redes-sociais-e-isso-afeta-a-seguranca-198668/. Acesso em 04/06/2022.

[22] Conforme informe à imprensa da Cetic. Disponível em https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2020_coletiva_imprensa.pdf. Acesso em 04/06/2022.

[25] Conforme matéria do portal G1. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/02/senado-aprova-pec-que-coloca-inclusao-digital-entre-direitos-fundamentais-da-populacao.ghtml. Acesso em 07/06/2022.

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