Opinião

Irrelevância penal do sexo consensual entre menores de 14 anos

Autor

30 de junho de 2022, 20h25

Nos últimos dias, o caso da menina de 11 anos grávida cuja mãe pediu na Justiça de Santa Catarina pela interrupção da gestação repercutiu pelo país. O caso foi originalmente noticiado pelo The Intercept Brasil, em colaboração com o Portal Catarinas, que divulgou que a gravidez havia resultado de estupro e que a menina estava sendo mantida por decisão judicial em um abrigo para que não abortasse, embora estivesse legalmente autorizada a abortar. A notícia também publicou recortes da audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora de justiça Mirela Dutra Alberton, então responsáveis pelo processo, questionaram a criança sobre a continuidade da gestação [1].

A reportagem desencadeou diversas reações e manifestações. O Conselho Nacional de Justiça informou ter instaurado procedimento administrativo para apurar a prática de infração disciplinar pela juíza [2]. O Ministério Público Federal reconheceu a possibilidade de aborto legal e recomendou a interrupção da gestação, o que, conforme o próprio MPF noticiou, foi realizado no último dia 23 [3].  

Depois da reportagem do The Intercept Brasil, o portal Brasil Sem Medo noticiou que a polícia civil de Santa Catarina havia revelado que a menina grávida havia mantido relações sexuais com um outro menor de idade que seria um meio-irmão dela. Ainda segundo a matéria, o menino teria 13 anos de idade [4], ou seja, outro igualmente vulnerável.

No mesmo sentido, a CNN Brasil divulgou que o delegado de polícia civil de Tijucas havia confirmado que a menina grávida havia tido relações sexuais com um adolescente de 13 anos de idade, acrescentado que, de acordo com os depoimentos que colheu, as relações sexuais haviam sido consensuais [5].

Nenhuma das informações veiculadas pela imprensa podem ser confirmadas por meio do acesso ao conteúdo do inquérito policial ou do processo, uma vez que o caso está sendo apurado e discutido em segredo de justiça, com acesso autorizado apenas aos envolvidos, o que é próprio dos processos e procedimentos que envolvem crianças e adolescentes. Mas já se pode perceber que o The Intercept Brasil aparentemente não contou toda a história.

Independentemente da precisão das informações, questões relevantes se anunciam: qual a relevância do sexo consentido entre menores de 14 anos para o Direito Penal? E ainda: a gravidez da menina de 11 anos realmente resultou de estupro? Será que o caso realmente se adequava à hipótese de aborto autorizado por lei? Para responder às indagações, precisamos primeiramente compreender alguns pontos.

As hipóteses de aborto permitido estão previstas no artigo 128 do Código Penal, que assim dispõe: "não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal".

De fato, a lei autoriza o denominado aborto humanitário ou sentimental em caso de gravidez resultante de estupro, condicionando-o apenas ao consentimento da gestante (ou do representante legal), pelo que se conclui que tal aborto independe de autorização judicial [6].

Embora dispense autorização judicial, o aborto humanitário depende de a gravidez ter decorrido de estupro. Assim, o médico deve se certificar sobre a ocorrência do estupro, o que pode fazer por meio da verificação da existência de inquérito policial, boletim de ocorrência, processo judicial ou qualquer outro meio pelo qual possa confirmar a alegação da gestante [7]. Uma vez convicto de que a gravidez resultou de estupro, o médico está legalmente autorizado a realizar o aborto  caso contrário, poderá responder penalmente pelo delito de aborto provocado por terceiro (artigos 125 e 126, CP).

E o que configura o crime de estupro?

O estupro está previsto no art. 213, caput, do Código Penal, que definiu como crime "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".

O estupro pode ser praticado por qualquer sujeito  homem ou mulher  que empregue violência ou grave ameaça contra uma pessoa para com ela ter conjunção carnal ou praticar qualquer outro ato libidinoso, inclusive por adolescente (entre 12 e 18 anos de idade), que poderá ter que cumprir medida socioeducativa por ato infracional equiparado ao estupro, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990) [8]. Quanto ao ofendido, qualquer pessoa maior de 14 anos de idade pode ser vítima do crime de estupro previsto no artigo  213 do Código Penal. 

Para o estupro praticado contra menor de 14 anos, a legislação reservou um tipo penal específico (e com pena mais rigorosa), a saber, o estupro de vulnerável, que está previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, segundo o qual constitui crime punível com pena mínima de oito anos "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos".

Diversamente do que ocorre no estupro de não-vulnerável, o estupro de vulnerável dispensa que o autor do crime empregue violência ou grave ameaça contra a vítima. Nesse crime, a violência (implícita) decorre da presunção de incapacidade da pessoa menor de 14 anos para consentir com a prática de um ato sexual [9]. Assim, praticar conjunção carnal  sexo vaginal  ou qualquer outro ato libidinoso  beijo lascivo, sexo anal, sexo oral  com menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente do consentimento da vítima (artigo 217-A, §5º, CP).

Retornando à questão do aborto permitido, o dispositivo legal do aborto humanitário faz referência a "estupro", sem adjetivá-lo, de modo que interpretação literal poderia afastar a hipótese de aborto autorizado em caso de gestação decorrente de estupro de vulnerável. Nesse sentido, a lei não puniria o médico por interromper a gestação resultante de estupro em uma mulher adulta, mas, por outro lado, puniria o médico pelo aborto de gravidez resultante de estupro de uma criança. Não é razoável concluir dessa forma, especialmente porque o legislador reconheceu que nas duas situações  estupro de vulnerável e estupro de não-vulnerável  há violência (violência real, no estupro; e violência presumida no estupro de vulnerável). Por coerência, o aborto humanitário deve ser estendido à gestação advinda de estupro de vulnerável [10].

Diante disso, pode-se afirmar que a lei autoriza o aborto quando a gravidez tiver resultado de estupro, seja a gestante pessoa não-vulnerável ou vulnerável (no que estão inclusos os menores de 14 anos de idade).

Com isso estabelecido, voltemos ao caso concreto para resolver a questão proposta.

No caso, tudo leva a acreditar que tanto a menina quanto o garoto tinham (e têm) menos de 14 anos de idade, e, aparentemente, mantiveram relação sexual consentida.

Partindo dessas premissas, em razão do consentimento, impossível juridicamente enquadrar a conduta de qualquer deles no estupro tipificado no artigo 213 do Código Penal. Por outro lado, conforme vimos, manter relação sexual com menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, para o que o consentimento não tem qualquer relevância, nos termos da lei, conforme vimos. Porém, nesse caso, os dois são vulneráveis reais para fins de configuração do estupro previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal (estupro de vulnerável). Assim, tanto ele quanto ela podem ter sido vítimas de estupro de vulnerável, assim como ela ou ele pode ter praticado estupro de vulnerável (mais apropriadamente, ato infracional equiparado a estupro de vulnerável). Em outras palavras, a conduta punível representada não tolera que alguém seja simultaneamente sujeito ativo e sujeito passivo da própria conduta, mas, no caso, tanto ele pode ter sido vítima de estupro de vulnerável praticado por ela quanto ela ter sido vítima de estupro de vulnerável cometido por ele, numa espécie de estupro de vulnerável bilateral.

Mas um vulnerável pode estuprar um outro vulnerável?

O Código Penal foi projetado para os imputáveis, ou seja, para as pessoas maiores de 18 anos de idade [11]. Ao definir estupro de vulnerável como crime no artigo 217-A, caput, do Código Penal, a pretensão do legislador foi proibir que criança e adolescente servissem à satisfação de desejo sexual de adulto, então capaz de aproveitar da incapacidade infantojuvenil de consentir e de resistir ao ato sexual.

Essa percepção permite estabelecer que o tipo penal do delito de estupro de vulnerável envolve dois sujeitos em condições distintas: de um lado, uma vítima vulnerável (menor de 14 anos) e, do outro, um sujeito não-vulnerável cometedor do crime. Desse modo, ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente admita a responsabilização de adolescente por ato infracional análogo ao estupro de vulnerável  ao que corresponderia a conduta de um adolescente de 17 anos que mantém conjunção carnal com uma menor de 14 anos de idade, por exemplo , há um evidente limite: o infrator não pode ser tão vulnerável quanto à vítima (ou seja, também ser menor de 14 anos), pois, caso contrário, não existe a relação de dominação presumida pelo legislador.

Diferente do que o tipo penal exige, no caso concreto em análise, nenhum dos dois envolvidos na relação sexual que originou a gravidez  um de 13 e um de 11 anos de idade  tinha potencial de abusar sexualmente de alguém, no sentido de aproveitar da condição de vulnerabilidade real da vítima, e isso foi a própria lei que estabeleceu: se o menor de 14 anos não tem capacidade de discernimento para consentir com a prática de um ato sexual, tampouco tem capacidade para sexualmente subjugar outra pessoa sem que empregue violência ou grave ameaça. Ambos eram penalmente irresponsáveis e legalmente incapazes de abusar um do outro.

A respeito disso, importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça já considerou que a resposta penal prevista no artigo 217-A, caput, do Código Penal, pode não ser proporcional à situação de jovens que mantêm relacionamento amoroso e sexual desde a infância e adolescência de ambos e que resulte em convivência estável após o rapaz completar 18 anos de idade (REsp nº 1.480.881/PI, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 10/9/2015 [12]).

Na verdade, no caso aqui analisado, não houve estupro  porque, em princípio, a relação sexual foi consentida , tampouco estupro de vulnerável  na medida em que nenhum estava em condição de subjugar o outro. Por conseguinte, também não houve ato infracional equiparado.

Nesse cenário, com base nas informações etárias e fáticas confirmadas pelo delegado de polícia que conduz a apuração dos fatos, o caso não atraía a incidência do permissivo legal do aborto sentimental, considerando que nenhum estupro ocorreu. Ao fim e ao cabo, inexiste hipótese abortiva respaldada na lei penal quando os fatos analisados traduzirem gravidez originária de sexo consentido entre menores de 14 anos.


[6] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro: parte especial (artigos 121 a 249 do CP). v. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 149-153. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial (arts. 121 a 212 do Código Penal). v. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 210-215.

[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (artigos 121 a 154-B). 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 609-611. PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 249 do CP). v. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 153-154; NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial (artigos 121 a 212 do Código Penal). v. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 213.

[8] ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado artigo por artigo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 544-554.

[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (artigos 213 a 311-A). v. 4. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 152-194. PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro: parte especial (artigos 121 a 249 do CP). v. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 910-919.

[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (artigos 121 a 154-B). 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 611. SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal: parte especial (artigos 121 a 154-A do CP). v. 2. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 136-137.

[11] Artigo 27 do Código Penal: Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.  

[12] Recurso especial julgado sob o rito dos recursos repetitivos que originou a tese fixada no Tema Repetitivo 918, qual seja: "Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no artigo 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!