Opinião

Cláusula de apuração de haveres e dissolução parcial de sociedade

Autor

  • José Alves Neto

    é advogado no GMPR advogados membro permanente da Escola de Formação em Advocacia Empresarial (Efae) associado ao Instituto de Estudos Avançados em Direito (Iead) e especialista nas áreas de Direito Empresarial e Planejamento Sucessório.

30 de junho de 2022, 16h04

1) Riscos decorrentes da falta de previsão da cláusula que trate da apuração de haveres
O rompimento parcial do vínculo societário é um dos momentos mais turbulentos pelos quais uma sociedade (seja empresária ou simples) pode passar.

Quando ocorre alguma hipótese que enseja a resolução parcial desse vínculo (como a retirada [1], a exclusão [2], o falecimento [3] ou o divórcio [4] de algum sócio), incumbe à sociedade apurar o valor das quotas que pertenciam ao sócio que suportou o rompimento, para que, na eventualidade de o montante apurado ser positivo, a quantia resultante da avaliação seja paga ao titular dos haveres.

Nesse caso, a sociedade, se instada pelo titular [5] desse direito patrimonial societário, tem o dever de liquidar e pagar o montante da quota sobre a qual recaiu a ruptura.

A despeito do forte impacto financeiro que tal situação pode gerar à sociedade, observa-se que, na prática, a forma pela qual se dará a apuração dos haveres (como o procedimento a ser seguido, o critério de avaliação a ser adotado e a forma de pagamento) não acaba sendo regulada pelos sócios em cláusula específica do contrato social.

Mencionada omissão pode causar alguns inconvenientes aos sócios remanescentes, que podem ver a sociedade suportar uma repentina descapitalização capaz de levá-la à insolvência. De acordo com o artigo 609 [6] do Código de Processo Civil e com o §2º [7] do artigo 1.031 do Código Civil, na ausência de cláusula contratual, a sociedade teria o exíguo prazo de 90 dias para efetuar o pagamento da integralidade da quota liquidada.

Tal falta de cuidado pode, ainda, colocar nas mãos do Judiciário (órgão estatal que desconhece o dia a dia empresarial e as peculiaridades daquela sociedade parcialmente dissolvida) a difícil tarefa de eleger o critério de avaliação dos haveres.

2) Regulamentação da cláusula que trata da apuração dos haveres. Possibilidade de se prever os critérios de avaliação da quota e a forma de pagamento. Expectativa de haver a superação do entendimento adotado no REsp 1.335.619/SP. Autonomia privada dos sócios há de ser respeitada
Nesse contexto, a pactuação, no contrato social, de cláusula que trate da apuração dos haveres é uma medida capaz de assegurar à sociedade e aos sócios uma maior previsibilidade (financeira e procedimental) dos impactos gerados pela liquidação de quotas decorrente de eventual resolução parcial do vínculo societário.

Deste modo, ao invés de a sociedade ser obrigada a adimplir a totalidade dos haveres no prazo de 90 dias contados da data da liquidação, os sócios podem inserir no contrato social cláusula que estabeleça que o pagamento ocorrerá no período de 12 meses.

De outro lado, os sócios podem prever cláusula que fixe o critério de avaliação a ser utilizado na apuração de haveres. A título de exemplo, os sócios podem prever critério de avaliação que considere tão somente o valor de mercado dos ativos tangíveis e intangíveis que compõem o patrimônio social, de modo que a subjetiva projeção de lucros futuros e incertos a serem eventualmente auferidos pela sociedade não seja levada em consideração.

Há, ainda, respeitada doutrina que admite a possibilidade de se prever critérios de avaliação diversos para hipóteses distintas de resolução parcial do vínculo societário [8].

Vê-se, destarte, a importância de se regulamentar no contrato social a questão da apuração de haveres. Destaque-se que, se respeitadas as limitações de ordem pública (como a observância do princípio da boa-fé objetiva [9], a proibição da sociedade leonina [10] e a vedação do enriquecimento sem causa), a legislação confere aos sócios ampla liberdade para confeccionarem esta cláusula.

Discorda-se do entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp 1.335.619/SP, que aduz que o "critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado" [11].

Como muito bem pontua Alfredo Assis Gonçalves Neto ao criticar o voto vencedor (de lavra da ministra Nancy Andrighi) e ao defender o voto vencido (de lavra do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva) do aludido precedente, "o consenso prévio, estabelecido por cláusula contratual, não pode ser desprestigiado quando, ocorrendo a situação nele prevista, as partes discordarem do resultado de sua aplicação" [12].

Afastar a aplicabilidade de cláusula que disciplina a apuração de haveres com base em simples discordância das partes quanto ao resultado alcançado (sem que tenha havido infração a qualquer disposição de ordem pública) é entendimento pernicioso à autonomia privada dos sócios.

Ora, disposições contratuais servem justamente para regrar situações potencialmente conflituosas. O fato de haver discordância quanto ao resultado alcançado não deve ensejar a inaplicabilidade da cláusula que escolhe o critério de avaliação dos haveres.

Acredita-se que o entendimento adotado no REsp 1.335.619/SP (e replicado em posteriores julgados do STJ) tende a ser superado, visto que, a nosso ver, ele é contrário ao disposto nos artigos: 1) 421 [13], 421-A, II e III [14], e 1.031 [15], do Código Civil; 2) 602, II [16], e 606 [17], do Código de Processo Civil; e 3) 3º, VIII [18], da Lei nº 13.874/2019 (a conhecida "Lei da Liberdade Econômica"). Tais dispositivos legais conferem aos particulares ampla liberdade para regrar a forma pela qual se dará a apuração dos haveres sem que haja indevida intervenção do judiciário.

3) Conclusão
Recomenda-se, portanto, que os sócios de determinada sociedade pactuem, no respectivo contrato social, cláusula que trate da forma pela qual ocorrerá a apuração dos haveres na hipótese de haver a resolução parcial do vínculo que os une.

Aludida pactuação, permitida pela legislação pátria e pela doutrina especializada, é um mecanismo que confere maior previsibilidade e segurança financeira quanto ao procedimento de liquidação e pagamento das quotas da sociedade parcialmente dissolvida.

Tem-se, ainda, a expectativa de que o entendimento adotado no REsp 1.335.619/SP será superado, visto que a mera discordância dos sócios quanto ao resultado advindo da liquidação das quotas não pode afastar a aplicabilidade de cláusula que determine a apuração dos haveres.

 


[1] Art. 1.029, caput, do Código Civil: "Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa".

[2] Art. 1.030 do Código Civil: "Ressalvado o disposto no art. 1.004 e seu parágrafo único, pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente".

[3] Art. 1.028, caput, do Código Civil: "No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota […]"

[4] A depender do regime de bens do casamento, a quota, que possui natureza jurídica de bem móvel, pode se submeter à comunhão do casal.

[5] Que, a depender da hipótese de ruptura, pode ser o ex-sócio, o espólio/herdeiro ou o ex-cônjuge do sócio.

[6] Art. 609 do Código de Processo Civil: "Uma vez apurados, os haveres do sócio retirante serão pagos conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do § 2º do art. 1.031 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)".

[7] §2º do art. 1.031 do Código de Processo Civil: "A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário".

[8] ADAMEK, Marcelo Vieira Von. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Direito processual societário: comentários breves ao CPC/15. 2ª ed., ref. e ampl., São Paulo. Malheiros, 2021, pág. 75.

[9] Art. 422 do Código Civil: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

[10] Art. 1.008 do Código Civil: "É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas".

[11] EMENTA. DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 1.335.619/SP, 3ª Turma, Julgado em 3 de março de 2015).

[12] GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2019, pág. 318.

[13] Art. 421, parágrafo único, do Código Civil: "A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. […] Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual".

[14] Art. 421-A, II e III, do Código Civil: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: […] a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e […] a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".

[15] Art. 1.031, §2º, do Código Civil: "Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. […] A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário".

[16] Art. 604, II, do Código de Processo Civil: "Para apuração dos haveres, o juiz: […] definirá o critério de apuração dos haveres à vista do disposto no contrato social".

[17] Art. 606 do Código de Processo Civil: "Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma".

[18] Art. 3º, VIII, da Lei nº 13.874/2019: "São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: […] VIII – ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública".

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    é advogado no GMPR advogados, membro permanente da Escola de Formação em Advocacia Empresarial (Efae), associado ao Instituto de Estudos Avançados em Direito (Iead) e especialista nas áreas de Direito Empresarial e Planejamento Sucessório.

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