Opinião

Combate ao insider trading no direito brasileiro e a Resolução CVM nº 44/2021

Autor

  • Rodrigo de Abreu Pinto

    é graduando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e coordenador do Núcleo Acadêmico de Direito Societário e Mercado de Capitais da PUC-Rio.

29 de junho de 2022, 11h04

A regulação do mercado de capitais, tanto no Brasil quanto nos principais mercados internacionais, está baseada no princípio do full and fair disclousure que orienta o funcionamento dos mercados conforme a divulgação das informações de modo tempestivo, completo e simultâneo para todos os agentes do mercado.

As companhias que dispõem de valores mobiliários, em especial as listadas em bolsas, devem disponibilizar as informações de modo a permitir que os investidores tomem decisões bem-informadas e os preços negociados reflitam, por sua vez, o valor das informações e a expectativa dos investidores.

George Arthur Akerlof, Prêmio Nobel de Economia, ilustra o sistema de funcionamento do mercado de capitais por meio do comércio de carros usados. Assim como a companhia sabe melhor sobre as suas próprias operações do que o restante do mercado, o vendedor do carro usado também detém vantagens informacionais em relação ao interessado em compra-lo. Caso se dissemine a existência dos chamados lemons, os carros cujo estado de imperfeição só é notado pelo comprador após a compra, a desconfiança tornaria o mercado ineficiente já que, incapazes de distinguir entre os lemons e os carros em bom estado, os compradores passariam a oferecer preços mais baixos para os carros usados em geral.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em sua missão institucional de intervir como agente reguladora do mercado de capitais, estabelece normas e deveres informativos que regulam a conduta dos emissores de valores mobiliários, em especial no que tange às obrigações de disponibilização de informações.

Ao lado da obrigatoriedade de divulgação das informações, a regulação do mercado de capitais depende, como outro lado da moeda, da repressão a atos que desequilibrem a simetria informacional buscada, dentre os quais o chamado insider trading.

O insider trading, compreendido como a prática de auferir ganhos patrimoniais pelo conhecimento de informações ainda não divulgadas sobre as companhias, quebra a simetria informacional e abala o nível de eficiência do mercado, razão pela qual a prática é caracterizada como ilícito penal e administrativo no ordenamento jurídico brasileiro.

A repressão administrativa ao insider trading está disciplinada, em nosso sistema legal, especialmente nos artigos 155 da Lei das S.A. e na Resolução nº 44/2021, que recém-revogou a Instrução CVM nº 358/2002 com o intuito de alterá-la em pontos específicos.

Gênese do insider trading no ordenamento brasileiro
De acordo com a redação original da Lei das S.A. de 1976, apenas os administradores de companhias abertas estavam sujeitos à imputação da prática de insider trading, tal como previsto no §1º do artigo 155.

"§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários".

No âmbito da CVM, por falta de dispositivos mais específicos, a Autarquia utilizou inicialmente o conceito de prática não equitativa, prescrito pela Instrução CVM nº 08/1979, para tratar do uso indevido de informações privilegiadas.

O insider trading passaria a ser tratado de forma mais específica pela Instrução CVM nº 31/84 que foi além do dispositivo da Lei das S.A. e, com base na prerrogativa legal da CVM de assegurar a observância de práticas comerciais equitativas, estendeu a proibição do insider trading para todos que tivessem acesso a informação dessa natureza.

"Artigo 11 — É vedada, como prática não equitativa, a negociação com valores mobiliários realizada por quem quer que, em virtude de seu cargo, função ou posição, tenha conhecimento de informação relativa a ato ou fato relevante antes de sua comunicação e divulgação ao mercado.

Paragrafo único — A mesma vedação aplica-se a quem quer que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação privilegiada ainda não divulgada ao mercado".

No começo dos anos 2000, o legislador se voltou ao aprimoramento do arcabouço jurídico-regulatório destinado à proteção dos investidores, com o objetivo de recuperar a confiança dos brasileiros após o crash da Bolsa do Rio de Janeiro nos anos oitenta e escândalos como das Fazendas Boi Gordo nos anos 1990.

Com vistas a reforçar a capacidade do sistema jurídico de proteger os investidores, a Lei nº 10.303/2001, dentre outras alterações, reforçou a prevenção ao insider trading ao alargar o elenco de pessoas às quais se poderia atribuir o uso ilícito de informação privilegiada na Lei das S.A.. Consolidou-se na lei, portanto, o que a CVM já fazia, inaugurando uma nova fase de combate ao ilícito no ordenamento brasileiro.

"Artigo 155. §4º É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários".

Conceituação do insider trading pela doutrina e jurisprudência
À vista dos novos dispositivos, a doutrina e a jurisprudência cuidaram em estabelecer uma distinção entre dois tipos de insiders: o primário e o secundário. Como explicou Francisco Antunes Maciel Müssnich em dissertação sobre o tema:

"Os insiders primários, também conhecidos como institucionais, são aquelas pessoas que possuem acesso direto à informação privilegiada, em razão de sua função ou cargo, isto é, que estão no interior da companhia.
(…)
Os insiders secundários, por sua vez, não possuem acesso direto à informação privilegiada, obtendo tal informação por meio de outra pessoa, normalmente outro insider seja ele primário seja secundário."

A CVM, com base em tal distinção, editaria a Instrução CVM nº 358/2002 que, além de revogar a Instrução CVM nº 31/1984, incluiu uma descrição mais precisa da relação de cada insider com a informação privilegiada.

"Artigo 13. Antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia, é vedada a negociação com valores mobiliários de sua emissão, ou a eles referenciados, pela própria companhia aberta, pelos acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, ou por quem quer que, em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia aberta, sua controladora, suas controladas ou coligadas, tenha conhecimento da informação relativa ao ato ou fato relevante.

§1º A mesma vedação aplica-se a quem quer que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação ainda não divulgada ao mercado, em especial aqueles que tenham relação comercial, profissional ou de confiança com a companhia, tais como auditores independentes, analistas de valores mobiliários, consultores e instituições integrantes do sistema de distribuição, aos quais compete verificar a respeito da divulgação da informação antes de negociar com valores mobiliários de emissão da companhia ou a eles referenciados".

A jurisprudência da CVM interpretou tais dispositivos e extraiu um sistema de presunções que viabilizaria a sua atividade sancionadora na punição desses ilícitos, em benefício da integridade do mercado de capitais.

Nesse sentido, o colegiado da CVM extraiu as seguintes presunções do artigo 13 da Instrução CVM 358/2002:

1) Presunção de acesso (caput): a própria companhia, os controladores, os administradores, os conselheiros fiscais, e os membros de comitês estatutários têm acesso às informações privilegiadas antes da sua divulgação ao mercado;

2) Presunção de uso (§1): qualquer pessoa que possua a informação privilegiada e negocie valores mobiliários da companhia antes que a informação seja divulgada ao mercado, age com a intenção de obter vantagem indevida.

Como consequência das presunções, tem-se que 1) no caso do insider primário, basta a acusação comprovar a existência de informação privilegiada ao tempo da negociação, já que a presunção atinge os demais elementos da prática ilícita (o acesso e o uso da informação); e 2) no caso do insider secundário, cabe à acusação provar não apenas a existência da informação privilegiada nos idos da negociação, mas também que o acusado teve acesso à informação.

Frisa-se que as presunções, pela sua própria natureza, são relativas e admitem prova em contrário, tão só produzindo o efeito de inversão do ônus probatório em desfavor do acusado. Conforme ressaltado pelos diretores da Autarquia em julgamentos, o regime de presunções foi estabelecido pela dificuldade em identificar a prova material do acesso à informação privilegiada pelo insider; e, não menos importante, como uma estratégia de evitar premissas ou vedações absolutas.

Se é certo que a interpretação serviu ao combate do ilícito pela CVM, não é menos certo que o desalinhamento entre a norma escrita e a regra aplicada dificultava a compreensão pelos regulados, que ficavam dependentes do conhecimento das decisões proferidas em casos concretos.

Edição da Resolução CVM nº 44/2021
Em 21 de agosto de 2021, a CVM editou a Resolução nº 44/2021 que substituiu a Instrução CVM nº 358/2002 com o propósito de harmonizar as regras normativas com a interpretação que lhes é dada e, em especial, incorporar as presunções de acesso e uso à informação privilegiada. Conforme previsto no novo artigo 13:

"Artigo 13. É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, mediante negociação de valores mobiliários.
§1º Para fins da caracterização do ilícito de que trata o caput, presume-se que:
I — a pessoa que negociou valores mobiliários dispondo de informação relevante ainda não divulgada fez uso de tal informação na referida negociação;
II — acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração e do conselho fiscal, e a própria companhia, em relação aos negócios com valores mobiliários de própria emissão, têm acesso a toda informação relevante ainda não divulgada (…)".

A Resolução nº 44/2021, em suma, ratificou a diferença entre o insider primário e o insider secundário pelo fato da CVM, ao julgar o secundário, ficar obrigada a fornecer os indícios concretos de que o acusado teve acesso às informações privilegiadas, ao contrário do insider primário em que prevalece a presunção de que teve acesso à informação pela sua posição na companhia.

Com poucas exceções, a Resolução nº 44/2021 manteve inalteradas as demais regras da antiga Instrução CVM 358/2002. Naquilo que a alterou, conforme vimos acima, reduz possíveis controvérsias acerca da aplicação das normas relativas ao insider trading, em benefício da clareza e previsibilidade das normas que estruturam o mercado e protegem os investidores.

Autores

  • é graduando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e coordenador do Núcleo Acadêmico de Direito Societário e Mercado de Capitais da PUC-Rio.

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