Opinião

Ativismo judicial e conflito entre os poderes

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29 de junho de 2022, 15h02

Diante de sensíveis mudanças no cenário social e na interpretação constitucional, o Poder Judiciário está ganhando, cada vez mais, protagonismo no panorama político e social. Nesse cenário, algumas decisões dos magistrados parecem adentrar no âmbito das funções típicas de outros poderes, fazendo deflagrar diversos questionamentos a respeito dessa posição do Judiciário.

Na aplicação das normas constitucionais, por meio de interpretações realizadas pelo Poder Judiciário, diante de enunciados abertos e indeterminados, pode haver criação de normas pelos magistrados, o que pode consubstanciar em exercício de uma função (a legislativa), que é uma função típica de outro poder. Igualmente, ocorre quando o Judiciário cria políticas públicas, substituindo decisões políticas inerentes à função do Poder Executivo. São decisões judiciais que parecem adentrar na execução de políticas públicas de saúde, de educação, de assistência social, de segurança púbica, entre outras. Todavia, sem dúvidas, quem assume o maior protagonismo nesse cenário é o Supremo Tribunal Federal, especialmente com os novos sistemas de controle de constitucionalidade.

Esse panorama, que passou a ser denominado, para nós, de forma apressada, de ativismo judicial, é alvo de defesas e críticas ferrenhas, provocando uma das maiores polêmicas jurídicas do Brasil atual.

As críticas pautam-se basicamente na afronta ao princípio da separação dos poderes, uma vez que o Judiciário estaria invadindo esferas do Poder Executivo e criando normas gerais e abstratas ao arrepio das discussões e votações por parte daqueles que possuem legitimidade democrática para tanto (Poder Legislativo).

Os defensores da prática ativista por parte do Judiciário apregoam que as constantes mudanças sociais exigem posturas imediatas por parte do Estado, não sendo razoável esperar por decisões dos parlamentares que, muitas vezes, temem votar determinadas matérias com medo de prejuízos eleitorais, como foi o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Aliado a isso, não está o Poder Legislativo isento de tomar medidas que não traduzem os anseios da população, mas sim, determinados interesses derivados de compromissos assumidos com financiamentos privados de campanhas eleitorais.

Mas, o que vem a ser o ativismo judicial?

Elival da Silva Ramos argumenta que "por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante as práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes" [1]. Para o autor, o Poder Legislativo é o mais atingido diante de práticas judiciais ativistas [2].

Destaca Luís Roberto Barroso que "a idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: 1) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; 2) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; 3) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas" [3]. Segundo o autor, diversos fenômenos da atual conjuntura levaram à judicialização da política, em que descreve a ascensão do Judiciário nas democracias modernas, a desilusão com a política majoritária e a preferência (dos próprios políticos) em resolver os problemas institucionais no Judiciário. Ademais, no Brasil, o fenômeno assumiu contornos ainda maiores em virtude do amplo acesso ao controle de constitucionalidade [4].

Ainda de acordo com Barroso, o termo "ativismo judicial" surgiu nos Estados Unidos, durante os anos em que a Suprema Corte foi presidida por Earl Warren (1954-1969), quando houve grande avanço jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais, sem qualquer participação do Executivo ou Legislativo americano. Ainda segundo o autor, o ativismo judicial ganhou conotação negativa, assumindo feições de um exercício impróprio do Poder Judicial, logo após seu surgimento, resultado de uma intensa reação conservadora [5].

Como sabemos, nos sistemas de common law, a jurisprudência ocupa papel essencial como fonte de direito. Nos Estados Unidos, o sistema, que obedece a uma Constituição sintética, presta ênfase ao precedente, produto de várias decisões num mesmo sentido e oriundas de uma Corte de apelação. Tais decisões vinculam o próprio tribunal e seus respectivos juízes, que passam a respeitar o precedente como força de lei. Assim, é fácil perceber que no sistema que adota o precedente, a função do Judiciário confunde-se muito com a do Legislativo, razão pela qual fica difícil identificar o que seria uma atuação ativista do juiz, pois a produção de boa parte das normas também compete aos tribunais, que possuem papel extremamente ativo no processo de formação do direito e, principalmente, no processo de adaptação dos precedentes diante de novas exigências sociais e axiológicas. Nesses países, então, não existe uma conotação negativa do termo ativismo, que facilmente confunde-se com jurisdição [6].

Aqui no Brasil, o tema deve ser tratado com cautela, pois a função jurisdicional não se mistura facilmente com a função legislativa.

Em nossa visão, uma boa parcela de influência surgiu com o chamado "neoconstitucionalismo" [7], que é reconhecido com o surgimento da força normativa da Constituição, com métodos de interpretação mais abertos, com a constitucionalização de muitos direitos, com a reaproximação entre o direito e a moral, além da constitucionalização da política e das relações sociais, com o sensível deslocamento do centro de decisão para o Poder Judiciário em detrimento dos outros poderes.

De fato, é salutar defender a jurisdição constitucional na busca da efetividade da Constituição, mas a pergunta que se faz é: quais são os limites?

Entendemos que os impactos devem ser mensurados em cada caso concreto, levando em conta as particularidades de cada poder e tendo por parâmetro a preservação do regime constitucional reforçado dos direitos e garantias fundamentais.

No que diz respeito ao Poder Legislativo, sabemos que um dos papéis centrais da jurisdição constitucional é justamente retirar do ordenamento jurídico normas expedidas por esse poder que estejam em desacordo com a Constituição.

Mas, nem sempre as decisões que anulam as leis são tomadas por unanimidade no próprio Tribunal Constitucional, o que evidencia a existência de dúvidas e interpretações diversas a respeito da aplicação de norma constitucional. E até mesmo em decisões unânimes, essa dúvida ainda pode existir.

Isso também mostra a dificuldade de se verificar qual a decisão mais correta a ser aplicada ao caso, levantando a questão da legitimidade para conceder a última palavra em um Estado democrático e Constitucional.

A questão que se levanta é justamente a discussão dos limites da atuação do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Poder Legislativo, para anular ou manipular normas positivadas e modular os efeitos de sua vigência, situação que desperta atenção da academia jurídica e levanta diversos questionamentos a respeito dos limites dos poderes estatais.

Definitivamente, falta prestígio ao Poder Legislativo no Brasil. Mas a existência de um Poder Legislativo forte e independente é premissa básica e essencial para o Estado democrático de Direito, pois é nesse poder que se encontra a mais forte expressão da democracia e da representatividade popular, sendo suas decisões as mais próximas da expressão da vontade da maioria, fazendo-se indispensável a construção de parâmetros doutrinários para melhor delimitar o âmbito de atuação do Poder Legislativo e contrapor a enorme carga de livros, artigos, decisões judiciais e trabalhos acadêmicos que prestam ênfase às atividades do Poder Judiciário no Brasil.

Esse fato é socialmente justificável. A acusação de compra de votos, a crença na espúria relação entre poder econômico e vitória nas eleições, o fraco prestígio intelectual dos integrantes do Poder Legislativo e a campanha diária intencionalmente orquestrada pela imprensa para fazer o povo associar mandatos eletivos às relações espúrias, faz com que o Poder Judiciário preencha as expectativas populares da legitimidade e da honestidade.

Todavia, existem defensores da dignidade do Poder Legislativo!

Na visão de Jeremy Waldron, "a nossa jurisprudência está repleta de imagens que apresentam a atividade legislativa comum como negociata, troca de favores, manobras de assistência mútua, intriga por interesses e procedimentos eleitoreiros  na verdade, como qualquer coisa, menos decisão política com princípios. E há razão para isso. Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à ideia de revisão judicial (isto é, revisão judicial da legislação, sob a autoridade de uma carta de direitos)", construiu-se, assim, "um retrato idealizado do julgar e o emolduramos junto com o retrato de má fama do legislar" [8]. Continua o autor dizendo que "as pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais graves e mais sérias dos direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter" [9].

Não entendo tão fácil concluir pela total legitimidade do Poder Judiciário para retirar do ordenamento jurídico leis expedidas democraticamente pelo Poder Legislativo no Brasil, uma vez que as próprias ideias de separação dos poderes e de controle de constitucionalidade foram bastante modificadas em sua entrada no ordenamento jurídico brasileiro.

Com ampla aceitação por parte da sociedade, os Tribunais Constitucionais, por meio de algumas decisões, podem estar exercendo legislaturas sem mandato, na medida em que criam normas sobre temas polêmicos e sensíveis à democracia brasileira, como é o caso da verticalização partidária, da criminalização da homofobia, da discussão sobre a lei de biossegurança, da distribuição dos royalties do petróleo etc.

Até que ponto pode-se dizer que a mais alta corte do Brasil está a extrapolar de sua função de guardiã da constituição para realmente tomar decisões políticas e arranhar o esquema da separação dos poderes?

E como pergunta o próprio Waldron, "por que é o direito feito pelos juízes, não o direito feito pela legislatura, que se liga mais naturalmente a outros valores políticos que 'direito', 'justiça', 'legalidade' e 'estado de direito' evocam?" [10]. Segue dizendo o autor neozelandês em sua crítica: "os juízes erguem-se acima de nós no seu solitário esplendor, com seus livros, seu saber e seu isolamento das condições de vida comum. Se não estão sozinhos na banca, estão rodeados por um número bem pequeno de íntimos de distinção similar com os quais podem cultivar relações de espírito acadêmico, erudição e virtude exclusiva. Um parlamento, em contraste, é um corpo rebelde, muitas vezes maior que esse número  talvez até centenas de vezes maior. Fazendo eco a Blackstone, exige-se um longo percurso para que alguém se torne juiz, mas todo membro do populacho enviado pelos eleitores a Westminster pensa em si como legislador nato. E há tantos deles que não conseguimos nos ouvir pensar. Como isso pode ser uma maneira dignificada de fazer ou modificar o direito?" [11].

Por outro lado, em um Estado Constitucional de Direito é indispensável o papel de um Tribunal Constitucional que faça valer a Constituição perante todos os poderes. A história já demonstrou o perigo de se colocar a política acima da Constituição. Basta recordar que o mau uso do decisionismo de Carl Schmitt resultou no totalitarismo nazista.

Contenção e excepcionalidade: esse é o caminho adequado para o Poder Judiciário preservar o regime democrático e a Constituição, sem perder de vista o seu importante papel na proteção dos direitos das minorias em face da vontade da maioria. A história já mostrou que, sem um sistema constitucional forte e efetivo não há garantias de preservação das individualidades, da igualdade e das liberdades de sujeitos e instituições que não se enquadram nos modelos dominantes.

Sobre a anulação da lei, a contenção há de ser ainda maior, especialmente nas medidas cautelares expedidas pelo STF.

Nesse cenário, não vislumbramos problema na atuação do Poder Judiciário tendente a efetivar direitos já criados pelo ordenamento, assim como o direito à saúde, à educação, à moradia e à existência digna, uma vez que se trata de direito criado pelo próprio legislador constituinte originário, não cabendo, portanto, falar em criação judicial do direito. Assim, a determinação de magistrado que obrigue o Estado a entrega de medicamentos, à prestação de serviços de educação e outras prestações positivas disposta na Constituição, nada mais são do que aplicação do próprio direito.

Enfim, creio que o direito constitucional deve sempre buscar a força normativa da Constituição para que norma e realidade troquem constantes influxos com o objetivo de apaziguar, especialmente, as dificuldades centrais da sociedade brasileira, buscando amenizar problemas, como a pobreza, a má distribuição de renda e as demais injustiças sociais. Nesse contexto, o Poder Judiciário deve assumir papel importante na proteção das minorias, na busca da efetividade dos direitos fundamentais e na guarda da Constituição, por meio de diversos instrumentos que resultam extirpação de leis inconstitucionais do ordenamento jurídico, modelação de políticas públicas, declaração de inconstitucionalidades por omissão etc.


[1] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 129.

[2] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 129.

[3] BARROS, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado, n 13, 2009.

[4] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 230-231.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil Contemporâneo. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodivm. 2011, p. 232-233.

[6] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 105-110.

[7] Ao fazer uma análise crítica do neoconstitucionalismo, Elival da Silva Ramos diz que se trata de um "modismo intelectual" e um conjunto de argumentos frágeis. Para o professor da USP, quanto ao marco filosófico, os neoconstitucionalistas intitulam-se de pós-positivistas, como se o positivismo tivesse deixado de ser o modelo dominante na teoria do direito. Aduz que "na verdade, os neoconstitucionalistas brasileiros são antipositivistas (e não pós-positivistas), mas preferem dedicar um epitáfio ao positivismo jurídico do que se afirmar em combate com essa variante teórica, que continua extremamente influente no campo da Ciência do Direito" (RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 279-281). Luís Roberto Barroso também confere certa "incerteza" ao neoconstitucionalismo ao apregoar que "Talvez esta seja uma boa explicação para o recurso recorrente aos prefixos pós e neo: pós-modernidade, pós-positivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio depois e que tem a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus" (BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. Número 09. Março/abril/maio de 2007. p. 02. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/buscarevistas.asp?txt_busca=Luis%20Roberto%20Barroso>. Acesso em: 20 abr. 2012).

[8] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 02.

[9] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 05.

[10] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 13.

[11] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 37.

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