Opinião

Jurisprudência do STJ e a reforma da Lei de Improbidade Administrativa

Autores

  • Caio Augusto Nazário de Souza

    é advogado LL.M. em Direito Empresarial pela FGV-RJ e especialista em mediação e arbitragem pela mesma instituição.

  • Flávia Smolka Santana

    é graduada em Direito pela PUC-PR com formação complementar pela Università degli Studi di Ferrara (Giurisprudenza) e aperfeiçoamento em Direito Corporativo pela Allez-y e em Direito do Saneamento pela UnB e advogada com experiência em Contencioso Cível Estratégico Direito Administrativo e Contencioso de Massa.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

29 de junho de 2022, 19h29

Em 25/10/2021 foi promulgada a Lei nº 14.230, que provocou profundas e amplas reformas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992). Embora oficialmente se trate de uma reforma, já que a lei segue sob a vigência da numeração antiga, as novidades foram tantas que não é nenhum exagero afirmarmos que estamos diante de uma nova Lei de Improbidade Administrativa.

Ocorre que para além das modificações legais, algumas das novidades conflitam diretamente com a jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça sob a égide da "antiga" [1] lei, de forma que se revela necessária uma análise da jurisprudência do STJ à luz da legislação recente, destacando quais entendimentos devem ser superados e quais dispositivos vieram, pelo contrário, para reafirmar a posição da corte em matéria de improbidade. E esse é o objetivo do presente texto, mas dada a multiplicidade de assuntos passíveis de análise, e o pouco espaço disponível, focaremos em um tema específico: a medida cautelar de indisponibilidade de bens, que recebeu bastante atenção do legislador se comparada com a sua normatização anterior.

Pois bem. Inicialmente importante destacar que a medida cautelar de indisponibilidade de bens foi totalmente reformulada pelo legislador. Se antes o tema era tratado brevemente pelo artigo 7º, com um parágrafo único, agora a matéria está disposta no artigo 16 da lei, que possui nada menos que 14 parágrafos. Evidente, então, a relevância que o legislador atribuiu ao tema, ainda mais porque muitos dos novos dispositivos vieram para pôr fim a diversos entendimentos firmados pelos tribunais superiores, com destaque para o STJ, conforme demonstraremos em sequência.

Os primeiros dispositivos que merecem ser analisados são os §§ 3º e 8º do artigo 16, que estabelecem expressamente ser a medida cautelar de indisponibilidade uma espécie de tutela de urgência, isto é, ela somente pode ser deferida pelo juiz se existente no caso concreto perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, e desde que verossímeis as alegações iniciais. O entendimento do STJ, porém, é exatamente o contrário. Conforme decidiu a corte no julgamento do REsp nº 1.366.721/BA, a medida de indisponibilidade é uma espécie de tutela de evidência, sendo necessária para a sua decretação apenas a demonstração sumária de que o ato imputado ao acusado causou lesão ao patrimônio público ou ensejou enriquecimento ilícito.

O referido julgamento deu origem ao Tema Repetitivo nº 701, assim redigido: "É possível a decretação da 'indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro'".

Com efeito, o periculum in mora, que no entendimento do STJ era presumido, foi considerado pelo legislador elemento indispensável para a decretação da medida de indisponibilidade de bens.

Um outro dispositivo que vai de encontro ao entendimento do STJ é o § 10 do artigo 16, segundo o qual a indisponibilidade de bens pode alcançar somente tantos quantos forem os suficientes para garantir o integral ressarcimento do dano causado ao erário, sendo vedada em qualquer caso a sua incidência "[…] sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita". A jurisprudência do STJ, contudo, vai no sentido contrário: de que a indisponibilidade de bens serve para garantir todas as consequências financeiras oriundas da conduta do agente.

Veja-se, nesse sentido, o teor do Tema Repetitivo nº 1.055: "É possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponobilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no artigo 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos". Mais um caso, pois, em que o legislador promoveu solução de continuidade com relação a entendimento consolidado pelo STJ em matéria de improbidade administrativa.

Outra hipótese de incompatibilidade entre a Lei nº 14.230/2021 e a jurisprudência do STJ diz respeito à possibilidade de decretação de indisponibilidade de bem de família do acusado. A jurisprudência do STJ é firme em admitir que a indisponibilidade recaia sobre bem de família do réu [2], ao passo que o § 14 do artigo 16 somente admite tal possibilidade caso reste comprovado que o imóvel em questão seja fruto de vantagem patrimonial indevida. Com efeito, se sob a égide da "antiga" lei o STJ não estabelecia substanciais vedações à decretação de indisponibilidade de bem de família no bojo da ação de improbidade, com a reforma na Lei de Improbidade tal medida somente passa a ser possível em uma situação: quando o imóvel for fruto de vantagem patrimonial indevida.

Uma quarta modificação digna de nota, encontra-se no § 7º do artigo 16, complementado pelos inciso VI do art 17-C e o caput e § 1º do artigo 3º. De acordo com o entendimento do STJ, é possível o ajuizamento da ação de improbidade contra os sócios da pessoa jurídica ao qual foi imputado o ato ainda que não existam provas concretas indicando a concorrência deles para a prática do ato, e isso porque o recebimento da inicial de improbidade é orientado pelo princípio in dubio pro societate, sendo possível a inserção dos sócios no polo passivo da ação para fins de "[…] apuração de eventual responsabilidade por ato de improbidade administrativa" [3].

Uma consequência jurídico-processual importante desse entendimento reside no fato de que como o sócio já estava no polo passivo da ação, seus bens poderiam ser objeto de indisponibilidade para fazer frente aos danos ao erário pretensamente cometidos pela pessoa jurídica, sem a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

A Lei nº 14.230/2021, contudo, barrou essa prática. Não só estabeleceu requisitos mais rígidos para a inclusão de terceiros no polo passivo da ação, com destaque para os sócios, cotistas, diretores e colaboradores da pessoa jurídica ao qual foi imputado o ato, que somente podem ser incluídos na ação caso comprovadamente houver participação e benefícios diretos (§ 1º do artigo 3º), como também determinou que a medida de indisponibilidade de bens somente pode alcançar terceiros caso demonstrada a sua concorrência para a prática do ato, ou, em se tratando de pessoa jurídica, da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (§ 7º do artigo 16).

Por fim, importante analisar uma última questão. Quando o ato tido como ímprobo consistir na violação dos princípios da Administração Pública (artigo 11 da Lei de Improbidade), casos em que, via de regra, não há dano ao patrimônio público, é possível a decretação da medida de indisponibilidade bens? Para o STJ, sim, vez que entre as sanções para o ato de improbidade que viole os princípios da administração pública está, além do ressarcimento integral do dano — caso exista —, o pagamento de multa civil. E, como para a corte é possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens (Tema Repetitivo nº 1.055), de igual forma é plenamente possível a aplicação da medida quando o ato imputado ao agente é a violação aos princípios da Administração Pública (REsp nº 1.311.013/RO).

Ocorre que, como já visto, a Lei nº 14.230/2021 veda que a medida de indisponibilidade de bens incida sobre valores aplicados a título de multa civil. E se é assim, estaria vedada também a decretação da medida de indisponibilidade bens nos casos do artigo 11 da lei? A resposta é não, desde que o ato violador a princípio cause dano ao patrimônio público, hipótese em que possível o deferimento da medida pelo juiz para garantir o ressarcimento integral desse dano (§ 10 do artigo 16). Em qualquer outro caso, ilegal a decretação da medida.

Segue um quadro esquematizando o exposto:

Entendimento do STJ

Lei nº 14.230/2021

A medida de indisponibilidade é espécie de tutela de evidência.

A medida de indisponibilidade é espécie de tutela de urgência.

A medida de indisponibilidade pode incidir sobre valores aplicados a título de multa civil.

A medida de indisponibilidade somente pode alcançar o ressarcimento integral do dano.

A medida de indisponibilidade pode recair sobre bem de família.

A medida de indisponibilidade apenas pode recair sobre bem de família se fruto de vantagem patrimonial indevida.

Os sócios da pessoa jurídica podem ser incluídos na ação para fins de averiguação de sua responsabilidade.

Sócios e demais terceiros somente podem ser incluídos caso comprovadas sua participação e/ou benefícios diretos.

É cabível a medida de indisponibilidade de bens nos casos de violação aos princípios da Administração.

Somente é cabível a medida de indisponibilidade nas hipóteses do art. 11 caso o ato tenha causado danos ao erário.

Resta ver, agora, como se posicionará o Superior Tribunal de Justiça quando chamado a decidir sobre esses temas. Manterá uma postura de deferência ao legislador ou reafirmará seus entendimentos? Cenas dos próximos capítulos…

 


[1] Aspas, pois, como visto, a Lei nº 14.230/2021 apenas reformou a Lei nº 8.429/1992, e não a substituiu.

[2] Por todos, ver AgInt no REsp 1.670.672/RJ, julgado pela 1ª Turma da Corte.

[3] Ver REsp nº 1.789.492/PR, julgado pela 2ª Turma.

Autores

  • é advogado e membro da Comissão de Infraestrutura e Desenvolvimento Sustentável da OAB-PR, especialista em mediação e arbitragem pela FGV-RJ e membro do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da PUC-PR.

  • é graduada em Direito pela PUC-PR, com formação complementar pela Università degli Studi di Ferrara (Giurisprudenza) e aperfeiçoamento em Direito Corporativo pela Allez-y e em Direito do Saneamento pela UnB, e advogada com experiência em Contencioso Cível Estratégico, Direito Administrativo e Contencioso de Massa.

  • é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj, mestre em Direito Público pela Unisinos, vice-diretor financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

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