Opinião

Juízo final: a LC 194/2022 e o maior golpe na federação brasileira

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29 de junho de 2022, 10h04

Um olhar cuidadoso sobre o que vivemos hoje no Brasil poderia apontar que estamos assistindo a mais um fim de uma curta temporada democrática. E o golpe segue em curso, devidamente anunciado, supostamente contando com apoio de nossa população, que não foi devidamente informada das consequências de uma redução drástica no ICMS: no caso do PLP n° 18/22, que se converteu na Lei Complementar n° 194/2022, ocorre a retirada abrupta de quase 25% do principal imposto dos Estados e, por consequência, gerando prejuízos diretos à educação e saúde públicas e aos municípios brasileiros. O povo brasileiro, sempre um “detalhe” na caminhada democrática, observa o movimento alinhado das elites políticas e econômicas sem compreender bem o que ocorre.

Para além de construirmos uma sociedade liberta pela educação, com forte vínculo coletivista e, portanto, social, percebemos o enaltecimento do caráter individual, o que compromete nosso tecido. Quero preservar o "meu", ainda que em detrimento do "nosso", acreditando que isso não terá um preço alto a pagar.

Algumas lideranças envolvidas neste processo afirmam que tudo isso se dá como verdadeira retaliação aos Estados, especialmente aos seus Secretários de Fazenda, que descumpriram o "espírito" do artigo 7° da Lei Complementar n° 192, de 2022 (LC n° 192/22), que determinava que, "enquanto não disciplinada a incidência do ICMS nos termos desta Lei Complementar”, isto é, enquanto não fosse estabelecida a chamada alíquota AD REM para o diesel, deveria a base de cálculo do ICMS sobre este produto, até 31 de dezembro de 2022, ser calculada com base na média móvel dos preços praticados ao consumidor final dos últimos 60 meses.

O Convênio ICMS n° 16/22, celebrado no âmbito do Confaz, e revogado por este colegiado, utilizando-se de permissão para conceder "incentivos fiscais" contida na própria LC 192/22 (artigo 6°, § 2°), criou o fator de equalização que foi suspenso cautelarmente na ADI n° 7164: o que havia de mais benéfico aos contribuintes foi justamente o que solicitou a AGU para que fosse suspenso. Após essa decisão, em pedido adicional, a União estende o pedido de suspensão não só para o que havia de mais benéfico aos consumidores finais, ansiosos por redução de preços nos combustíveis, mas também intenta que a base de cálculo de todos os demais combustíveis (aqui inserida a gasolina), além do diesel, seja, por analogia ao disposto no artigo 7° que trata do diesel, calculada com base na média móvel dos preços praticados nos  últimos 60 meses.

Nada mais destoante da doutrina que estabelece as bases do direito tributário: dentre todos, cite-se Paulo de Barros Carvalho, quando alerta que a "base de cálculo está viciada ou defeituosa quando verificamos que não mede as proporções do fato imponível, sendo-lhe totalmente estranha"[1]. Ora, se o critério material do ICMS é "realizar operações relativas à circulação de mercadorias", não há outra base que confirme essa materialidade do que o "valor da operação". Atribuir por lei complementar ou por interpretação analógica de outro artigo legal a fixação de base outra que não essa, culmina em violação grave à Constituição e, neste caso em especial, afronta à federação.

E o mais interessante é que na LC n° 194/22, mesmo após tudo o que foi elencado acima, constrói-se outra redação para o artigo 7° da LC n° 192/22, e que poderia ser facilmente contornada pelos estados e pelo Distrito Federal: a base de cálculo nesta média móvel de 60 meses é aplicável "para fins de substituição tributária". Ora, é de conhecimento de todos que a substituição tributária (ST) é uma escolha do ente tributante, como uma técnica que facilita a arrecadação dos tributos devidos, mas a escolha por essa técnica está na conveniência e oportunidade dos estados. Para fugir dessa média, bastaria aos Estados que deixassem a ST de lado, o que bem demonstra a falta de conhecimento técnico na disciplina da matéria.

Diante disso, pelo nítido caráter populista e inoportuno, o PLP n° 18/2022 emparedou os poderes executivos subnacionais, ao trazer uma discussão de um tema supostamente pretendido pela população, e que é legítimo, que é o corte de tributos, ouvindo-se poucas vozes contrárias, em ambientes restritos. A brevidade com que foi tratado o projeto e as dimensões do impacto dele bem demonstram que, mesmo para que os são bem esclarecidos quanto ao tema, pode-se não se ter a exata dimensão do que foi aprovado.

É lamentável que a ideia de que os tributos são odiosos e que devem ser evitados a todo custo tenha prosperado tanto em um país tão desigual. Visto sob uma perspectiva individual, não há dúvidas de que tal argumento poderia até se justificar. Contudo, ao reconhecer que vivemos em sociedade e que a democracia tem um preço a ser pago conjuntamente, especialmente se considerarmos que somos a sociedade mais desigual do planeta, não há outra saída para termos o mínimo de tranquilidade de vida do que revertemos dinheiro em prol de toda a coletividade e exigirmos eficiência do Estado em sua execução.

Além de tudo isso, os vetos impostos ao PLP n° 18/22 pelo governo federal na sanção da LC n° 194/22 bem espelham o que há de mais inaceitável no Brasil: primeiro, ao estabelecer a possibilidade de compensação apenas com as dívidas da União, desprestigiam-se os Estados que vem fazendo esforços para serem exemplos de baixo nível de endividamento com o ente central; segundo, ao vetar o artigo que impunha a responsabilidade de compensação pela União para manter-se os mesmos patamares de realização de gastos com educação, incluindo Fundeb, e saúde, demonstra-se o total desprezo, na atualidade, por essas medidas em nosso país; e, por fim, ao afirmar nas razões do veto ao artigo 14 da Mensagem n° 324-22 que esta proposição "contraria o interesse público, ao permitir a criação de despesa pública de caráter continuado, diferente das medidas temporárias aprovadas nos outros artigos da mesma proposição" (grifo nosso), ou se trata de indisfarçável desconhecimento de que a diminuição das alíquotas do ICMS tem status de perenidade a partir da publicação da LC ou se está diante de evidente falácia publicada em Diário Oficial.

Não bastasse tudo isso, o projeto fere de morte os Fundos Estaduais de Combate à Pobreza, que são os "caixas" dos grandes projetos assistencialistas nos estados e no DF: para além de favorecer as grandes empresas, contribuindo para que a Petrobras tenha lucros ainda mais extraordinários do que os que já vem tendo, representará a destruição de medidas tímidas diante do desafio enfrentado por qualquer unidade da federação com seus contingentes de desassistidos ou sub assistidos.

A quem interessa os Estados quebrarem? Quanto menos Brasil, mais Brasília, o que representa exatamente o oposto do que se espera de um federalismo cooperativo, e aprofunda o comportamento já há muito conhecido por todos do velho "pires nas mãos". Corre-se de um lado para outro, mas o velho autoritarismo sempre dá as caras nesse país...


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 257.

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