Tribuna da Defensoria

Um writ baseado em evidências: o uso terapêutico da cannabis

Autores

  • Fernando Antunes Soubhia

    é defensor público no estado de Mato Grosso mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City University of London (Inglaterra).

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

28 de junho de 2022, 8h01

Junho de 1865. A rainha Vitória recentemente deu à luz seu primeiro filho, George Frederick Ernest Albert, futuramente conhecido como George 5º, rei da Inglaterra e avô da adorada rainha Elizabeth 2ª. Após uma breve consulta, J.R. Reynolds, médico real, prescreve o uso da cannabis para tratamento das dores do pós-parto, o mesmo tratamento que ele já havia prescrito para as câimbras menstruais da rainha. Absolutamente ninguém enxerga qualquer problema nisso e certamente o então ministro da Justiça não foi visto com um facão na mão atacando ferozmente plantas inocentes[1].

Apesar da cannabis ter se popularizado no ocidente em meados do século 19, quando se tornou um analgésico comum ao lado do ópio — tanto como láudano quanto como cocaína[2] — , as propriedades medicinais da planta já eram conhecidas desde a Idade Média. Graças a evolução da medicina, atualmente sabemos que a cannabis e seus extratos possuem propriedades analgésicas, anticonvulsivantes, antialérgicas e anti-inflamatórias, demonstrando efeitos positivos no tratamento de esclerose múltipla, mal de Parkinson, enxaquecas, dores, insônia, glaucoma, asma e outras doenças, sendo considerada, por muitos, um santo remédio.

No entanto falar em cannabis no Brasil, mesmo em ambiente terapêutico, continua atraindo lábios torcidos e sobrancelhas franzidas. A lógica da guerra às drogas, implementada a fórceps no imaginário popular por meio do pânico moral sobre potenciais efeitos dos entorpecentes, impede a implementação de uma política criminal racional guiada à redução do abuso de substâncias entorpecentes, obstaculiza a pesquisa e a utilização das substâncias criminalizadas em um ambiente médico, deixando muitos que precisam desesperadamente destes remédios à mercê de uma visão de mundo atrasada.

No Brasil, após diversas alterações legislativas que paulatinamente incorporaram essa lógica de guerra, o tema é atualmente regulamentado pela Lei 11.343/06, que "oficialmente" pretendia criar tipos penais específicos para distinguir o usuário e o traficante, mas sub-repticiamente diluiu as barreiras entre um e outro, contribuindo, em muito, para o quadro de encarceramento em massa brasileiro. Ainda assim, o diploma repetiu a previsão da revogada Lei 6.368/76[3], mantendo a possibilidade de autorização, pela União, do plantio e colheita de drogas, exclusivamente para fins medicinais ou científicos (artigo 2º, parágrafo único)[4].

Mas a problemática está nos detalhes. Apesar da possibilidade existir desde 1976, passados mais de quarenta anos, ainda não existe regulamentação legislativa ou administrativa para esse plantio e/ou transporte de cannabis sativa para fins medicinais ou científicos, permitindo que pessoas que fazem esse plantio com o fim exclusivamente medicinal sejam rotuladas de criminosas[5].

E aqui nasce o nosso inconformismo. A omissão do Estado providência pode abrir espaço para atuação do Estado sancionador? O mesmo Estado que ignora o interesse da sociedade na regulação de questões inerentes ao direito à saúde pode perseguir penalmente as pessoas que seguem orientação médica para o uso da cannabis

Em uma interpretação literal, devemos reconhecer que a cannabis sativa é uma planta que, nos termos da Portaria nº 344/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, é apta a gerar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. Por conseguinte, em tese, o seu plantio destinado ao suprimento pessoal pode, sim, ser enquadrado penalmente no artigo 28 da Lei 11.343/06.[6]

No entanto, passamos a expor algumas das linhas de raciocínio que conduzem à atipicidade da conduta quando o uso do entorpecente possuir uma finalidade terapêutica.

Analisando a tipicidade subjetiva do artigo 28 da Lei 11.343/06 a partir de uma interpretação sistemática do diploma normativo, nota-se que no momento em que o já mencionado artigo 2, parágrafo único, estabelece a possibilidade do uso medicinal de entorpecentes, ainda que condicionado autorização, ele exclui esse uso terapêutico do âmbito de incidência do artigo 28 — e demais artigos referentes ao consumo de entorpecentes. Assim, é seguro dizer que quando a Lei 11.343/06 criminaliza o porte para uso pessoal de entorpecentes ela está claramente se referindo ao uso recreativo dessas substancias, donde se conclui que o tipo penal exige um elemento subjetivo específico, consistente na intenção de uso recreativo da substância.

Ora, se o agente cultiva a cannabis sativa para fins terapêuticos ou medicinais, naturalmente não o faz para uso recreativo, razão pela qual sua conduta não pode ser subsumida ao tipo penal do artigo 28 da Lei de Drogas dada a ausência desse elemento subjetivo específico.

Sob a perspectiva da tipicidade conglobante, lembra-se que apesar de não fazer qualquer sentido em termos de política criminal, o bem jurídico penalmente tutelado pelos tipos penais da Lei 11.343/06 é, em regra, a saúde pública. No entanto, a conduta do agente que cultiva a cannabis sativa para fins terapêuticos ou medicinais visa justamente resguardar — e não lesionar — a saúde, com base em evidências científicas.

Então vejam, sabemos que nos termos do artigo 196 da CF, a saúde é direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

Também sabemos que o potencial terapêutico da cannabis sativa é incontestável em plano nacional e internacional. Tanto assim o é que atualmente, a Anvisa possui uma lista com 18 produtos à base de extratos de cannabis e do fitofármaco canabidiol que tem sua comercialização aprovada[7], porém os altos preços e a pouca oferta na rede pública obstaculiza o tratamento com tais produtos.

Como leciona Zaffaroni, espera-se ordem e não desordem de um ordenamento jurídico, o que significa dizer que não pode o Estado reconhecer formalmente a capacidade terapêutica da cannabis sativa e, ainda assim, considerar o uso dessa substância para fins medicinais como crime. Assim, essa conduta deve ser considerada penalmente atípica, por falta de antinormatividade.

Mais além, poder-se-ia levantar a tese de legítima defesa do direito à saúde, ou de exercício regular do direito de cultivo garantido pela legislação ou, ainda, da causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa em relação ao agente que cultiva a cannabis sativa para fins medicinais, pois não se pode exigir comportamento diverso daquele que recebe orientação científica de que seu tratamento de saúde perpassa pelo uso terapêutico da substância, estando, assim, amparado pela dirimente de culpabilidade.

Pelo exposto, do ponto de vista dogmático — seja por ausência de subsunção do fato à norma, seja pela ausência de elemento subjetivo específico, seja por ausência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, seja por carência de antinormatividade, ou até mesmo por inexigibilidade de conduta diversa – não há que se falar em crime na conduta do agente que cultiva cannabis sativa para fins terapêuticos.

Contudo, em nome da defesa da saúde pública, mas partindo de uma interpretação absolutamente estéril dela, há quem defenda a tipificação criminal do uso terapêutico e medicinal da cannabis sativa, sob o pretexto da falta de regulamentação estatal sobre a matéria. Por esse raciocínio, o Estado estaria se valendo de sua própria torpeza — omissão legislativa flagrante por quase 40 anos — para penalizar os cidadãos.

A bem da verdade, os incautos acreditam que a cruzada antidroga só pode ser vencida pela abstenção a partir da proibição das drogas indesejadas e um tratamento penal rígido para quem tenha qualquer tipo de contato com elas. Nessa sanha punitivista, persecuções penais são movidas até mesmo contra pessoas que precisam da cannabis sativa para fins terapêuticos ou medicinais.

Felizmente, os tribunais superiores vêm reconhecendo que o Direito Penal não é meio idôneo para o Estado dialogar com as pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis sativa. Nesse sentido, vale destacar dois recentes julgados da 6ª Turma do STJ (RHC 147.169 e REsp 1.972.092).

Por fim, entendemos ser urgente um regramento da Anvisa para o cultivo e extração de substâncias da cannabis para fins terapêuticos, pois os cidadãos não podem sofre qualquer risco de penalidade pelo exercício regular de um direito.


[1] NUTT, David. Drugs: without the hot air – minimising the harms of legal and ilegal drugs. Cambridge: Inglaterra, 2012.

[2] Em 1884, Karl Koller descobre as propriedades anestésicas da cocaína. No mesmo ano, Freud publica o livro “Uber coca” em que lista efeitos benéficos e de bastante importância para a terapia da depressão. Em 1892 ele se retrata.

[3] Art. 2(…) § 2º A cultura dessas plantas com fins terapêuticos ou científicos só será permitida mediante prévia autorização das autoridades competentes

[4] Art. 2º (…) Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

[5] Nos Estados Unidos uma técnica muito semelhante foi adotada. Como o país não fazia parte da Liga das Nações, a Convenção de Genebra sobre Narcóticos de 1925 não influenciou diretamente a criminalização da cannabis no país. Foi apenas em 1937 que o governo estadunidense criou o ‘imposto da marijuana’, proibindo a venda ou cultivo de cannabis sem o selo de autorização do governo, selo esse, que apesar de custar US$ 1,00, nunca foi expedido.

[6] Exclui-se do debate o plantio para comercialização posto que, nesse caso, pouco há o que se debater. 

[7] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2022/anvisa-aprova-mais-tres-produtos-de-cannabis-para-uso-medicinal

Autores

  • é defensor público no Estado de Mato Grosso e mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City, University of London (Inglaterra).

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídicas criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é doutorando em Direito Constitucional (UNIFOR), mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, com estágio na Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha. Especialista em Processo Civil pela Escola Superior do MPCE. Conselheiro eleito do Conselho Superior da DPCE. Presidente do Conselho Penitenciário do Ceará. Defensor Público do Estado do Ceará. Professor. Poeta. Pesquisador.

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