Opinião

Processo penal e a toga da imprensa

Autor

  • John Wesley Santos Silva Passos

    é estudante de Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) estagiário de gabinete de procurador regional da República e membro da comissão de assuntos constitucionais e da comissão de ciências criminais da OAB-DF.

28 de junho de 2022, 17h09

Sabe-se que o processo penal é instrumento essencial para atingir a solução da controvérsia jurídica material principalmente na seara, vale lembrar, da ultima ratio do Direito, qual seja, o Direito Penal. Esta solução traduz o escopo magno da jurisdição, esta entendida aqui em seu sentido lato, qual seja, o de "dizer o direito". Todavia, "dizer o direito" tem significação intransponível de decidir levando em consideração as fontes legítimas do Direito: lei, jurisprudência e doutrina principalmente, bem como a analogia, os princípios gerais do Direito e costumes quando presente omissão legal, nos termos do artigo 4°, caput da Lindb.

 Há muito o Estado entendeu — e decidiu imiscuir-se  no conflito de interesses existentes entre as partes, substituindo os interesses das partes que já não agem, mas fazem agir por meio da provocação da função jurisdicional. Este conflito entre as partes tem maior peso quando tratada no âmbito do processo penal. Tendo em vista a antagônica complexidade das razões de ambas as partes que ali figuram nos polos processuais. De um lado a vítima que tem sua pretensão substituída pelo Parquet e de outro o autor  ou não  do delito na condição de réu representado por defesa técnica.

Somado a isso é o enorme aparato estatal presente no processo e constituído pelo órgão acusador e Poder Judiciário que serão responsáveis pela manutenção e efetivação do jus puniendi nascido quando demonstrado indícios de autoria e materialidade delitiva (fumus comissi delicti) na peça acusatória que materializa a ação penal pública. Logo, é nesse cenário que torna-se imprescindível a observância das relevantes garantias constitucionais processuais e penais do réu, não só dele como da vítima, mas principalmente dele. E não se quer dizer com isso que haja alguma pretensão de abrandamento da conduta criminosa. Isto, aliás, é ponto sensível na opinião pública que leva o senso comum, infelizmente, a confundir defesa (jurídica/técnica) com panegírico da conduta criminosa do acusado. Valioso é a reflexão de Rui Barbosa em o dever do advogado [1]:

"A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado, ela consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direito legais".

A lhaneza na observância das garantias constitucionais faz-se inexoravelmente necessária ante a parte mais frágil da relação processual estabelecida ser justamente o acusado. É sabido que todo homem que tem poder tende a abusá-lo. Só por esse exemplo far-se-ia indispensável outras maiores exemplificações do porque há garantias como due process of law, que tem como desdobramentos a ampla defesa e o contraditório, previstos, respectivamente, no artigo 5°, incisos LV e LIV da Lei Maior. É valiosa, aliás, a lembrança da máxima de Barão de La Brède (Montesquieu) [2]:

"Um homem não é infeliz porque tem ambições, mas porque elas o devoram".

Contudo, não se pode ignorar que coexistem com essas garantias alguns direitos fundamentais como o direito à informação e liberdade de imprensa, esta última configurando verdadeiro pilar da democracia, porquanto sem a livre imprensa não há como ter liberdade de expressão que nas palavras do ministro Celso de Mello "é condição inerente e indispensável à caracterização e preservação das sociedades livres e organizadas sob a égide dos princípios estruturadores do regime democrático" [3]. Num Estado Democrático de Direito é imperioso que se reconheçam tais direitos e respectivas garantias. Aliás, nunca é de mais destacar a diferença entre direito e garantia, pois, no processo penal atual as arbitrariedades vêm mostrando a necessidade de se reafirmar o "óbvio jurídico". Trata-se em específico do direito à informação e direito à livre comunicação (artigo 5°, IX e XIV, CF/88) que teleologicamente fundamentam o direito de liberdade de imprensa. E esta, a imprensa, se por um lado tem papel fundamental no sustento da democracia, por outro vem se mostrando o que aqui podemos chamar de "extra-protagonista" (alheia ao processo) — e fomentadora  de grandes arbitrariedades e injustiças no processo penal.

É sabido e praticamente uníssono no ordenamento jurídico que nenhum direito é absoluto. Dentre eles o da liberdade de imprensa. Mas há muito o direito deixou de ser engessado e evitar esse "positivismo inexorável" é medida que se impõe no período neoconstitucional e sobretudo na Lei Maior de 1988 que guarda como supra-princípio a dignidade da pessoa humana. Por esta razão é pacífico que o abuso no exercício de direito é passível de sanção e deve sim ser reprovado pelo ordenamento. Com o direito de liberdade de expressão isso não é diferente.

O século atual é movido pela velocidade das informações, como é sabido por todos nós contemporâneos. Essa velocidade está ligada 1) à necessidade da população de saber tudo o que se passa em menor tempo (a escassez de profundidade das opiniões é presente e, a busca por embasamento é diametralmente oposta neste quesito) e 2) necessidade de veiculação daquilo que "mais vende", por assim dizer. Logo, o processo penal é tema perfeito para os jornais sensacionalistas que lastreados de imprudência mais desinformam do que informam. Seria um "solipsismo jornalístico". Fato é que enorme parcela da imprensa não detém do cuidado necessário quando publicam, por exemplo, o indiciamento de um investigado fazendo ilações infundadas, ou quando ainda tratam da simples suspeita pelo Delegado de polícia como verdade irrefutável, formando convicção sobre uma suspeita que sequer madurou-se para formar a certeza da autoridade policial. E torna-se pior ainda quando, além de formarem suas opiniões de forma infundada, formam a opinião de milhares de pessoas sem nem mesmo haver quaisquer indícios de autoria pelo sujeito tratado na tela do jornal!Veja, não é raro ver as pessoas  sobretudo nas redes sociais  formarem opinião com base em uma mera matéria jornalística que não detém de nenhuma das complexidades, normatividades e princípios constitucionais (e processuais penais) conferidos ao procedimento administrativo em fase pré-processual, qual seja, o inquérito policial.

O jornalista não está obrigado a ser um jurista, mas está obrigado a não desinformar. Está obrigado, inclusive, a não tratar como culpado quem ainda sequer passou pelo crivo judicial sob o gozo da ampla defesa e do contraditório.

A liberdade de imprensa não é absoluta, logo, é passível de mitigação normativa que possibilite harmonizá-la com o direito a ampla defesa e ao contraditório. Noutra via, pode-se buscar o aprimoramento dos profissionais de imprensa para que saibam utilizar com precisão e exatidão os termos técnico-jurídicos, uma vez que não raramente jornalistas e repórteres usam termos que não correspondem ao momento do procedimento, que não coadunam com a verdade processual e dos fatos, pois a impressão de um leigo sobre uma situação não corresponde ao que juridicamente  e ao fim e ao cabo é a juridicidade que determinará a conclusão do fato  é. Além disso, a imprecisão na utilização de termos técnicos  ou nada técnicos  acarreta na antecipação da condenação pública, haja vista que a influência da mídia sobre a formação da opinião das pessoas é altíssima. Logo, para se evitar que pessoas façam juízo de valor precipitado e incorreto sobre uma pessoa investigada ou mesmo réu é necessário a fidedignidade pelos agentes midiáticos com o correto manejo dos termos jurídicos. Pode-se ainda para maior cautela e segurança na veiculação de matérias sobre crimes em flagrantes, indiciamento, investigações, julgamento e todos os atos inerentes do ordenamento jurídico e de modo específico do direito penal e processual penal, o profissional procurar auxílio técnico de advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público, magistrados (com observância das restrições da LOMAN referentes ao dever de sigilo, é claro) e demais juristas. O mestre Carnelutti [4], em sua clássica, atual e necessária obra as misérias do processo penal, adverte com o brilhantismo que lhe é inerente que:

"(…)o processo penal interessa à opinião pública. Os jornais ocupam uma boa parte de suas páginas com a crônica dos delitos e dos processos. Quem os lê tem consigo a impressão de que neste mundo se produzem muito mais delitos do que boas ações. O que ocorre é que os delitos assemelham-se às papoulas, que quando há uma em um campo, todos se dão conta dela (…) o mal é que se assiste ao processo da mesma maneira que se goza do espetáculo num cinema(…)".

No entanto, o problema da influência da imprensa sobre o processo penal, não se limita apenas ao juízo de valor que a população venha a erroneamente fazer em desfavor do investigado ou réu. O problema ganha maior proporção quando são os operadores do Direito que deixam-se macular e serem seduzidos pelo clamor público fomentado pela imprensa. A partir do momento que um operador do Direito é corrompido pela opinião pública as garantias constitucionais se tornam impedimentos e abre-se espaço para teses teratológicas, argumentos in malam partem e a condenação sem respeito ao princípio esculpido do inciso LVII, artigo 5°, da Constituição.


[1] Barbosa, Rui de oliveira. Oração aos moços & o dever do advogado. EDJUR/SP. Ed. 2016.

[2] Œuvres complètes de Montesquieu: Discours, lettres, voyage à Paphos‎ Volume 7, Página 180, Charles de Secondat Montesquieu (baron de) – Garnier frères, 1879

[3] STF-1ª T. — Ag. Reg no AI 65276/RJ — relator ministro Celso de Mello.

[4] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Editora Pillares. Ed. 2009.

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