Contas à Vista

Venda de senhas na fila do FNDE impõe abandono de prioridades do PNE

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28 de junho de 2022, 8h04

Dois fatos marcaram a política pública de educação na semana passada. O primeiro deles foi a Operação Acesso Pago, que levou à prisão preventiva do ex-ministro Milton Ribeiro, entre outros, pela Polícia Federal no dia 22 (quarta-feira).

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Desde março, estava sob investigação a denúncia de um gabinete paralelo de pastores, os quais estariam a intermediar a liberação de recursos no Ministério da Educação (MEC), com foco, em especial, no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Por outro lado, no último sábado (25/6), o Plano Nacional de Educação (PNE) completou seu oitavo aniversário. Faltando dois anos para concluir sua vigência decenal, o balanço feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação literalmente é de "abandono" do PNE. Isso ocorre, na medida em que a taxa de descumprimento alcançou 86% das metas, além do apagão de dados que impede que oito das suas vinte metas sejam plenamente avaliadas.

Segundo noticiado pelo portal "De Olho nos Planos", que monitora o estágio de execução do planejamento educacional em todos os entes da federação, a realidade é ainda mais dramática, porque:

"além da baixa taxa de avanço em praticamente todas as metas, 45% delas estão atualmente em retrocesso e a situação pode ser ainda pior. Dada a grande falta de informações atualizadas, não é possível afirmar com certeza a gravidade dos atrasos e retrocessos".

O inadimplemento da maioria das metas e estratégias do PNE contrasta com o balcão de negócios supostamente instaurado por alguns pastores no MEC. Ora, a venda de vagas na fila para acesso aos recursos do FNDE (donde, aliás, provém o nome "Acesso Pago" da operação empreendida pela Polícia Federal) implica a pura e simples desconsideração do rol de prioridades fixado pela Lei 13.005, de 25 de junho de 2014.

O risco de abuso de poder e tráfico de influência na alocação dos recursos discricionários do MEC foi bem resumido no seguinte excerto de reportagem que explica porque o FNDE se tornou uma "pérola tão disputada":

"'A gente [secretários e prefeitos] não sabe quais as construções que estão sendo liberadas, quais não', afirma [Alessio] Lima, que também preside a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) da Região Nordeste. 'Ter essa transparência seria fundamental.'

[…] A cada ciclo do [Plano de Ações Articuladas] PAR (de 4 anos), os municípios apresentam as necessidades de suas redes de educação. Uma escola precisa de computadores novos? Um bairro não tem creches em número suficiente? Os professores de determinada região desejam um curso de formação continuada? É por esse programa que essas demandas vão ser registradas.

Tudo deve estar documentado, como a justificativa, a estimativa do investimento necessário, o mapa do terreno onde uma obra acontecerá etc.

O objetivo é que o MEC e o FNDE entendam quais são as necessidades mais urgentes em educação. Pela última resolução a respeito do PAR, em 2020, seriam usados critérios como: Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ente que fez o pedido, vulnerabilidade socioeconômica e índice de distorção idade-série.

'Na prática, não fica tão claro qual demanda que passou na frente. É mais difícil ter prestação de contas [nos repasses voluntários] do que nos legais ou constitucionais', afirma [Úrsula] Peres.

[Nelson Amaral, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)], reforça essa diferença entre os tipos de transferência financeira.

'No PAR, o município apresenta um projeto mais amplo, para obter recursos. Mas como essa solicitação vai andar; em qual velocidade? Isso pode depender de múltiplos fatores', explica. 'Aí é que surge um [pedido] andando mais rápido do que o outro.'

[Alessio Costa] Lima, da Undime, concorda. 'Os repasses voluntários são os mais vulneráveis a interferências.'"

Conclusão: no escândalo do MEC, os favorecimentos supostamente ofertados por eles entrariam nesta categoria de investimentos voluntários. As demais modalidades do FNDE (repasses legais e constitucionais) não abrem espaço para alguém "vender senha na fila".

Criar dificuldades para vender facilidades é lógica recorrente do compadrio político brasileiro. O alto nível de sucesso desse trato balcanizado dos recursos públicos pressupõe que seja frustrado o planejamento. Dito de forma ainda mais clara: a venda patrimonialista de vaga na fila de acesso a qualquer ação governamental custa a fragilidade do arranjo impessoal e planejado da própria política pública.

São mutuamente excludentes o planejamento e a dispensação balcanizada de migalhas orçamentárias. É preciso quebrar a ordenação legítima de prioridades definida na lei do planejamento setorial de cada política pública para que prevaleça a alocação discricionária de curto prazo eleitoral, a qual é significativamente mais suscetível à apropriação privada do interesse público, mediante tráfico de influência e enriquecimento ilícito.

Em todas as áreas em que o Estado é chamado a atuar em prol da sociedade, o desafio nuclear, como já dissemos várias vezes nesta coluna Contas à Vista, é o de ordenar legitimamente as prioridades alocativas. Para tanto, é preciso fixar critérios acerca do lugar de cada qual na fila, algo que só as leis de planejamento podem empreender, conciliando balizas técnicas e legitimidade política.

Na política pública de educação, o artigo 10 da Lei 13.005/2014 [1] foi bastante claro em determinar que a alocação dos recursos vinculados ao setor — ao longo das leis de plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual — deve ser substantivamente orientada ao cumprimento das metas e estratégias do PNE.

A título de exemplo, quando lançamos os termos de busca "priorizar" ou "prioritariamente" em uma leitura transversal da aludida Lei, são identificadas as seguintes estratégias que deveriam ser cumpridas em primeiro plano:

"1.11) priorizar o acesso à educação infantil e fomentar a oferta do atendimento educacional especializado complementar e suplementar aos (às) alunos (as) com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, assegurando a educação bilíngue para crianças surdas e a transversalidade da educação especial nessa etapa da educação básica;

4.13) apoiar a ampliação das equipes de profissionais da educação para atender à demanda do processo de escolarização dos (das) estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, garantindo a oferta de professores (as) do atendimento educacional especializado, profissionais de apoio ou auxiliares, tradutores (as) e intérpretes de Libras, guias-intérpretes para surdos-cegos, professores de Libras, prioritariamente surdos, e professores bilíngues;

6.2) instituir, em regime de colaboração, programa de construção de escolas com padrão arquitetônico e de mobiliário adequado para atendimento em tempo integral, prioritariamente em comunidades pobres ou com crianças em situação de vulnerabilidade social;

7.6) associar a prestação de assistência técnica financeira à fixação de metas intermediárias, nos termos estabelecidos conforme pactuação voluntária entre os entes, priorizando sistemas e redes de ensino com Ideb abaixo da média nacional;

8.1) institucionalizar programas e desenvolver tecnologias para correção de fluxo, para acompanhamento pedagógico individualizado e para recuperação e progressão parcial, bem como priorizar estudantes com rendimento escolar defasado, considerando as especificidades dos segmentos populacionais considerados;

12.4) fomentar a oferta de educação superior pública e gratuita prioritariamente para a formação de professores e professoras para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, bem como para atender ao défice de profissionais em áreas específicas;

12.7) assegurar, no mínimo, 10% (dez por cento) do total de créditos curriculares exigidos para a graduação em programas e projetos de extensão universitária, orientando sua ação, prioritariamente, para áreas de grande pertinência social;

18.7) priorizar o repasse de transferências federais voluntárias, na área de educação, para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que tenham aprovado lei específica estabelecendo planos de Carreira para os (as) profissionais da educação;

19.1) priorizar o repasse de transferências voluntárias da União na área da educação para os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamente a matéria na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere, conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios técnicos de mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar;"

Não cumprimos satisfatoriamente tais estratégias prioritárias e nos acomodamos com desvios reiterados dos recursos educacionais. Nesse contexto, o abandono do PNE, como bem suscitado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, não é obra do acaso. Trata-se de escolha deliberada ao longo dos seus oito anos de vigência, a pretexto de falseados limites fiscais, mas, primordialmente, decorre da primazia do curto prazo eleitoral dos governantes de ocasião. Afinal, diante do constrangimento, introduzido de forma iníqua pela Emenda 95/2016, sobre o regime constitucional de financiamento da educação, sobreleva a lógica do "farinha pouca, meu pirão primeiro"…

Por ocasião do oitavo aniversário do PNE neste 2022, aliás, tornou-se evidente que o abandono do planejamento educacional permitiu o surgimento de gabinetes paralelos no MEC, ao mesmo tempo em que preteriu tanto a racionalidade técnico-impessoal, quanto a legitimidade político-institucional da Lei 13.005/2014. A priorização das indicações de mercadores da fé e da ignorância literalmente custou o descumprimento de 86% das metas e estratégias do planejamento decenal da educação.

Planejar e resguardar cumprimento ao planejado é aprendizado que precisamos incorporar para não nos mantermos tão flagrantemente emburrecidos em face da tarefa coletiva de resguardar consecução legítima de políticas públicas em nosso país. No que se refere ao PNE, temos sido reprovados sucessivamente ao longo do tempo, ao custo do comprometimento da aprendizagem de nossas crianças e jovens: o que é, sem dúvida, a maior dívida pública intergeracional que temos acumulado.

 


[1] Cujo inteiro teor é: "Art. 10. O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução."

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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