Opinião

Importar mercadorias com pagamento em criptomoedas: uma troca possível

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27 de junho de 2022, 11h04

1. A natureza jurídica de criptomoedas na óptica da Receita
Em que pese conhecidas comercialmente como "moedas virtuais", desde as informações esclarecidas pela Receita Federal no "Perguntas e Respostas" do ano de 2017 os criptoativos, em especial criptomoedas, devem ser declaradas como "outros bens” na "Ficha Bens e Direitos", reconhecidas como um "ativo financeiro".

Posteriormente, por meio da Instrução Normativa RFB 1.888/2019, o conceito de criptoativos restou definido como "a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal" (artigo 5º, I).

Por sua vez, o Banco Central emitiu o Comunicado n° 31.379, de 16/11/2017, em que manifesta que as moedas virtuais são representações digitais de valor que não são garantidas ou emitidas por autoridade monetária, não possuem qualquer tipo de lastro real, e não se confundem com a definição de moeda eletrônica que trata a Lei n° 12.865/2013.

Por fim, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) possui entendimento no sentido de que a atividade de negociação de bitcoins (criptomoeda), sob qualquer formato, se situa fora do perímetro regulatório da CVM, dado que o bitcoin (criptomoedas) não se enquadra no conceito de valor mobiliário previsto no artigo 2º da Lei 6.385/1976, conforme divulgado no "Relatório Semestral — Supervisão Baseada em Risco. Julho-dezembro/2017".

Desse modo, os criptoativos, em especial criptomoedas, não são reconhecidos como "moeda" ou "valor mobiliário", ostentando a natureza jurídica de "bem".

2. A troca internacional de bens
A troca, também conhecida como "permuta" ou "escambo", é negócio jurídico previsto pela legislação nacional (artigo 533 do Código Civil) e que não se confunde e não se equipara à compra e venda. A troca é qualificada como contrato bilateral, oneroso, comutativo e translativo de propriedade em que as partes se obrigam a dar uma coisa por outra que não seja dinheiro.

Apesar de hoje se mostrar uma forma não convencional de comércio, a troca em âmbito internacional sempre existiu.

A partir da Decisão 6.1 do Comitê de Valoração Aduaneira da OMC, presente no Anexo Único da IN SRF 318/2003, que, conforme Acordo sobre a implementação do Artigo VII do AVA Gatt, apresenta a regra de valoração aduaneira a ser tratada às operações de troca internacionais, podemos concluir que a legislação brasileira e a legislação internacional reconhecem como válidas as trocas de bens em âmbito internacional.

Não se conhece convenção internacional que regulamente especificamente o contrato de troca internacional de mercadorias ou organização internacional criada especificamente para acompanhar a prática internacional de permuta de bens. Logo, o sistema de trocas internacionais é regido pelos usos e costumes (lex mercatoria).

A partir dos usos e costumes, a troca denominada internacionalmente como countertrade (contrapartida) possui cinco tipos de operação: barter, compensation, counterpurchase, buy-back e switch:

– Barter: simples troca direta de bens ou serviços por outros, sem intermediação da moeda. É formalizada em um único contrato, comprometendo-se o vendedor a transferir determinada mercadoria. Só há duas partes envolvidas e o preço das mercadorias é de somenos importância. Por exemplo: a Petrobras contrata com um exportador de petróleo do Iraque e troca 10 mil barris de petróleo por cem toneladas de frango.

Cada parte orça o preço de sua mercadoria, podendo constar no contrato um preço baseado na Bolsa de Mercadorias de algum país, um preço simbólico e em qualquer moeda. A troca de mercadorias é normalmente instantânea, com o embarque feito na mesma ocasião.

– Compensation: troca de mercadorias em que o vendedor exporta para o comprador, situado no estrangeiro, com a mercadoria avaliada em determinado valor, lançando-o a débito do comprador, sem a movimentação da moeda. O saldo financeiro dessa operação é acertado pela venda de uma mercadoria pelo devedor ao credor, compensando-se os débitos.

– Counterpurchase: operação única na qual existem dois contratos de compra recíproca. O primeiro contrato registra a venda de um produto e/ou serviço pelo exportador ao importador, e o segundo registra a obrigação de compra, pelo exportador, de mercadorias e/ou serviços ao importador. Há dois contratos simultâneos, mas independentes, embora devam ser ambos ligados a um protocolo.

– Buy-back: o exportador fornece ao importador uma instalação industrial com tecnologia, recebendo como pagamento mercadorias produzidas por essa instalação, por determinado período.

– Switch: o pagamento feito pelo importador não é efetuado por mercadoria in natura, mas por papéis de crédito perante terceiro que o exportador aceita como pagamento.

Por fim, por analogia ao artigo 533 do Código Civil, as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, promulgada pelo Decreto 8.327/2014, podem ser aplicadas subsidiariamente às trocas internacionais.

3. Troca internacional de criptomoeda por mercadoria estrangeira
Na Solução de Consulta Cosit 214/2021 restou reconhecido que "a utilização de uma criptomoeda na aquisição de outra configura alienação de bem ou direito". Logo, confirma-se que as criptomoedas possuem natureza jurídica de "bem".

Por sua vez, o artigo 1º da Resolução Camex 16/2020 dispõe que "nas exportações e importações brasileiras, serão aceitas quaisquer condições de venda praticadas no comércio internacional, desde que compatíveis com o ordenamento jurídico nacional".

Como visto, em que pese reconhecida como "forma não convencional de comércio internacional", a troca/permuta no âmbito internacional é operação comercial reconhecida pela legislação brasileira e pela legislação internacional como lícita (IN SRF 318/2003).

É sabido que o princípio da legalidade tem aplicabilidade distinta para a administração e para o contribuinte. Enquanto o contribuinte tem a limitação da liberdade de agir prevista em lei (artigo 5º, II, da CF), à administração cabe agir no estrito espaço prefixado em lei (artigo 37 da CF).

Aplicado o conceito de legalidade ao presente estudo, inexiste impedimento legal, seja por parte do importador como por parte da Receita Federal, para a realização da troca internacional (countertrade) de criptomoedas por mercadoria estrangeira, pela modalidade "barter":

Por se tratar de troca de bens, a operação internacional é destituída de cobertura cambial, ou seja, não possui contrato de câmbio.

Não existe legislação nacional específica que defina procedimentos ou limites para as operações sem cobertura cambial. Desse modo, na ficha de câmbio da Declaração de Importação da mercadoria importada poderá ser mencionado o motivo da operação sem cobertura cambial. Exemplo: código 99 — outras importações sem cobertura cambial.

A importação de mercadoria estrangeira adquirida por troca/permuta internacional não afasta a incidência dos tributos aduaneiros no momento do registro da Declaração de Importação. A valoração aduaneira decorrente de troca/permuta deve respeitar os critérios da Decisão 6.1 do Comitê de Valoração Aduaneira da OMC, presente no Anexo Único da IN SRF 318/2003.

Logo, não se vislumbra qualquer impedimento legal à importação de mercadorias com pagamento (troca) mediante criptomoedas.

Autores

  • é sócio do escritório Blasi Valduga Advogados Associados, graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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