Opinião

Reformas da LIA: divergências doutrinárias (parte 4)

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

27 de junho de 2022, 9h04

Conforme destacado em outras oportunidades, em análise às reformas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) pela Lei nº 14.230/21[1], foram verificados avanços, porém há retrocessos e até inconstitucionalidades. Neste momento, o objeto de análise específica é sobre o princípio do non bis in idem, isto é, sobre a vedação da aplicação conjunta das disposições sancionadoras da Lei Anticorrupção (LAC, nº 12.846) com as disposições sancionadoras da LIA, para as pessoas jurídicas, que estão sendo demandadas por ato de improbidade administrativa, questão esta objeto de certa controvérsia doutrinária.

Foram duas as disposições inseridas pela reforma sobre o tema, as quais cabem ser destacadas para a análise: a primeira refere-se ao §7º do artigo 12, para o qual "as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta Lei e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem"; e a segunda norma apresentada pela reforma é o §2º do artigo 3º, segundo o qual "as sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013" [2].

Segundo entendimento respeitável de parte da doutrina, as normas supracitadas, incluídas pela reforma na Lei de Improbidade, são disposições posteriores às normas da Lei Anticorrupção, devendo prevalecer, diante da antinomia apresentada entre as normas em conflito no tempo, de modo que o disposto no artigo 30, inciso I da Lei nº 12.846 [3] teria sido revogado tacitamente, na forma do que dispõe a segunda parte do artigo 2º da Lindb.

Contudo, visando dar uma interpretação conforme a Constituição  e à luz dos tratados internacionais  aos dispositivos acima citados, incluídos pela reforma na LIA, em especial frente à presunção de constitucionalidade das normas, ousou apresentar entendimento divergente.

Importante, de início, destacar que o princípio do non bis in idem não encontra previsão explícita no texto constitucional, o que não exclui a possibilidade de ser alçado ao status de direito constitucional fundamental.

 Isto porque o constituinte, no artigo 5º, §2º da CF/88 [4] destacou que o catálogo de direitos fundamentais não é taxativo, optando por uma cláusula aberta de direitos fundamentais, destacando Carlos Rodolfo Fonseca Tigre Maia que "esse preceptivo conduz a uma maior permeabilidade da Constituição às conquistas e avanços nessa área, possibilitando um perene aggiornamento" [5].

Destaca ainda Carlos Rodolfo Fonseca Tigre Maia, em pertinente observação sobre o texto normativo da cláusula aberta constitucional, que, "a CF de 1988, por seu turno, buscou também o telos desses mesmos direitos ao exigir que se vinculem ao regime e princípios por ela consagrados, ou ainda aos direitos constantes de tratados internacionais e que encontram expressividade que os caracteriza como fundamentais" [6].

Em outros termos, o princípio da não-taxatividade aponta para a existência e admissibilidade de direitos fundamentais não expressos na Constituição. Contudo, advertiu o constituinte a imprescindibilidade de observância do regime constitucional estabelecido e de outros princípios jurídicos expressos ou previstos em normas, em especial tratados internacionais, com expressividade de norma fundamental. Há imperativa e expressa necessidade de observação do princípio hermenêutico da unidade constitucional.

Neste quadro, parece inegável o caráter fundamental do princípio do non bis in idem, o qual encontra eco em normativas internacionais, tais como: 1) artigo 8.4. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [7]; 2) artigo 14.7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos [8]; 3) artigo 4, protocolo 7, Convenção Europeia de Direitos Humanos [9]; 4) artigo 50 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia [10], dentre outros.

Não obstante o inquestionável caráter fundamental do princípio do non bis in idem, não se pode esquecer-se da análise do conteúdo desta norma fundamental, tudo à luz do regime e princípios constitucionais (imperativo de unidade constitucional).

Em estudo sobre o princípio do non bis in idem, Carlos Rodolfo Fonseca Tigre Maia destaca o nascimento desta norma jurídica no direito consuetudinário, e, citando o jurista inglês sir William Blackstone, aponta que a proibição do double jeopardy (duplo risco) têm sua raízes no princípio de que "nenhum homem deve ser colocado mais de uma vez em uma situação de risco (jeopardy) de sua vida pela mesma ofensa".

Neste aspecto inicial ou incipiente, a proibição do double jeopardy (duplo risco) visava a obtenção de segurança jurídica. Ocorre que, conforme destacado por Joan Queralt, sobre a evolução do princípio na Espanha — trecho extraído da pesquisa efetuada por Rodolfo Tigre Maia [11] , "este princípio evolui até o terreno muito mais substancial e consistente da proibição de inflição de duplo castigo a um mesmo sujeito por idênticos fatos correspondendo a uma idêntica repercussão normativa". Ou seja, o princípio do non bis in idem compreende a vedação de duplo castigo a uma situação jurídica, na qual se verifica uma tríplice identidade, nos seguintes aspectos: 1) quanto ao sujeito da infração, 2) quanto aos fatos jurídicos a que se atribui a sanção, e 3) quanto aos fundamentos dos quais decorrem as sanções. Esta é a interpretação a ser dada ao princípio fundamental implícito do non bis in idem, pois em harmonia com o regime jurídico constitucional estabelecido (condicionante para admissão de direitos fundamentais implícitos, como visto no §2º do artigo 5º). Afinal, nos termos da parte final do §4º do artigo 37, a ação de improbidade não prejudicará a sanção penal, pois esta tem fundamento jurídico diverso. O mesmo entendimento vem expresso em outros capítulos da CF/88, como aquele que trata da tutela e proteção ao meio ambiente (artigo 225, §3º da CF/88) [12]. O mesmo ainda é verificado no artigo 12.1 da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.


 

 

 

Neste quadro, a interpretação da reforma à LIA (artigo 12, §7º e artigo 3º, §2º) não pode ser outro senão aquela que veda a dupla incidência das mesmas sanções, em relação aos mesmos fatos, em relação aos mesmos sujeitos, e sob os mesmos fundamentos jurídicos, sob pena de violação ao regime e aos princípios expressamente adotados pela Constituição Federal e pelas Convenções Internacionais a que o país aderiu.

 

Neste quadro, verificados os pressupostos supracitados, não há óbice à aplicação das sanções da Lei Anticorrupção, tais como: publicação extraordinária da decisão condenatória (artigo 6º, inciso II), suspensão ou interdição parcial de suas atividades, ou dissolução compulsória da pessoa jurídica (artigo 19, incisos II e III). Isto porque, os fundamentos das sanções da Lei Anticorrupção são diversos, pautados não apenas na quebra da probidade, mas na violação do princípio constitucional da função social da pessoa jurídica (artigo 170, inciso III, CF/88), muitas vezes, em especial quando envolve sociedades empresárias, com a quebra da ordem econômica e reflexos na livre concorrência [13].

A Lei Anticorrupção tem sanções diversas, e, principalmente, tem fundamento constitucional diverso para sua aplicação — estabelecido no capítulo que trata da ordem econômica. Tanto que, ao tratar da sanção de dissolução da pessoa jurídica destacou o legislador que esta sanção será aplicada quando comprovado "ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos" ou "ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados" (artigo, 19, §1º da LAC). Inclusive, na LAC, o regime de responsabilidade é objetivo, de modo que não há espaços para confusão com a LIA.

Assim, numa interpretação teleológica da referida reforma operada na LIA, deve ser considerado o postulado hermenêutico da proporcionalidade quando da aplicação de sanções, que possuam identidade nas duas normas, nos termos, inclusive, do que estabelece o artigo 22, §3º da Lindb [14]. Deve-se ainda compreender a autonomia da personalidade da pessoa jurídica frente à personalidade de seus administradores ímprobos, cabendo aqui aplicação dos princípios e diretrizes inseridas no Código Civil pela Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19).

Interpretar a reforma como uma revogação tácita do artigo 30 da LAC, conforme destacado por parte da doutrina, não nos parece uma posição acertada, tendo em vista que, conforme destacado: 1) a Lei Anticorrupção é especial frente à LIA, de modo que não há que se falar em revogação tácita; 2) o fundamento da sanção da Lei Anticorrupção (inclusive seu regime jurídico) é diverso do estabelecido na LIA, o que reforça o argumento de especialidade da norma; 3) aludida interpretação representaria a revogação tácita não apenas do disposto no artigo 30, mas da própria Lei Anticorrupção como um todo, frente à repercussão prática do entendimento, o que representa grave violação a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, quando da assinatura da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção [15].

Deste modo, valendo-se de uma interpretação conforme a Constituição da reforma, e considerando o aspecto substancial do princípio fundamental implícito do non bis in idem, interpretado à luz da unidade constitucional (princípios e regime constitucional vigente) e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, extrai-se que a reforma não veda a aplicação de sanções da Lei Anticorrupção às pessoas jurídicas em conjunto com as sanções da Lei de Improbidade; mas, impõe-se a necessária análise, pelo aplicador das normas, da proporcionalidade, quando da aplicação de sanções da LAC, que possuam identidade na LIA, nos termos, inclusive, do que estabelece o artigo 22, §3º da Lindb.

[1] Na primeira análise sobre a reforma foram enfatizadas as mudanças nas medidas cautelares de indisponibilidade de bens. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-30/maicon-volpi-reformas-lia. Acessado em 25/05/2022. Já numa segunda análise sobre a reforma foram enfatizadas as mudanças na prescrição, com destaque para a prescrição intercorrente. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/maicon-volpi-reformas-lia-retrocessos-inconstitucionalidades. Acessado em 08/06/2022. Na terceira análise foram tecidas considerações rol o rol taxativo do artigo 11, e o consequente retrocesso na tutela da moralidade na Administração Pública, em especial frente às repercussões práticas decorrentes da alteração. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-20/maicon-volpi-reformas-lia. Acessado em 22/06/2022.

[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 12/06/2022.

[3] Nos termos do artigo 30 da Lei nº 12.846: "a aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: I – ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 […]". Disponível em: L12846 (planalto.gov.br). Acessado em 12/06/2022.

[4] Nos termos do artigo 5º, §2º, CF/88: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Disponível em: Constituição (planalto.gov.br). Acessado em 12/06/2022.

[5] TIGRE MAIA, Carlos Rodolfo Fonseca. O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988. Boletim Científico Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, a. 4  nº 16, pag. 17  julho/setembro 2005. Disponível em: O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988 — Escola Superior do Ministério Público da União (mpu.mp.br). Acessado em 10/06/2022.


 

 

 

[6] TIGRE MAIA, Carlos Rodolfo Fonseca. O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988. Boletim Científico Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, a. 4  nº 16, pag. 19 – julho/setembro 2005.

 

[7] Dispõe artigo 8.4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: "O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos". Disponível em: D678 (planalto.gov.br). Acessado em 12/06/2022.

[8] Dispõe o artigo 14.7, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: "Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país". Disponível em: D0592 (planalto.gov.br). Acessado em 12/06/2022.

[9] Dispõe o artigo 4, protocolo 7, Convenção Europeia de Direitos Humanos: "Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado". Disponível em: European Convention on Human Rights (coe.int). Acessado em 12/06/2022.

[10] Dispõe o artigo 50 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia: "Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei". Disponível em: text_pt.pdf (europa.eu). Acessado em 12/06/2022.

[11] TIGRE MAIA, Carlos Rodolfo Fonseca. O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988. Boletim Científico Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, a. 4  nº16, pag. 17  julho/setembro 2005. Disponível em: O princípio do ne bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988 — Escola Superior do Ministério Público da União (mpu.mp.br). Acessado em 10/06/2022.

[12] Dispõe o §3º, do artigo 225 da CF/88 que: "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados". Disponível em: Constituição (planalto.gov.br). Acessado em 16/06/2022.

[13] Nos termos do artigo 173 da CF/88, §5º "a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular". Disponível em: Constituição (planalto.gov.br). Acessado em 14/06/2022.

[14] Dispõe o artigo 22, §3º: "as sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato". Disponível em: Del4657compilado (planalto.gov.br). Acessado em 14/06/2022.

[15] Vale pontuar que "a convenção contempla medidas de prevenção à corrupção não apenas no setor público, mas também no setor privado, entre elas: desenvolver padrões de auditoria e de contabilidade para as empresas; prover sanções civis, administrativas e criminais efetivas e que tenham um caráter inibidor para futuras ações; promover a cooperação entre os aplicadores da lei e as empresas privadas; prevenir o conflito de interesses; proibir a existência de 'caixa dois' nas empresas; e desestimular isenção ou redução de impostos a despesas consideradas como suborno ou outras condutas afins". Disponível em: Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (unodc.org). Acessado em 16/06/2022. A promulgação da referida convenção no Brasil deu-se por meio do Decreto nº 5.687/06, que no seu artigo 12.1 dispõe que: "cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, adotará medidas para prevenir a corrupção e melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, assim como, quando proceder, prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas em caso de não cumprimento dessas medidas". Disponível em: Decreto nº 5687 (planalto.gov.br). Acessado em 16/06/2022. Observa-se aqui, mais uma vez, agora no âmbito internacional dos direitos humanos, a mesma compreensão do non bis in idem, no seu sentido substancial.

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    é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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