Opinião

Amigo da corte ou amigo da parte? Análise do IAC 12 e do REsp 1.610.844/BA

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26 de junho de 2022, 15h18

Por unanimidade, a Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp nº1.610.844/BA e Incidente de Assunção de Competência nº 12, ainda sem publicação do acórdão, fixou entendimento de que: 1) "o 'amicus curiae' somente poderá sustentar oralmente nos casso em que as partes do processo cedam do seu prazo regimental a favor de terceiros" [1]; 2) não é possível a penhora total de conta conjunta por dívida exclusiva de um dos titulares [2].

Neste artigo destacamos o primeiro entendimento fixado, em sede de preliminar, onde se admitiu o negócio jurídico processual de cessão do direito à sustentação oral, entre o amicus curiae e as partes, como única hipótese de sustentação oral daquele. Tratando-se de precedente vinculante (artigo 947, §3º do CPC), alguns questionamentos surgem da conclusão apresentada sobre o referido negócio jurídico processual. 

A doutrina aponta como cláusula geral dos negócios jurídicos processuais o artigo 190 do CPC, que prevê a possibilidade de mudanças no procedimento e convenção sobre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais. Um dos direitos das partes que podem ser objeto de convenção é a sustentação oral [3]. Ao exemplificar os referidos negócios jurídicos processuais, Fredie Didier Junior e Leonardo Carneiro da Cunha destacam:

"As partes podem negociar a diminuição do prazo da sustentação oral, bem como a divisão do prazo entre mais de um advogado. É possível  e isso já vem sendo feito em alguns casos por diversos tribunais — que haja negócio jurídico processual entre o órgão julgador e os advogados para que se dispense, na sessão de julgamento, a leitura do relatório do caso sob julgamento, com a finalidade de agilizar o julgamento, diminuindo o tempo despendido na discussão e na solução da causa. É igualmente possível  e isso também já vem sendo feito em alguns casos por diversos tribunais  negociar a dispensa da sustentação oral diante do anúncio prévio do resultado do julgamento, ou seja, quando comparece para a sustentação oral apenas o advogado de uma das partes, e quando o resultado é-lhe favorável, o tribunal já lhe antecipa o resultado, indagando-lhe se não quer dispensar a sustentação oral. […]. Não se pode negar a possibilidade de o advogado, na sessão de julgamento, delegar a sustentação oral a outro advogado que não esteja habilitado nos autos, celebrando perante o órgão julgador um substabelecimento oral. Também é possível haver um negócio processual atípico para inverter a ordem de preferência de julgamentos […]. Tudo está a demonstrar, portanto, ser possível a celebração de negócios processuais sobre a sustentação oral" [4].

Nos processos subjetivos, onde existem interesses particulares que aguardam uma solução judicial, o direito à sustentação oral integra a garantia constitucional do contraditório [5], tanto é que o artigo 937 do CPC fala em recorrente, recorrido e, nos casos de intervenção, o Ministério Público, o que é mantido pelo art. 984, II, "a" do CPC. Quando a norma quer admitir que outros sujeitos do processo  interessados e amici curiae  exerçam um direito à sustentação oral, como forma de ampliação do debate, do contraditório, participando da formação da convicção judicial para que seja proferida uma decisão judicial mais democrática, o fez expressamente, o que é encontrado no artigo 984, II, "b" do CPC [6].

É inegável o benefício que a ampliação da participação na formação da convicção do julgador promove, tornando a decisão judicial mais democrática, participativa e adequada. O direito norte-americano nos apresentou a figura do amicus curiae, originariamente apresentado como um auxiliar desinteressado [7], que, atualmente é apontado como um sujeito com multiplicidade de interesses, tema abordado, de forma irretocável, no julgamento do AgR em RE 602.584, cujo voto vencedor foi do proferido pelo ministro Luiz Fux [8].

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO SUBJETIVO. PEDIDO DE INGRESSO COMO AMICUS CURIAE. INTERESSE INSTITUCIONAL COLABORATIVO E DEMOCRÁTICO. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE LESIVIDADE JURÍDICA. IRRECORRIBILIDADE. ART. 138 DO CPC. AGRAVO NÃO CONHECIDO.
1. Cabe ao amicus oferecer sua opinião sobre a causa, sobretudo nas questões técnico-jurídicas de maior complexidade. Assim, a tradução literal para “amigo da corte”, ainda que possa ser insuficiente para expressar o papel que desempenha, bem sintetiza a razão de ser eminentemente colaborativa do instituto. 2. O instituto do amicus curiae, historicamente, caracterizava-se pela presunção de neutralidade de sua manifestação, tanto na experiência romano-germânica, quanto na tradição anglo-saxônica. 3. Aos amici cabia apresentar elementos de fato e de direito que, por qualquer razão, escapassem do conhecimento dos juízes, assegurando a paridade de armas entre as partes, atuando de forma presumidamente imparcial. 4. A experiência norte-americana demonstra que os amici curiae ao longo do tempo perderam sua presumida imparcialidade (SORENSON, Nancy Bage, The Ethical Implications of Amicus Briefs, 30 St. Mary's L.J. 1225-1226. 1999). 5. A Suprema Corte americana alterou sua Rule 37 com o fito de clarificar quais os aspectos aptos a justificar a atuação da figura, independentemente de seus eventuais interesses: '1. A manifestação de amicus curiae que chame a atenção do Tribunal para uma questão relevante que ainda não tenha sido comunicada pelas partes pode ser de grande ajuda para o Tribunal. A manifestação de amicus curiae que não sirva a este propósito sobrecarrega o Tribunal, e sua juntada não é recomendável. A manifestação de amicus curiae pode ser apresentada apenas por um advogado admitido a praticar perante este Tribunal, conforme previsto na regra 5'. (Rules of The Supreme Court of The United States. Part VII. Rule 37. Brief for an Amicus Curiae) 6. A doutrina do tema reconhece que há uma multiplicidade de interesses a orientar a atuação do colaborador da Corte, o que não macula a ratio essendi da participação. O eventual interesse individual não pode ser o fundamento a justificar seu ingresso; não se confundindo com o interesse tipicamente subjetivado das partes, nem com o interesse institucional, de viés colaborativo e democrático, que constitui o amicus como um representante da sociedade. (SCARPINELLA BUENO, Cássio. Amicus Curiae no Processo Civil brasileiro: um terceiro enigmático. 2012. p. 121-122). 7. O amicus curiae presta sua potencial contribuição com a jurisdição, mas não se submete à sucumbência  nem genérica, nem específica  apta a ensejar o interesse de recorrer da decisão que, apreciando o pedido de ingresso, não vislumbra aptidão contributiva suficiente para a participação no caso concreto. A manifestação do amicus não pode ser imposta à Corte, como um inimigo da Corte. 8. O ingresso do amicus curiae, a par do enquadramento nos pressupostos legais estabelecidos Código de Processo Civil  notadamente que a causa seja relevante, o tema bastante específico ou tenha sido reconhecida a repercussão geral , pode eventualmente ser obstado em nome do bom funcionamento da jurisdição, conforme o crivo do relator, mercê não apenas de o destinatário da colaboração do amicus curiae ser a Corte, mas também das balizas impostas pelas normas processuais, dentre as quais a de conduzir o processo com eficiência e celeridade, consoante a análise do binômio necessidade-representatividade. 9. O legislador expressamente restringiu a recorribilidade do amicus curiae às hipóteses de oposição de embargos de declaração e da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas, conforme explicita o artigo 138 do CPC/15, ponderados os riscos e custos processuais. 10. É que o amicus curiae não se agrega à relação processual, por isso não exsurge para ele uma expectativa de resultado ou mesmo uma lesividade jurídica a ensejar a recorribilidade da denegação de seu ingresso. O status de amicus encerra-se no momento em que se esgota — ou se afere inexistir  sua potencialidade de contribuição ou sugestão (COVEY, Frank. Amicus Curiae: Friend of The Court. 9 DePaul Law Review, nº 30. 1959, p. 30). 11. A irrecorribilidade da decisão do Relator que denega o ingresso de terceiro na condição de amicus curiae em processo subjetivo impede a cognoscibilidade do recurso sub examine, máxime porque a possibilidade de impugnação de decisão negativa em controle subjetivo encontra óbice 1) na própria ratio essendi da participação do colaborador da Corte; e 2) na vontade democrática exposta na legislação processual que disciplina a matéria. 12. Agravo regimental não conhecido".

Porém, a separação legal do direito à sustentação oral, descrita no artigo 984 do CPC, objetiva evitar uma possível confusão entre amigo da corte e amigo da parte, o que poderá  em tese  gerar um desequilíbrio no exercício do contraditório ou reconhecer que uma parte seja "representada" no exercício do seu direito fundamental do contraditório através da sustentação oral por um amicus curiae à revelia da autorização da Corte.

Não se nega a existência de interesses para o amicus curiae, mas ceder o exercício do direito à sustentação oral de um interesse tipicamente subjetivo da parte, para modifica-lo (ou não) para um interesse institucional, assim como impor à Corte a sustentação oral do amicus curiae pela realização do negócio jurídico processual, poderá se apresentar contrário ao já mencionado julgamento do STF. Não se diga que a negativa prejudicará a participação do amicus curiae.

Há espaço para todos, com previsão legal [9], de forma escrita ou oralmente. Limitar ou condicionar a sustentação oral do amicus curiae ao não exercício do referido direito pela parte, nos aparenta uma dupla violação do direito ao contraditório, manifestado no direito à sustentação oral.


[1]  Aqui, acessado em 21 de junho de 2022.

[3] DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnações às decisões judiciais e processos nos tribunais, 13ª edição. Salvador: Editora JusPodivm. 2016. p. 69.

[4] Idem, p. 69-70.

[5] Idem, p. 62.

[6] No Regimento interno do STJ a conclusão, nos parece, ser a mesma, nos termos do art. 159, caput, §1º e §2º c/c artigo 160, caput, §1º e §8º.

[7] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil: introdução ao direito processual civil, 5ª edição, Rio de Janeiro: Editora Forense. 2015. p. 255.

[8] STF, RE 602584 AgR, relator (a): MARCO AURÉLIO, relator(a) p/ Acórdão: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-065 DIVULG 19-03-2020 PUBLIC 20-03-2020.

[9] DIDIER JUNIOR, op. cit. p. 590.

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