Opinião

Luva de Pedreiro e a ação de exigir contas

Autor

  • Marcel Reis Monroe

    é advogado especialista em Direito Processual e Direito Público pela PUC-MG. Bacharel em Direito pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão).

26 de junho de 2022, 10h13

Iran Santana Alves, conhecido mundialmente pelo pseudônimo "Luva de Pedreiro", transformou-se em uma celebridade internacional pelo seu modo simples e irreverente em comemorar belos gols em um precário campo de várzea, situado na cidade de Quijingue, no interior da Bahia. A cada jogada bem sucedida, gravada com um celular comum, Iran entoa o seu popular jargão "Receba!", acompanhado de um agradecimento à trindade divina.

Reprodução/Facebook
O mundialmente conhecido Luva de Pedreiro
Divulgação

O sucesso repentino e estrondoso despertou a curiosidade pública sobre as quantias faturadas pelo influenciador digital. O número surpreendente de seguidores, somado à grande interação do público, deu azo a especulações variadas sobre o montante de dinheiro arrecadado pelo fenômeno do Instagram e do TikTok.

Os mais otimistas especulavam um faturamento de dezenas de milhões de reais. Outros, mais conservadores, apostavam em pouco mais de um milhão. Recentemente, o colunista social Léo Dias indicou que as duas contas bancárias em titularidade do influenciador baiano possuíam movimentação mensal de aproximadamente R$ 7.000, fomentando as contestações feitas recorrentemente pelos fãs a respeito da atuação do empresário e agenciador esportivo Allan Silva Jesus nos potenciais contratos de marketing e publicidade celebrados por marcas famosas com Iran.

Instantaneamente, usuários das redes sociais mais conhecidas (Twitter, Facebook, Instagram, etc) começaram a repercutir as informações e criaram um ambiente de cobrança coletiva por respostas. No centro dos questionamentos estão as circunstâncias negociais em torno do contrato celebrado entre Iran Santana e a ASJ Assessoria e quantias envolvidas.

Para a devida compreensão jurídica do caso, deve-se, antes, relembrar conceitos fundamentais do Direito Civil, em especial do Direito Contratual, além de se avaliar a pertinência da utilização hipotética do instrumento processual contido no artigo 550 do Código de Processo Civil, a Ação de Exigir Contas, como alternativa instrumental para pacificação do conflito e atenuação das especulações.

Aspectos contratuais
Aos profissionais da área jurídica, não é novidade que o artigo 104 do Código Civil, em seus incisos, exige, para a validade do negócio jurídico, a existência de agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e a forma prescrita ou não defesa em lei.

Tratando-se da condição pessoal do agente, primeiro, há que se asseverar se sua capacidade civil é plena ou sofre limitações. Nesse tópico, a informação propalada na imprensa é de que o jovem Iran possui 20 anos completos, e, portanto, ao menos em tese, é plenamente capaz, nos termos da lei. Da mesma maneira, não há elementos referentes à existência de restrições judiciais acerca do exercício de capacidade civil, seja por intermédio do instituto da curatela, seja por aplicação do instituto da tomada de decisão apoiada. A regra, como se sabe, é o exercício pleno da capacidade civil.

Ainda assim, no caso "Luva de Pedreiro", um ponto se sobressai em meio aos debates virtuais em torno do caso: alega-se inexperiência e pouco conhecimento de Iran Santana Alves sobre as questões comerciais e jurídicas envolvidas com o seu sucesso. Nesse aspecto, até o momento, não há maiores informações sobre a formação escolar ou profissional do influenciador digital. Tampouco há elementos capazes de presumir sua vulnerabilidade jurídica, no sentido estritamente técnico da expressão.

Sobre a formação escolar no âmbito do município de Quijingue, o Censo Demográfico[2] de 2010 revela que, naquele ano, 98,4% da população entre 6 e 14 anos encontrava-se matriculada e frequentando regularmente a escola. O Censo Escolar[3] de 2021 registra a existência de 55 estabelecimentos de ensino, sendo que, destes, 54 encontram-se em funcionamento e sem restrições de atendimento e dois deles são dedicados ao ensino médio. No resultado do Saeb/Ideb 2019, o índice de proeficiência em português dos estudantes do 3º ano do ensino médio foi de 226,52 pontos, considerado insuficiente, mesma classificação alcançada em matemática (230 pontos).

Se por um lado o município baiano dispõe da rede básica de educação que entrega resultados insatisfatórios, no campo socioeconômico a realidade do município não é diferente. O índice de desenvolvimento humano (IDH) municipal (0,544) está abaixo da média nacional (0,765), e se encontra no mesmo patamar de países como Uganda (0,544), Ruanda (0,543) e Costa do Marfim (0,538). Em 2019, a razão entre a população e as riquezas produzidas pelo município, expressa pelo indicador econômico PIB per capita, foi de R$ 8.852,45, muito abaixo da média nacional, estimada em R$ 35.161,70 pelo IBGE, no mesmo período.

O Direito não se mostra indiferente a tamanha desigualdade social e econômica. No âmbito das relações obrigacionais, é certo que, para os fins de aferição da existência de vícios do negócio jurídico, em especial os vícios de vontade, a escolarização não é o único fator a ser considerando. As condições pessoais do agente diante da especificidade do negócio jurídico, segundo a sua natureza[4], também influem para a caracterização de causas de anulabilidade e do dever de indenizar (responsabilidade civil).

No caso em exame, dentre as modalidades de defeitos do negócio jurídico previstos no Código Civil, é possível considerar, em tese, a ocorrência de erro ou da lesão. A conclusão definitiva, se houve um ou outro, depende do exame das circunstâncias factuais envolvidas quando da celebração do negócio. Esse, entretanto, não é o objetivo do presente artigo.

Conceitualmente, haverá erro quando a parte prejudicada "tem um falso conhecimento da realidade, ou seja, aquilo que entrou no seu psiquismo está em desacordo com a realidade objetiva"[5], além de perceptível pela parte adversa. Nessa hipótese, o negócio resolve-se pela anulabidade, com possibilidade de apuração das perdas e danos, bem como dos lucros cessantes, em meio à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.

Noutro sentido, segundo a dicção legal, configura-se a lesão quando uma das partes, sob premente necessidade ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da vantagem auferida.

A vantagem em questão deve se mostrar objetivamente como excesso, capaz de distorcer a função social do contrato e contrariar os costumes da região onde celebrado. A desproporção entre a prestação oferecida deve expressar-se com valor econômico, na forma de lucro. Em resumo, como acentua Sílvio de Salvo Venosa[6], "a lesão, consiste no prejuízo que um contratante experimenta em contrato comutativo quando não recebe da outra parte valor igual ou proporcional ao da prestação que forneceu".

Para a incidência da lesão, também o requisito subjetivo deve estar presente. Este se revela como inexperiência ou premente necessidade do agente relativamente ao objeto do contrato. Por isso, a inexperiência aqui tratada não se limita àquela relativa à celebração de negócios jurídicos em geral, mas abrange o "desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa"[7].

Estabelecidas essas premissas, conclui-se que, no caso de lesão, com visto, quanto ao primeiro requisito, é imprescindível que se quantifique a expressão econômica tanto da prestação quanto da vantagem emergente da relação contratual a fim de se alcançar a desproporção de uma e outra. É nesse ponto, doravante, que se justificará o manejo da Ação de Exigir Contas.

Antes, interessa abrir um ligeiro parêntese sobre algumas características do contrato de agenciamento. Embora possa se mostrar em maior ou menor extensão, boa parte dos contratos de agenciamento artístico se aproximam da essência do contrato de agência (art. 710 do Código Civil), por meio do qual, "uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada". Nessa espécie contratual, todas as despesas correm por conta do agente (artigo 713), que, por sua vez, faz jus à remuneração correspondente aos negócios concluídos dentro de sua zona de exclusividade, ainda que sem a sua interferência (artigo 714).

Em outros casos, é comum a celebração do contrato de empresariamento, que aproxima-se, em essência, da sociedade empresarial, conquanto as partes partilhem os lucros (e também as despesas) da atividade explorada.

Dito isso, passemos à análise do cabimento e importância da ação de exigir contas para equacionar a celeuma descrita nos parágrafos anteriores.

Ação de exigir contas
O dever de prestar contas é ínsito àqueles que, habitual ou temporariamente, exerçam atividade ou funções representativas ou a gestão de negócios alheios. A esse dever, por exemplo, estão submetidos os advogados e mandatários em geral, em razão dos atos afeitos aos mandatos (artigo 668 do CC); os curadores e tutores, pelo período de suas administrações (artigo 1755 c/c 1.774, ambos do CC); bem como o cônjuge que detentor da guarda unilateral (artigo 1.583, §5º, do CC), dentre outros.

Ainda que não previsto contratualmente, é devida a prestação de contas quando as circunstâncias do caso concreto indicarem a possibilidade de enriquecimento sem causa (artigo 884 do Código Civil). O preceito deriva da cláusula geral da função social do contrato (artigo 421).

Assim, "aquele que afirmar ser titular do direito de exigir contas" (art. 550 do CPC), estará legitimado a manejar a ação de exigir contas, que tem procedimento especial bifásico.

Na primeira, julga-se o dever de prestar contas a partir da relação jurídica de direito material existente, e possui natureza de obrigação de fazer; na segunda, julga-se a regularidade das contas apresentadas, e impõe-se obrigação de pagar, caso em desacordo (STJ – RE nº 1.924.501/SP, Rel(a). Min(a). Nancy Andrighi). O título executivo judicial tornará certa a quantia devida, que deverá seguir o procedimento de cumprimento definitivo (ou provisório) da sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa, tal qual previsto nos artigos 520 ou 523 do CPC.

Aplicando essas considerações ao caso proposto, é de perceber que a ação de exigir contas se mostra como um instrumento extremamente oportuno e válido a dirimir tamanho dissenso entre o agenciador e agenciado. Nela, o agenciador disporá da oportunidade de demonstrar a higidez e probidade de sua administração. Por seu turno, o agenciado encontrará respostas para eventuais dúvidas financeiras relacionadas às expectativas de sua parte em função do objeto contratado.

Não é demais lembrar que mesmo o sujeito passivo do dever de prestar contas ostenta legitimidade para propor a demanda. Isto porque é de seu interesse a desoneração do encargo e a demonstração da correção e lisura da sua atividade (profissional, ou não) desenvolvida no curso da execução contratual. Nesse caso, o procedimento permanece bifásico. A sentença, contudo, não versará sobre obrigação de pagar, mas declarará prestadas as contas e exonerado da obrigação o autor.

À margem de toda a especulação e do sensacionalismo característicos do ambiente artístico e midiático, o Direito oferece instrumentos capazes de equacionar e pacificar o distúrbio social provocado pela possível situação de desequilíbrio e vulnerabilidade do genioso e jovem artista, ainda novato em um mundo de relações milionárias, repleto de negociadores e negociatas.

Se verificada, a partir da atividade probatória dos envolvidos, a ocorrência de vícios ao negócio jurídico celebrado, seja pelo erro ou pela lesão, os danos hão de ser reparados por meio do exercício da garantia constitucional do direito de ação. Os institutos podem exigir soluções distintas quanto ao meio: o erro pressupõe o manejo de ação anulatória; a lesão, pode ter a ação de exigir contas como instrumento hábil à tutela do direito violado, ou, ainda, a ação ordinária, evidentemente cabível considerada sua amplitude de objeto. Vale o desenho da estratégia processual mais eficiente e adequada à pretensão de cada um.

Como o Direito precisa manter-se sóbrio e arredio às especulações, porque instrumento de pacificação social, vale a citação do adágio popular, com adaptações: "os instrumentos processuais estão aí, distribui quem quiser".


[1]Advogado. Especialista em Direito Processual e Direito Público pela PUC/MG. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

[1]CENSO 2010. Disponível em:         https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ba/quijingue.html. Acesso   em: 23 jun. 2022.

[2]Catálogo de Escolas 2021. Disponível em:    https://inepdata.inep.gov.br/analytics/saw.dll?dashboard&NQUser=inepdata&NQPassword=Inep2014&PortalPath=%2Fshared%2FCenso%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20B%C3%A1sica%2F_portal%2FCat%C3%A1logo%20de%20Escolas.         Acesso em: 23 jun. 2022.

[3] Vide a redação do art. 157 do Código Civil.

[4] Humberto Theodoro Junior, Comentários ao novo Código civil, volume 3, Tomo I: dos defeitos do negócio jurídico ao final do livro III, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 36

[5] Direito civil: parte geral / Sílvio de Salvo Venosa. – 13. ed. – São Paulo: Atlas, 2013, pg. 449;

[6] Enunciado 410 da V Jornada de Direito Civil – CJF.

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