Embargos Culturais

Rui Barbosa e a inconstitucionalidade de leis e de atos do Executivo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de junho de 2022, 8h00

Rui Barbosa (1849-1923) destacou-se como advogado, político, jornalista, filólogo, homem público. Não lecionou (no sentido tradicional) e também não publicou livro de doutrina, sistematizado, e com propósitos de apresentar tratado, comentários, curso ou manual. No entanto, a multiplicidade e a qualidade de seus escritos, esparsos em petições, arrazoados e artigos de jornal constituem um corpo doutrinário sólido. Os escritos de Rui tocaram grandes temas constitucionais. É o que temos, por exemplo, com referências de Rui ao controle de constitucionalidade de leis.

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Para Rui, a constituição é ato de nação em atitude soberana de se constituir a si mesma. A lei, por outro lado, é ato do legislador em atitude secundária de executar a constituição. A constituição demarca os próprios poderes, a lei tem seus poderes confirmados pela constituição. A constituição é criatura do povo no exercício do poder constituinte. A lei é criatura do legislador como órgão da constituição. A constituição é instrumento de mandato outorgado aos vários poderes do Estado. A lei, conclui Rui, é o uso do mandato constitucional por um dos poderes constituídos pelo Estado.

Rui conhecia autores ingleses e norte-americanos, que citava com recorrência (Dicey, Kent, Marshall, Cooley, Hitchcok, Stevens). A Fundação Casa de Rui Barbosa publicou catálogo da biblioteca do jurista, impressionante, e fornece pistas para o estudo de seu pensamento.

É com base em Dicey (constitucionalista inglês) que Rui identificava três formas de se tratar a inconstitucionalidade. Na perspectiva do constitucionalismo inglês, um ato oposto aos costumes constitucionais poderia ser uma infração à legalidade, mas não seria nulo. Sob a perspectiva do direito francês, os juízes não estariam obrigados a aplicar uma lei inconstitucional. Sob a perspectiva norte-americana (a qual nos aproximamos, inclusive por força da influência de Rui) um ato normativo que exceda os poderes do Congresso, em face da Constituição, seria substancialmente nulo. Para Rui, com base nos autores norte-americanos, a invalidade da ação dos poderes políticos fora do círculo dos textos constitucionais consistiria no dogma cardeal do direito norte-americano.

Rui também insistia na inconstitucionalidade (e consequentemente na nulidade) de atos do Executivo. Enfatizava que toda medida, legislativa ou executiva, que desrespeitasse preceitos constitucionais seria, de essência, nula. Para Rui, no caso de leis inconstitucionais, se o arbítrio do Congresso fosse soberano, como queriam os congressistas brasileiros de sua época, influenciados pelos revolucionários franceses de 1793, os atos do Congresso estariam acima na Constituição, o que seria inadmissível. Nesse caso, a supremacia da Constituição seria meramente teórica.

O controle de constitucionalidade, segundo Rui, já era da tradição do direito colonial norte-americano. Havia notícias de controle de constitucionalidade, por jurisdições locais, em Nova Jersey, Virgínia e Carolina do Sul. Com base em autor americano, Cooley, Rui enfatizava que lei inconstitucional seria uma construção antinômica: uma lei não poderia ser inconstitucional; se o fosse, não seria lei.

Rui confirmava a aplicabilidade do instituto (controle de constitucionalidade) ao direito brasileiro, invocando a autoridade do art. 59 da Constituição de 1891, bem como no art. 13, § 10 da Lei n. 221, de 20 de novembro de 1984, que dispunha que juízes e tribunais apreciariam a validade das leis e regulamentos, deixando de aplicar nos casos que julgassem as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos incompatíveis com as lei ou com a constituição.

Rui teve seus grandes incensadores e teve também seus críticos. João Mangabeira, Luís Vianna Filho, Américo Jacobina Lacombe, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, e tantos outros, opinaram sobre Rui, e sobre sua obra. Creio que esse notável jurisconsulto simboliza o bacharelismo brasileiro. Passados quase cem anos de sua morte Rui é ainda polêmico, exigindo novos estudos biográficos, a exemplo do que se publicou recentemente sobre Euclides da Cunha, Júlio de Mesquita Filho e o Barão do Rio Branco.

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