Opinião

Legalidade penal e jurídica do modelo de atendimento médico por reembolso

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25 de junho de 2022, 6h04

Questão curiosa que tem sido apresentada ao Poder Judiciário diz respeito a um modelo de negócios diferenciado no setor de atendimento médico e laboratorial. Trata-se da prestação de serviços por clínicas e laboratórios particulares, em que o paciente se utiliza do crédito ou direito ao reembolso de despesas médicas por operadoras de planos privados de assistência à saúde que permitem a "livre escolha de prestadores" ao beneficiário. Essas clínicas deixam de efetuar a cobrança ao paciente logo após a realização do atendimento, concedendo-lhe um prazo para pagamento, ou permitem que este ocorra por meio de empréstimo operado por instituição financeira, se assim o preferir.

Na prática, é um atendimento particular a beneficiários de planos privados de assistência à saúde que tenham contratos com cláusula de livre escolha de prestadores e que, após a efetiva prestação dos serviços médicos, de posse de toda documentação comprobatória, inclusive notas fiscais, podem solicitar o reembolso das despesas médicas à sua operadora.

De início, vale esclarecer que a obrigação de reembolso por parte das operadoras possui previsão na Lei n° 9.656/1998, que disciplina os planos e seguros privados de assistência à saúde. Com efeito, o diploma legal dispõe que a prestação continuada de serviços por aqueles planos ocorrerá "com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor" (artigo 1º, inciso I).

 Tradicionalmente, o atendimento de assistência à saúde pode se dar tanto pela rede credenciada, contratada ou referenciada das operadoras, quanto por outros profissionais não credenciados (clínicas, hospitais e laboratórios particulares, por exemplo). No primeiro caso, o paciente não efetua pagamento algum, vez que o prestador de serviço é remunerado diretamente pela operadora. No segundo caso, regido pela liberdade de escolha do paciente, é dele o ônus de arcar com os custos dos serviços prestados por estabelecimento não credenciado, mas se vale da obrigação legal de sua operadora em custear despesas de assistência à saúde, sempre de acordo com os valores e limites contratuais. Nesse último cenário, são estabelecidas duas relações jurídicas distintas e autônomas: uma entre o paciente e a clínica particular (contrato de prestação de serviços) e outra entre o paciente e a operadora (contrato de plano privado de assistência à saúde).

O contrato de plano privado de assistência à saúde deve dispor, assim, sobre a permissão de acesso à livre escolha de prestadores, indicando as coberturas, informações para o cálculo de valores a serem reembolsados pela operadora e seu prazo, observado o máximo de 30 (trinta) dias após a entrega de documentação prevista para tal solicitação, nos termos do art. 12, inciso VI, da Lei n° 9.656/1998 [1]. Afinal, para os beneficiários que optam por essa modalidade de atendimento, que lhes permite selecionar as clínicas e laboratórios particulares que mais atendem às suas demandas e expectativas de qualidade, não devem existir barreiras que os impulsionem a preferir os estabelecimentos credenciados à operadora.

Nesse contexto, há prestadores que adotam um procedimento mais atrativo e facilitador para o paciente que deseja optar pela livre escolha: os serviços de assistência à saúde são realizados, na prática, sem o imediato pagamento dos valores correspondentes. Sustentando-se na previsão contratual de reembolso pela operadora, o paciente confere poderes especiais a clínicas e laboratórios particulares para que solicitem àquela o custeio das despesas referentes aos procedimentos concretamente realizados.

Essas clínicas e laboratórios particulares têm conhecimento da complexidade do processo de solicitação de reembolso e das exigências estabelecidas pelas operadoras para efetuá-lo aos beneficiários. Por tal razão, oferecem serviço adicional, gratuito e facultativo de intermediação entre o paciente e as operadoras, a fim de viabilizar o efetivo reembolso. Esse serviço, quando escolhido pelo paciente, é realizado com base nas disposições do inciso I e §1º do artigo 1º da Lei nº 9.656/1998, item 18 do Entendimento nº 08/2017 da Assessoria Normativa da Diretoria de Fiscalização — Difis [2] e artigo 8º da Resolução Normativa nº 483/2022 da Agência Nacional de Saúde Suplementar — ANS [3]. Para tanto, o paciente outorga procuração para que as clínicas e laboratórios particulares possam, em seu nome, apresentar os documentos, dar entrada no processo de solicitação de reembolso e acompanhá-lo até a realização da transferência dos valores para a conta bancária do beneficiário, por parte da operadora.

Na hipótese de negativa do reembolso, as clínicas e laboratórios particulares têm poderes para iniciar um processo administrativo junto à ANS, chamado Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), com o objetivo de que aquela autoridade reverta a situação, nos termos da lei, conforme possibilidade expressa no art. 8º da Resolução n° 483/2022 da ANS.

Diferentemente do que entendem as operadoras, essa prática, além de não prejudicá-las nem conter qualquer ilegalidade penal e jurídica, auxilia o paciente, que, muitas vezes, deixa de solicitar o reembolso ao qual tem direito por não saber como fazê-lo ou não se trata com médicos de sua preferência fora da rede credenciada, em razão de não ser possível ou conveniente a descapitalização durante o intervalo entre a realização dos procedimentos de saúde e o recebimento do reembolso previsto no contrato com a operadora.

Assim, além da clássica forma de pagamento realizada imediatamente após a prestação dos serviços, as clínicas e laboratórios particulares disponibilizam diversas formas de pagamento a prazo. Ao escolher uma delas, o paciente vinculado a algum plano privado de assistência à saúde pode, no intervalo entre a realização dos procedimentos e o prazo para pagamento, solicitar reembolso à sua operadora, desde que em seu contrato conste previsão de livre escolha de prestadores, nos termos do inciso VI do artigo 12 da Lei nº 9.656/1998, Anexo I da Instrução Normativa nº 23 [4] e item 18 do Entendimento Difis nº 08/2017 da ANS.

No entanto, o negócio, que oferece praticidade aos pacientes, pode ter sua legalidade questionada pelas operadoras mediante acusações aos beneficiários e às clínicas e laboratórios particulares. Para se fixar exclusivamente na eventual repercussão penal do tema, essas acusações vão desde delitos como falsidade ideológica e estelionato a diversos crimes contra as relações de consumo.

Ao que tudo indica, a análise do tema sob a perspectiva penal e jurídica volta-se às características e peculiaridades do atendimento particular que é realizado. O beneficiário que contratou plano privado de assistência à saúde o fez tendo em vista a adequação da cobertura aos seus desejos, condições e finalidades. Assim, se o plano contratado oferece a livre escolha de prestadores mediante o instituto do reembolso, tal aspecto torna-se um instrumento à integral disposição do paciente, sendo necessária a observância das disposições contratuais, pois as operadoras podem ser penalizadas por infrações de negativa de cobertura ou de ausência de garantia do cumprimento de obrigação prevista no documento de contratação, conforme os arts. 101 e 102 da Resolução Normativa n° 489/2022 da ANS.

A opção pela utilização da livre escolha pressupõe a existência de um acordo entre o paciente e o prestador não vinculado à rede credenciada, de modo que o primeiro, de fato, confessa uma dívida perante o profissional que fornece os serviços. Para tanto, confia na previsão do instituto do reembolso, que garante, por parte da operadora, o custeio das despesas referente aos procedimentos realizados. Se o beneficiário se valeu de tal possibilidade de forma consciente e nos termos contratuais, deve ser irrelevante, para a operadora, se imediatamente pagou pelos serviços ou se a contraprestação se confundiu com o próprio "reembolso".

No cenário aqui tratado, não há elementos para se afirmar que o modelo de negócios implica engano ou indução do beneficiário a erro, pois basta que se esclareça acerca da facilidade que lhe é apresentada. Outro aspecto merece ser destacado: se os serviços foram efetivamente prestados, não se está diante da obtenção de vantagem ilícita pelas clínicas e laboratórios particulares, que somente os realizam com a garantia de contraprestação. Pela mesma razão, não se altera a verdade sobre fato juridicamente relevante. Não se verifica, portanto, qualquer relevância penal na implementação de semelhantes modelos de negócio no setor de atendimento médico e laboratorial, desde que, evidentemente, seja estabelecida uma relação jurídica transparente entre o paciente e o prestador não vinculado à rede credenciada.

Essa dinâmica permite a concretização dos direitos integrais dos planos privados de assistência à saúde contratados com opção de livre escolha, evitando, ao mesmo tempo, que haja pressão para que as clínicas e laboratórios particulares se tornem credenciados de operadoras, fator que pode abalar a concorrência e sugerir um tabelamento forçado do custo de procedimentos médicos, bem como gerar interferência por parte das operadoras nos tratamentos de saúde do paciente.

Vale lembrar que pesquisa realizada pela Associação Médica Brasileira (AMB) em parceria com a Associação Paulista de Medicina (APM), intitulada "Os Médicos Brasileiros e os Planos de Saúde"[5], apontou resultados curiosos sobre o relacionamento dos médicos com as operadoras em atividade no país. Entrevistas com 3.043 médicos, em todas as regiões do país, entre 25 de fevereiro a 9 de março de 2022, revelaram que:

– 80,6% dos médicos relatam sofrer ou já ter sofrido pressão e restrição a pedidos e autorizações para exames;
– 53% dos médicos relatam interferências das operadoras nos tratamentos propostos a pacientes;
– 51,8% dos médicos relatam que operadoras criam dificuldades para a internação de pacientes;
– 
53,1% dos médicos relatam pressão por parte das operadoras para antecipar altas a pacientes;
– 
85,8% dos médicos relatam sofrer glosas ou atraso nos pagamentos às vezes ou com frequência;
– 
88,3% dos médicos relatam presenciar pacientes abandonando tratamentos por conta de reajustes de valores dos planos;
– 
55% dos médicos atribuem notas negativas ao grau de satisfação dos pacientes com os planos de saúde.

Em síntese, o modelo de negócio de atendimento em clínicas e laboratórios particulares por meio do direito ao reembolso, se realizado com transparência, não apresenta nenhuma ilegalidade. Eventuais tentativas das operadoras de induzir os beneficiários à busca de estabelecimentos credenciados, ou a utilização de medidas judiciais para tanto, contradizem, na prática, a previsão de livre escolha de prestadores a que os beneficiários têm direito.

NOTAS:
[1] Art. 12.  São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1° do art. 1° desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:
[
…]
VI – reembolso, em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1° do art. 1° desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada.
[2] Disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=MzM3OQ==
[3] Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-normativa-rn-n-483-de-29-de-marco-de-2022-389838201
[4] Disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=MjgxMw==
[5] Disponível em: https://amb.org.br/noticias/veja-a-pesquisa-inedita-medicos-brasileiros-e-os-planos-de-saude/

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