Opinião

O caso da Lei da Liberdade da Imprensa (1820-1823) em Portugal (parte 1)

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22 de junho de 2022, 9h01

A liberdade e a justiça foram temas muito debatidos nas Cortes Constituintes e Ordinárias do liberalismo vintista em Portugal. Se o debate sobre a justiça incidiu sobre as opções entre juízes populares e juízes letrados, o debate sobre a liberdade centrou-se no seu abuso, respectiva criminalização e julgamento, ou seja, acabou por ligar a justiça à liberdade. Se os debates marcaram as fronteiras entre os deputados radicais, moderados e conservadores, assinalaram, também, dois dos maiores embaraços políticos para o novo regime se legitimar como diferente da monarquia corporativa: a representatividade do processo eleitoral e o apuramento dos conselhos de jurados. O presente texto aborda a emblemática Lei da Liberdade da Imprensa e o modelo especial de julgamento dos seus crimes cujo desfecho irá influenciar, de forma inovadora, o modelo de justiça da monarquia constitucional.

Honoré Daumier/Reprodução
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Introdução
O objetivo central dos liberais vintistas (1820-1823) era instalar um sistema constitucional, diferente da monarquia tradicional que apelidavam, sistematicamente, de período despótico. Mas, em que é que os liberais se baseavam para designar o passado de despotismo? Fundamentalmente em três argumentos. O primeiro, na falta de liberdade que se traduzia na censura e repressão da produção, controlo e divulgação das ideias. O segundo, no modelo de justiça que protegia os mais poderosos e seguia dogmáticas absolutistas e discricionárias. O terceiro, nas formas de representação elitista que não permitiam recorrer ao povo através de eleições, ou seja, um problema de falta de representatividade política que os liberais queriam resolver através de eleições mais alargadas.

A questão da liberdade, no que respeita à produção e circulação de textos, panfletos e oratórias, encontrou uma série de limitações porque se, por um lado, a circulação de ideias podia fomentar a adesão à revolução, por outro lado permitia que os contrarrevolucionários se pudessem manifestar, os arruaceiros conseguissem perturbar a ordem pública e as ideias mais radicais começassem a questionar a própria monarquia. Estes focos de problemas, que a liberdade absoluta podia levantar, acabaram por condicionar o seu uso através da criminalização dos abusos e, posteriormente, replicaram os dispositivos repressivos anteriormente usados pelo absolutismo.

Quanto à justiça, as extremadas críticas contra a arbitrariedade da magistratura letrada não produziram alternativas exequíveis uma vez que a defesa dos juízes eletivos e dos jurados ficaria como testemunho da propaganda política porque, após a consolidação da Carta Constitucional (1842), o modelo de justiça voltaria a fundar-se nas magistraturas letradas, embora aceitando poderes residuais para os juízes de facto.

Sobre a representatividade política, a procura por fórmulas genuínas da vontade do povo, levando à realização de eleições para a escolha dos mais variados cargos, as modalidades adotadas não fugiram do modelo praticado no Antigo Regime, muito embora o alargamento da base de eleitores marcasse a diferença. Se as eleições para as Cortes Constituintes foram eleições indiretas, mediadas por filtros sociais tradicionais (Costa 2019), as eleições para as Cortes Ordinárias partiram das juntas eleitorais das freguesias para elegerem diretamente os eleitores.

A percepção, por parte dos deputados vintistas, dos problemas inerentes a estes três pilares do novo regime teve quatro momentos parlamentares emblemáticos, envolvendo o debate sobre as Bases da Constituição, a Lei da Liberdade da Imprensa, a Constituição e a Lei da Responsabilidade dos Funcionários Públicos [1].

Mas foi no debate sobre a Lei da Liberdade da Imprensa que se manifestariam, pela primeira vez, as insuficiências estruturantes do novo regime por falta de um direito administrativo que pudesse ser usado pelo poder executivo, pela necessidade de retirar dos tribunais de justiça o julgamento dos crimes de abuso da liberdade, pela dimensão política dos conselhos de jurados e pela quantidade e qualidade do expediente processual da pronúncia dos factos e da sentença dos crimes provados (Sousa 2010).

Se a historiografia Oitocentista se tem dedicado à importância do texto da Lei da Liberdade da Imprensa para a afirmação da liberdade política, do papel dos periódicos na formação da opinião pública (Tengarrinha 2013; Alves 2000), da luta ideológica da propaganda e suas consequências (ainda Alves 2005) e, especificamente, do processo de discussão parlamentar, o certo é que a "invenção" de um novo modelo de justiça, vanguardista para a época, assente em bases populares, não tem sido devidamente enfatizado, mesmo atendendo ao peso paradoxal que o modelo teve nas reformas posteriores da justiça, a de Mouzinho da Silveira (1832), a Nova Reforma (1837) e a Novíssima Reforma (1841).

Com o presente texto iremos analisar a formação e a eleição dos conselhos de jurados, as suas competências, a captura da justiça pelo poder legislativo através do Tribunal Especial de Proteção da Liberdade da Imprensa e referir uma das maiores inovações jurídicas, nunca mais experimentada na história da justiça, que foi a constituição de júris de jurados de facto e júris de jurados de sentença.

Para além da bibliografia de referência, serão utilizados alguns debates parlamentares, instrumentos normativos e legislativos, as Bases da Constituição, o projeto de Constituição, a Constituição de 1822 e a Lei sobre a Liberdade da Imprensa.

O processo político e legislativo
O processo político e legislativo sobre a liberdade da imprensa está estudado por Diana Tavares da Silva (Silva 2019), podendo ser resumido da seguinte forma. Começa com uma comissão de censura [2], a que se segue a promulgação da Lei da Liberdade da Imprensa (liberdade de "imprimir, publicar, comprar e vender nos estados portugueses quaisquer livros ou escritos sem prévia censura"), com a criminalização dos abusos e termina com outra comissão de censura [3]. Entretanto, com a outorga da Carta Constitucional, pelo decreto de 18 de agosto de 1826 os escritos sobre doutrina católica passaram a ir ao Desembargo do Paço, com licença dos Ordinários, e foram proibidas impressões que ofendessem o monarca ou a Infanta Regente, provocassem desobediência às leis e autoridades, fizessem acusações ou injúrias a particulares e funcionários públicos, contribuíssem para destruir as relações diplomáticas, ou ofendessem a moral e a honestidade pública. Permitia-se, além do mais, o exame "sisudo" de artigos sobre legislação política, civil, penal, econômica ou sobre atos e crimes de funcionários públicos.

Os argumentos utilizados pelos liberais para adotarem estes dispositivos tão diferentes foram, no essencial, sempre os mesmos, ou seja, defender a ordem pública, impedir as críticas ao governo, evitar heresias e ofensas à religião e proteger os ataques pessoais.

O início do processo sobre a liberdade da imprensa coincidiu com o debate sobre a liberdade para aprovar as Bases da Constituição (Almeida 2012) o que acabaria por obrigar à elaboração de uma lei da imprensa, eliminando, por conseguinte, a censura. Os artigos 8º, 9º e 10º das Bases da Constituição reconheciam a liberdade de pensamento e de expressão como "um dos mais preciosos direitos do Homem", com a ressalva da defesa da "ordem pública estabelecida pelas leis do Estado". Segundo estas orientações constitucionais não haveria, portanto, censura prévia e os abusos seriam julgados por um tribunal criado, para o efeito, pelas Cortes. O artigo 10º, porém, atribuía o direito aos bispos católicos para censurarem, previamente, os escritos sobre os dogmas e a moral cristã.

Foi na sessão de 5 de fevereiro de 1821 (DG, n.º 32, de 6 de fevereiro) que o deputado Soares Franco leu o Projeto de Lei sobre a Liberdade de Imprensa [4].

A tabela cronológica abaixo mostra que o debate ocorreu, sobretudo, durante dois meses (Dias 1978), nove sessões no mês de maio e outras tantas no mês de junho, num total de 18 sessões. Foram vários os momentos em que foi necessário recompor o texto devido a novas propostas apresentadas. Por outro lado, é necessário lembrar que os deputados se ocupavam de múltiplas tarefas e as próprias Cortes despachavam um expediente muito diverso e gerido pelas comissões especializadas (sobre a Comissão de Justiça Criminal, vide Subtil 1994) que tinham um papel central no funcionamento do Soberano Congresso [5]. As sessões eram interrompidas para várias atividades como leitura da distribuição das petições, memórias e ofícios, apresentação de projetos de decreto, requerimentos de instituições, representações, recepção de ministros e autoridades que vinham expor assuntos ou felicitar o Congresso, apologias à revolução e aos deputados, consultas dos tribunais do Antigo Regime, correio das câmaras municipais, dos juízes de fora e dos corregedores. É preciso ter em conta, portanto, que o debate sobre a liberdade da imprensa não fugiu a estes condicionalismos, o que explica certa demora na sua aprovação.

Apesar de uma grande unanimidade em torno da liberdade de imprensa, é de realçar que a censura prévia foi defendida pelo deputado Manuel Agostinho Madeira Torres e que no debate das Bases da Constituição, o bispo de Beja, António Camelo Fortes de Pina, José António Guerreiro e António Pinheiro Azevedo e Silva a tinham também defendido [6].

De notar, pela sua especificidade, que sobre a censura nas matérias religiosas, o deputado Manuel Fernandes Tomás argumentou que era necessário, apenas, que os pastores "pregassem as suas ovelhas, tanto com o exemplo como com a palavra; que este era o verdadeiro meio de fazer os homens bons" (Franco 1993).

Tabela cronológica do debate sobre a Lei da Liberdade da Imprensa

Sessão

Sumário

5/2 –

Leitura do projeto de lei pelo deputado Soares Franco

7/2 –

Referência ao projeto e à liberdade de pensamento

14/2 –

Debate sobre a censura

3/3 –

O projeto segue para a Comissão de Legislação

30/4 –

Manuel Fernandes Tomás chama a atenção do projeto

2/5 –

A Comissão queixa-se da falta de um código criminal e de um código de processo criminal

3/5 –

Debate sobre jurados

7/5 –

Manuel Fernandes Tomás sugere uma Comissão para a redação final. Debate

9/5 –

Debate sobre as penas

10/5 –

Entrega do trabalho da Comissão de Estatística sobre a distribuição dos jurados

13/5 –

Debate

19/5 –

Debate e muitas emendas

21/5 –

Discussão sobre abusos e penas

22/5 –

Debate sobre o Tribunal de Recurso

1/6 –

Lida a lei depois das alterações e novos arranjos

2/6 –

Continua a leitura

5/6 –

Debate sobre os jurados

7/6 –

A lei volta à Comissão para corrigir a pena de prisão e sequestro

8/6 –

A Comissão pede esclarecimentos. Debate sobre jurados

9/6 –

Tema da pronúncia e acusação

15/6 –

Questão da recusa de jurados e composição dos júris

16/6 –

Aprovada a tabela da divisão dos conselhos de jurados

27/6 –

A Comissão faz ajustes para se publicar a lei

28/7 –

A lei segue para a Comissão de Redação das Leis

4/7 –

Aprovação e publicação (ver DR, nº 175, de 26 julho, a nº 177, de 28 de julho)

Continua parte 2.

[1] O código sobre a responsabilidade dos funcionários públicos foi aprovado no célebre dia 13 de janeiro de 1823, para muitos deputados o dia mais importante depois da revolução liberal (24 de agosto de 1820). Percebe-se esta importância porque com esta responsabilização pretendia-se disciplinar a função do Estado onde se incluíam, também, os magistrados letrados que, por força da nomeação vitalícia, gozavam de privilégios excecionais.

[2] Portaria de 21 de setembro de 1820. A comissão foi composta por dois censores régios do Antigo Regime (o padre Lucas Tavares e Sebastião Francisco Mendo Trigoso), um professor do seminário do Patriarcado (Pedro José de Figueiredo), um clérigo crítico do absolutismo (José Portelli) e um magistrado liberal (João Vicente Pimentel Maldonado). Desta comissão sairiam, mais tarde, os dois únicos presidentes do Tribunal Especial da Proteção da Liberdade da Imprensa, José Portelli e João Vicente Pimentel Maldonado.

[3] Em 13 de novembro de 1823 foram proibidas as assinaturas de jornais estrangeiros e dadas instruções ao Intendente Geral da Polícia e seus delegados para procederem às apreensões justificadas, para além da aplicação de multas e pena de prisão. Em 6 de março de 1824 é reposta a censura prévia pelos Ordinários e o Desembargo do Paço uma vez que o tribunal do Santo Ofício já tinha sido extinto. O responsável por estas medidas foi o ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Manuel Marinho Falcão de Castro, que tinha desempenhado o cargo de Intendente Geral da Polícia. De notar, porém, que a fórmula usada pelo despotismo iluminado não seguiu só o modelo tripartido de censura, a censura “iluminada” (1768-1777) e a sua relação com o ambiente culto-mental da época pombalina (Araújo 2003) assentou numa particularidade orgânica. Os relatórios da Real Mesa Censória previam a permissão da edição e a proibição, mas, também, a possibilidade de reformulação dos textos, ou seja, uma orientação política fundada numa pedagogia orientada o que justificou o papel que a RMC irá desempenhar no ensino. É curioso que nenhuma das intervenções dos deputados vintistas se referiu a este modelo inédito de censura.

[4] O ano parlamentar das Cortes Constituintes iniciou-se a 24 de janeiro de 1821 e encerrou a 31 de dezembro para recomeçar em 28 de janeiro de 1822 e terminar a 4 de novembro. E, sobre o projeto ver: Subtil 1986.

[5] À Comissão das Comissões, criada em 30 de janeiro de 1821, competia-lhe a distribuição pelas comissões especializadas do enorme fluxo de requerimentos e petições que chegavam ao Congresso. Este movimento peticionário reforçou o poder do Congresso em detrimento do governo, a ponto de muitas queixas e pedidos acabarem por ser entregues diretamente aos deputados.

[6] Em 21 de outubro de 1822 (DG, n.º 257, de 31 de outubro), as Cortes assumiam lacunas na Lei da Liberdade da Imprensa, colmatando casos omissos como a venda e divulgação de escritos impressos no estrangeiro que atacassem o Estado. E decidiram, também, que o promotor de justiça, nas cidades de Lisboa e Porto, fosse o mesmo dos tribunais da Casa da Suplicação e da Relação do Norte.

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