Freios e contrapesos

Excesso não se resolve na mordaça, mas no patrimonial, diz Marco Aurélio

Autor

  • Eduardo Mattos

    é advogado economista e contabilista sócio do escritório Mattos Osna & Sirena Sociedade de Advogados pós-doutor em matemática aplicada (finanças quantitativas) pela New York University doutor em finanças pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com pesquisa realizada na University of Chicago Booth School of Business e mestre em direito comercial pela USP (Universidade de São Paulo).

25 de junho de 2022, 7h20

Em voto vazado, o ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos Samuel Alito teria redigido voto de posição majoritária que reformaria precedente naquele país (Roe v. Wade) e, como consequência, acabou limitando o acesso ao aborto, de acordo com previsões da legislação de cada estado. No voto, fez-se constar que a Suprema Corte teria criado no julgamento anterior um "direito ao aborto" que não existe na Constituição e, com isso, teria usurpado a competência dos verdadeiros detentores do poder de determinar a legalidade e condições para o aborto: os representantes eleitos pela população. O vazamento gerou reações diversas sobre a politização de seu teor.

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Embora com contornos próprios, a situação no Brasil não é diferente. Enquanto alguns consideram que o ambiente institucional do país só não se deteriorou excessivamente nos últimos anos em razão de uma boa atuação do Supremo Tribunal Federal, outros consideram que o tribunal com frequência se excede nos limites de suas competências. A população se divide sobre diversas medidas envolvendo determinadas liberdades, como o bloqueio do aplicativo Telegram ou a graça concedida pelo presidente da República ao deputado Daniel Silveira, condenado a mais de oito anos de prisão por declarações feitas sobre o STF.

Considerando um contexto econômico e social de rápidas mudanças e da formação de silos ideológicos nessa nova democracia digital, surgem algumas questões: qual a função de uma Suprema Corte? Como não usurpar competências de um processo legislativo lento e, muitas vezes, conservador de sua própria estrutura e interesse? Há um déficit democrático na modulação de políticas públicas por ministros não eleitos? Há necessidade de criação de um "código de ética" em tribunais superiores, tal como debatido atualmente nos Estados Unidos? Seria válida (ou constitucional) uma forma de controle das decisões do Supremo pelo Congresso, como proposta de PEC atualmente existente?

Para tratar dessas questões, é importante ouvir o ministro Marco Aurélio Mello, recentemente aposentado do Supremo Tribunal Federal após mais de 30 anos de serviços prestados à corte máxima do país.

O ministro, que está neste momento na Capadócia (Turquia), comemorando os 50 anos de seu casamento, falará no próximo dia 5 no Seminário de Verão da Universidade de Coimbra, em Portugal.

ConJur —  As tensões entre os poderes no Brasil estão bastante elevadas atualmente, inclusive entre o presidente da República e o Supremo Tribunal Federal — ao ponto de se questionar se a população confia mais em um ou em outro. Como o senhor acredita que o STF foi trazido para o centro dessa discussão política e de opinião pública?
Marco Aurélio — O Supremo é órgão do Judiciário. O protocolo está sempre aberto àqueles que se digam inconformados com certa situação jurídica. O que se nota é que partidos políticos, especialmente, acionam o Supremo para fazer frente a certas posições do Executivo. O ideal seria o entendimento entre o Legislativo e o Executivo e não se ter a judicialização de qualquer ótica. Mas, uma vez chegando a matéria ao Supremo, este, como última trincheira da cidadania, o faz com absoluta independência — bastando para assim se concluir que as cadeiras são vitalícias e que os integrantes continuam honrando essas cadeiras.

ConJur —  A tentativa de politizar a Suprema Corte é sentida tanto no Brasil, por exemplo, ao se definir um critério adicional para seleção de ministros, como sua orientação religiosa, quanto internacionalmente (vide interesse atual dos democratas em ampliar o número de ministros na Suprema Corte, para diluir a atual maioria conservadora). Existiria alguma forma de manter a institucionalidade ou, ao menos, limitar a tentativa de uso do órgão máximo do Judiciário por algum dos outros poderes? A forma de indicação ofereceria esse risco? Dando até um passo atrás, essa deveria ser uma preocupação institucional?
Marco Aurélio — A Suprema Corte brasileira foi criada à imagem da Suprema Corte americana, por inspiração de Rui Barbosa. Então, tem-se o sistema de escolha do integrante pelo presidente da República e sabatina pelo Senado. É um sistema experimentado e que vem dando certo. Ao contrário do que ocorre na Suprema Corte americana, nós não temos no Supremo brasileiro separações de grupos ante a ideologia. Após a nomeação, o integrante atua com desprendimento. Basta considerar o julgamento do "mensalão", em que indicados pelo governo do PT atuaram com absoluta independência. Não vejo como fugir ao que se tem hoje em dia. A modificação do critério de escolha do integrante do Supremo poderá realmente trazer novidade, mas não ao ponto de se chegar a um resultado melhor do que o que nós temos hoje em dia. Para mim, é satisfatório em termos de independência do Judiciário.

ConJur — Considerando a necessidade de um sistema de freios e contrapesos, como garantir que os poderes do Supremo também possam ser checados e delimitados?
Marco Aurélio — O Supremo é, a um só tempo, o guarda e o observador dos ditames constitucionais. Tem a última palavra sobre o Direito positivo, aprovado pelo Congresso, sobre o alcance da lei das leis do país. Evidentemente, não se pode adentrar círculo vicioso de ter-se acima dele outro órgão e aí se cogitar também, no tocante a este, de órgão fiscalizador. O fato de apreciar por último, com poder insuplantável, os conflitos de interesse só conduz a uma responsabilidade maior, a uma compenetração maior dos integrantes. Que estejam sempre ungidos e percebam a opção de vida que é ser juiz, principalmente ser juiz da mais alta corte do país.

ConJur — Algumas das últimas decisões polêmicas do STF envolveram pretensamente a liberdade de expressão (como o caso do bloqueio do Telegram e a condenação do deputado Daniel Silveira). A regulação de novas tecnologias se mostra, por si só, um grande desafio. O senhor considera que a facilidade de divulgação de informações em massa confere novos deveres atrelados à liberdade de expressão? E, em caso afirmativo, o Supremo seria o foro adequado para lidar com eventuais problemas advindos desses supostos excessos?
Marco Aurélio — A liberdade de expressão encerra cláusula pétrea, encerra direito fundamental. Tem-se, na Constituição, sistema de freios e contrapesos. Extravasamento resolve-se não no campo da mordaça, não no campo da proibição de veiculação de ideias, mas, sim, no patrimonial, considerada a responsabilidade civil — ou seja, a indenização e também a responsabilização penal daquele que cometer crime contra honra. Não vejo como fugir-se desse contexto e não passa pela minha cabeça proibir a utilização de plataforma ou chegar à responsabilidade de congressista, já que este é inviolável — consideradas palavras, opiniões e votos.

ConJur — Nos Estados Unidos, há pressão extremamente recente para que sejam oferecidas balizas para atuação dos ministros  como participação em eventos, regras para declaração de impedimento, entre outras. O principal objetivo seria o de garantir julgamentos afastados de interesses políticos específicos. O senhor acredita que, primeiro, enfrentamos problemas semelhantes no Brasil e que, segundo, seriam necessárias medidas semelhantes para limitar conflitos de interesse ou politização da atuação do órgão máximo do Judiciário?
Marco Aurélio — Não interessa à nacionalidade colocar o Supremo em uma camisa de força. Qualquer lei que diminua a independência do Supremo mostrar-se-á conflitante com princípios básicos contidos na Constituição Federal. A única política a que está engajado o Supremo é a política institucional de prevalência, em si, do ordenamento jurídico. Vamos caminhar para o aprimoramento das instituições, sem chegar a atitudes açodadas, como seria a que viria a limitar a atuação do Supremo.

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  • é advogado, economista e contabilista, sócio do escritório Mattos, Osna & Sirena Sociedade de Advogados, pós-doutor em matemática aplicada (finanças quantitativas) pela New York University, doutor em finanças pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com pesquisa realizada na University of Chicago Booth School of Business, e mestre em direito comercial pela USP (Universidade de São Paulo).

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