Opinião

Full disclosure, arbitragem e obrigatoriedade de comunicação à CVM

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24 de junho de 2022, 20h31

Em vigor desde o dia 2 de maio, a Resolução nº 80, de 29 de março de 2022, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), consolidou em seu texto normativo as regras já existentes no mercado de capitais brasileiros referentes ao registro e à prestação de informações por emissores de valores mobiliários.

A grande inovação da resolução foi a criação, para as companhias registradas na categoria A [1], da obrigatoriedade de divulgação de demandas societárias envolvendo 1) direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos em que a própria companhia, seus acionistas ou administradores figurem como partes ou 2) decisões cujos efeitos atinjam a esfera jurídica da companhia ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão da mesma que não sejam partes do processo, como ações de anulação de deliberações sociais, responsabilidade de administradores e responsabilidade de controladores (artigo 1º do Anexo I à Resolução CVM nº 80).

O texto da resolução estabelece que configuram demandas societárias os processos judiciais ou arbitrais que contenham pedidos fundamentados na legislação societária, do mercado de capitais, ou em qualquer outra norma da CVM.

A Resolução nº 80 é resultado de uma atuação conjunta entre a CVM e o Ministério da Economia, com apoio financeiro do Prosperity Fund (Grã-Bretanha) e apoio técnico do Comitê de Governança Corporativa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que atuam aproximar o sistema jurídico do mercado de capitais brasileiro com o de países mais desenvolvidos.

Já em novembro de 2020, em seu relatório intitulado Private Enforcement of Shareholder Rights: A Comparison os Selected Jurisdictions and Policy Alternatives for Brazil, a OCDE recomendou, entre outros, que o Brasil estabelecesse normas que tornassem públicas as informações sobre disputas societárias envolvendo companhias listadas [2].

A recomendação nº 16 do supramencionado relatório dispõe que demandas envolvendo litígios societários não devem ser confidenciais, sugerindo que, se a demanda em questão tiver o condão de impactar e vincular outros acionistas e investidores que não são partes do litígio, todo o mercado deverá ter acesso às informações e documentos em torno da disputa.

Por sua vez, quando as demandas não possuírem tal impacto, os administradores, em conformidade com seu dever de divulgação, devem ponderar se o litígio constitui ou não fato relevante passível de comunicação nos termos da lei. Caso não constitua, os administradores estariam desimpedidos de qualquer divulgação.

Conforme a Resolução nº 80, as companhias estarão obrigadas a divulgar informações como as partes, os valores, os principais fatos e pedidos, decisões e acordos obtidos no decorrer do litígio. Nesse ponto, talvez resida a principal polêmica da resolução visto que, como é notório conhecimento, as arbitragens societárias, normalmente, são revestidas por cláusula de confidencialidade comuns nos regulamentos das câmaras de arbitrais.

A questão não foi ignorada pela CVM que, por ocasião de audiência pública para discussão da matéria, já se manifestou, de antemão, no sentido de que "na visão desta Autarquia, a previsão de sigilo contida nos regulamentos de muitas câmaras arbitrais é inadequada, quando não incompatível com a resolução de certos conflitos de mercado […] é indiscutível que os regulamentos das câmaras não podem contrariar dispositivos legais e regulamentares e, nesse sentido, a Minuta esclarece que as obrigações de divulgação refletem preocupações centrais do regramento do mercado de capitais e não podem ser afastadas por convenções de arbitragem, regulamentos de câmaras arbitrais, regulamentos de câmaras arbitrais ou por qualquer outra convenção, respeitadas as hipóteses e observados os limites aplicáveis decorrentes de lei" [3].

Mesmo reconhecendo a importância da confidencialidade nas demandas societárias, por exemplo, para proteger o valor da companhia, seus segredos e estratégias de negócios ou evitar a utilização de informações por terceiros alheios ao litígio, vislumbra-se que a Resolução nº 80 da CVM acerta ao atribuir às companhias abertas determinada mitigação do sigilo característico dos procedimentos arbitrais [4]

Isso porque no mercado de capitais e, consequentemente, nas companhias abertas, o princípio do full disclosure configura um de seus principais pilares, segundo o qual deve-se assegurar aos investidores o mais amplo acesso a informações corretas, completas e claras, no intuito de habilita-los para tomar a melhor decisão de investimento após uma análise criteriosa e consciente, assumindo os riscos decorrentes de sua escolha. Desse modo, trata-se de um princípio que visa proteger a lisura e a respeitabilidade do mercado, evitando que interesses de relevo transcendentes à relação entre as partes sejam sobrepujados por interesses particulares,

Em um cenário contrário, ocorreria o que George Akerlof [5] nomeou por "seleção adversa". Isto é, a falta de informações e a ausência de qualidade de informações disponibilizadas por determinarmos agentes de mercado criaria um desincentivo para os agentes que ofertam bons produtos, na medida em que a disparidade informacional pode gerar uma injusta sensação de igualdade entre desiguais. Valendo-se da lógica de um consumidor, seria como este não percebesse, a partir das informações à sua mão, o diferencial entre os produtos dos diferentes agentes e, assim, a presença de fornecedores que pretendem oferecer produtos de baixa qualidade (como se de boa qualidade fossem) desincentiva a permanência daqueles que de fato ofertam produtos de boa qualidade [6].

Nesse contexto, o acesso a informação (de qualidade) consubstancia um direito de natureza instrumental, pois serve de meio ao exercício de outros direitos inerentes a posição de acionista, indispensável tanto para a tomada de decisões de investimento quanto para o exercício de outros direitos, por exemplo, o de fiscalizar a companhia, examinar documentos; participar das deliberações sociais (munido de informações para tanto), entre outros, justificando a proteção que a informação possui e vem desenvolvendo no âmbito do mercado de capitais.

Assim, constata-se que não há espaço para a confidencialidade absoluta da arbitragem no contexto das sociedades abertas, tanto é que a lei de arbitragem brasileira (Lei nº 9.307/1996) não impõe o dever de confidencialidade, que possui previsão apenas nos regulamentos das instituições e câmaras arbitrais [7]. O que a legislação brasileira prevê é o dever de discrição dos árbitros, que não se confunde com a confidencialidade.

Apenas a título de exemplo, a Lei nº 13.129/2015 que alterou a lei de arbitragem, mitiga a confidencialidade do instituto nos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública, haja vista a sobreposição do princípio da publicidade que rege a atividade administrativa do Estado (artigo 37, caput, da Constituição Federal), ou seja, a confidencialidade da arbitragem não é inafastável, devendo ser mitigada em prol da salvaguarda de interesses maiores.

Portanto, tendo em vista os inúmeros interesses envoltos no mercado de capitais, e levando em conta os vultuosos recursos ali alocados, a confidencialidade pode e deve ser mitigada em prol do full disclosure, ampliando o conhecimento dos atores deste mercado sobre informações que possam influenciar tanto suas decisões quanto o exercício de seus direitos, beneficiando a transparência, a accountability e a proteção do próprio mercado.

A realidade das companhias abertas demonstra a existência de uma acentuada assimetria informacional, advinda da própria estrutura destas sociedades, dada a alta concentração de poderes em figuras como os controladores, administradores e majoritários, que sempre saberão com antecedência acerca das decisões. Nos dizeres de Calixto Salomão Filho [8] "a diferença de informação entre os insiders da companhia (controladores e administradores) e os outsiders (minoritários e investidores) é imensa". Logo, não podem estes insiders se apropriarem de informações que, a priori, pertencem à toda companhia.

É nesse horizonte que a confidencialidade da arbitragem é utilizada para aumentar a supramencionada assimetria informacional [9], pois caberia aos administradores da companhia avaliar se tais eventos constituem ou não fatos relevantes passíveis de divulgação, ou seja, uma decisão que poderia envolver o interesse de uma coletividade é tomada por poucos, não sendo exceção os casos em que acionistas ou terceiros acabam por ficar alheios a relevantes questões decididas em sede de arbitragem (vide caso Eldorado Brasil, Petrobras, entre outros) [10].

Não obstante, a confidencialidade prejudica também a formação de uma jurisprudência societária a partir de precedentes, sobretudo em um panorama no qual a maioria dos conflitos societários são resolvidos pela via arbitral.

Mitigar a confidencialidade dos procedimentos arbitrais envolvendo as companhias e casos objeto da Resolução nº 80 não se traduz na publicização de seus segredos comerciais, estratégias de negócios, patentes, desenhos industriais e informações sigilosas, mas, sim, um impulso ao cumprimento e densificação do full disclosure tão caro aos mais legítimos interesses dos outsiders. Ao mesmo tempo, este impulso não resulta na inutilização da arbitragem, ocupando-se o texto normativo da resolução em elencar as informações obrigatórias que o comunicado deverá conter, quais sejam, as partes no processo; valores, bens ou direitos envolvidos; principais fatos; e pedido ou provimento pleiteado, conforme previsto no Anexo I, da Resolução, não sendo necessário a disponibilização do inteiro teor de nenhum documento relativo às demandas.

Assim, considerando a correlação positiva entre as medidas que objetivam a proteção dos investidores e o desenvolvimento do mercado de capitais, isso porque, sem essa proteção, não haveria confiança e, consequentemente, incentivo às operações no mercado de capitais, a Resolução nº 80 representa, em boa hora, um importante avanço no arcabouço jurídico do país com objetivo de proteger os direitos de acionistas (sobretudo minoritários), aprimorando a regulamentação inerente à disponibilização de informações no mercado, promovendo um processo de tomada de decisão consciente por parte dos investidores e, consequentemente, a maior proteção aos acionistas e das próprias companhias que vertem esforços para a tutela dos seus reais interesses institucionais, independente do filão de acionistas que podem (ou não) se beneficiar a partir de determinado procedimento arbitral.


[1] O registro na categoria "A" autoriza a negociação de quaisquer valores mobiliários do emissor em mercados regulamentados.

[2] OCDE, Private Enforcement of Shareholder Rights: A Comparison of Selected Jurisdictions and Policy Alternatives for Brazil. Disponível em: https://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm. Acesso em 10 de junho de 2022.

[3] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Edital de Audiência Pública SDM nº 01/2021. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0121.html. Acesso 10 de junho de 2022.

[4] Nesse sentido: "[…] no caso das sociedades anônimas abertas, por exemplo, face ao dever de full disclosure a que estão submetidas, em virtude, principalmente, da captação da poupança popular, faz-se necessária em certa medida, uma mitigação ou relativização do sigilo inerente aos procedimentos arbitrais". VERÇOSA, Fabiane [et al]. Arbitragem e mediação: temas controvertidos.  Rio de Janeiro: Forense. 2019.

[5] AKERLOF,George. The Market for "lemons": quality uncertainty and the Market mechanism. The Quartely Journal of Economic, Massachusetts: MIT Press, v. 84, nº 3, 1970.

[6] PITTA, André Grünspun. O Regime de Informação das Companhias Abertas. São Paulo: Quartier Latin, p. 72/73. 2013.

[7] FRANZONI, Diego. Arbitragem Societária: Fundamentos para uma possível regulação. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial)  Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo  USP. São Paulo, p. 139. 2015.

[8] SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário: eficácia e sustentabilidade. 5ª. ed.  São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[9] Conforme Guilherme Setoguti Pereira "Um dos pilares do mercado de capitais, o regime do full disclosure é vulnerado pela confidencialidade da arbitragem envolvendo litígios societários. O sigilo aumenta a assimetria de informações entre os agentes de mercado e até mesmo entre sócios de uma mesma sociedade e, consequentemente, diminui a eficiência do mercado de capitais"  PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Temos que repensar a confidencialidade das arbitragens Societárias. In.: YARSHELL, Flávio Luiz e PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord). Processo Societário, Vol III. São Paulo. Quartier Latin, 2018, p. 227-228.

Autores

  • é advogado no escritório Müller, Novaes, Giro e Machado Advogados, atua nas áreas de direito empresarial, societário, compliance e integridade corporativa. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juíz de Fora e especialista em direito empresarial pela FGV (Fundação Getulio Vargas).

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