Opinião

Cobertura dos planos e rol da ANS: o que permanece sem resposta (parte 1)

Autor

  • Rafaela Guerra Monte

    é advogada sócia da Fraemam e Guerra Advocacia mestra e doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE).

22 de junho de 2022, 6h14

"nestas condições, pode dar em tragédia, provavelmente é disso mesmo que eles estão à espera, que acabemos aqui uns atrás dos outros, morrendo o bicho acaba-se a peçonha."[1]

A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou no dia 08/06/2022 os embargos de divergência EResp 1.889.704 e EResp 1.886.929 e decidiu que o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS é taxativo mitigado, enumerando as exceções.

A abordagem do tema será dividida em três partes, com os seguintes tópicos: 1) preparativos, com a contextualização sobre os interesses envolvidos; 2) O teor que prevaleceu na decisão do STJ; 3) Os paradigmas modificados; 4) O integral acerto do voto da ministra Nancy Andrighi e o entendimento do STF; 5) doses de realidade, mostrando celeumas não solucionadas pela decisão e as criadas; e 6) Breves conclusões. Aos leitores com preferência unicamente pela análise mais direta dos desdobramentos dos parâmetros fixados pelo STJ, recomenda-se a leitura a partir do tópico 5.

Nesse texto indicaremos as problemáticas que cercam a decisão, sem a pretensão de exaurir todos os aspectos que a envolvem, afinal, a questão é complexa, perpassa por políticas públicas, atuação do Executivo, Legislativo e Judiciário, levanta pontos sobre direitos fundamentais, regulação (falhas de mercado, captura político-econômica, princípio da legalidade e déficit democrático), aplicação do Código de Direito do Consumidor, bem como questões de índole processual, entre outros.

Preparativos
Em outubro de 2019 foi noticiada[2] a proposta apresentada pelas operadoras ao Congresso e governo no sentido de flexibilizar as regras que regulamentam o setor e assim facilitar a oferta de planos individuais com menor cobertura e mensalidades mais supostamente baixas, chamados de planos de saúde "pay-per-view"[3]. Também foi objeto de reivindicação das operadoras: o fim da vedação do reajuste por idade a partir dos 60 anos, o aluguel de equipamentos do SUS pelo setor privado, prazos mais longos de autorização de consultas e punições mais brandas em caso de descumprimento de regras.

No mesmo ano foi proferida a primeira decisão da 4ª Turma do STJ, quando decidiu pela primeira vez que o rol de procedimentos da ANS era taxativo, restringindo a cobertura ao previsto no rol da ANS. Tal precedente externou a alteração do entendimento pacificado de que o rol era meramente exemplificativo, ou seja, dispondo apenas sobre a cobertura mínima, sendo os planos obrigados a uma cobertura mais ampla, para além do rol. A 3ª Turma do STJ, por sua vez, manteve o entendimento de que o rol era exemplificativo.

Em novembro de 2020 ocorreu o 3º Seminário Jurídico de Seguros, encontro por videoconferência realizado com apoio do STJ e participação da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg)[4]. Na ocasião, o próprio Ministro Luis Felipe Salomão indicou como inaceitável o prazo de dois anos para atualização do rol e repreendeu a ineficiência das agências reguladoras, considerando-a como obstáculos para primazia da deferência.

Em 2021 foi editada a Medida Provisória nº 1.067/2021, convertida na Lei nº 14.307/2022 [5], que alterou a redação da Lei nº 9.656/1998, reforçou a taxatividade do rol da ANS, instituiu a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar e alterou de dois anos para seis meses o prazo para atualização do rol de procedimentos.

Ainda no mesmo ano, a ANS editou a Resolução Normativa nº 465/2021 com a troca da expressão "cobertura mínima" por "para fins de cobertura, considera-se taxativo o rol (…)"[6] e foi justamente nesse sentido a conclusão da Segunda Seção do STJ.

O argumento que prevaleceu
O ministro Relator Luis Felipe Salomão, em setembro de 2021, já havia antecipado o seu voto no sentido da taxatividade do rol[7]. No voto do Relator preponderou o teor do equilíbrio econômico contratual, o qual, no seu entendimento, só será alcançado com a restrição das coberturas a priori. Foi reforçada a finalidade de garantir segurança jurídica e possibilitar o oferecimento de planos de saúde mais variados e acessíveis.

Destaca-se o seguinte trecho da fala[8] do Eminente Ministro, que auxilia para a compreensão global do seu posicionamento sobre a matéria:

"olhando em perspectiva, olhando a floresta toda e, na evolução dessa carreira que já vai longa, conseguimos perceber não a árvore que tá ali na nossa frente, mas conseguimos enxergar o todo, conseguimos ouvir as vozes daqueles usuários que não estão aqui, que não tem ninguém para gritar por eles e que vão ficar sem tratamento, quando a gente estende o cobertor que é curto(…)"

Em seguida arrematou com a pergunta:

"beneficiar alguns usuários do plano de saúde em detrimento de outros que pagam a mesma mensalidade amplia ou restringe o benefício geral para todos?"

Se aplicada tal linha de raciocínio em outras situações, se passará a legitimar a cobrança mais gravosa aos idosos, pessoas com deficiência, pessoas com doenças raras, por exemplo, e isso é inconcebível.

A concordância com a limitação de cobertura para usuários de planos que precisam de maior atenção à saúde para garantir preço "mais acessível" para os outros usuários, recai no utilitarismo, o qual aceita o sacrifício de um indivíduo em prol da coletividade. A respeito da visão utilitarista, Samer Agi frisa que "nós precisamos proteger a vida, ainda que seja a vida de um indivíduo". "Foi assim que nos libertamos da barbárie e consagramos direitos fundamentais(…). Precisamos procurar um êxito social, mas sem desrespeitar os direitos fundamentais e a dignidade de cada indivíduo[9]." Transferindo essa perspectiva para a situação em apreço, o êxito social está distante de ser alcançado com uma restrição prévia de acesso à saúde.

Paradigmas modificados
A lógica adotada na decisão do STJ vai de encontro à natureza dos contratos de planos de saúde e, nesse passo, é oportuno trazer à baila as considerações de Nelson Nery Júnior:

Quem quer contratar plano de saúde quer cobertura total, como é óbvio. Ninguém paga plano de saúde para, na hora em que adoecer, não poder ser atendido. De outro lado, se o fornecedor desse serviço exclui de antemão determinadas moléstias, cujo tratamento sabe dispendioso, estará agindo com má-fé, pois quer receber e não prestar o serviço pretendido pelo consumidor[10].

O entendimento predominante no STJ até o dia 8/6/2022 era de que a prerrogativa para eleger o tipo de exame e tratamento adequado para a prevenção da doença e a recuperação, manutenção e reabilitação da saúde do paciente era do médico. Seguia-se, portanto, a previsão legal que consagra essa indicação como atividade privativa do médico[11], e o princípio fundamental da medicina, disposto no Código de Ética[12], segundo o qual "o médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob  nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir  quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho".

O Código de Ética Médica veda expressamente ao médico, no artigo 20:

"Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade."

Na contramão desses ditames, há partes no processo julgado pelo STJ em que a narrativa das operadoras de planos de saúde foi de polarização entre os seus interesses e dos prestadores de serviços de saúde, alegando que estes seriam incentivados a recomendar o máximo possível de procedimentos e, assim, gerar uma utilização desnecessária dos serviços de saúde.

A ocorrência de fraudes não foi ignorada pela ministra Nancy Andrighi quando rejeitou a tese do rol taxativo, observando o estudo do IESS[13] que informa que, em 2017, quase R$ 28 bilhões de gastos de operadoras com contas hospitalares e exames foram consumidos indevidamente, com fraudes e desperdícios através de procedimentos desnecessários. Tal numerário representou 19,1% do total de despesas assistenciais do período, portanto, a partir dessa informação a julgadora concluiu que a elevação das despesas da saúde suplementar não decorre só dos gastos com atendimento dos beneficiários ou incorporação de novas tecnologias, mas também em grande parte por prescrições fraudulentas, prática que, evidentemente, "deve ser fiscalizada e coibida pelas operadoras e não suportadas pelos beneficiários".

Continua parte 2.


[1] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Editora Companhia das Letras, 1995. p.33.

[2] Istoe. Operadoras querem planos de saúde específicos e no formato ‘pay-per-view’. Disponível em: https://istoe.com.br/operadoras-querem-planos-de-saude-especificos-e-no-formato-pay-per-view/. Estadão. Proposta de plano de saúde ‘pay-per-view- mira clientes do mercado informal. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,proposta-de-plano-de-saude-pay-per-view-mira-clientes-do-mercado-informal,70003055814.

[3] O modo pay-per-view consiste em pacotes de cobertura, um só com consultas médicas, outro de exames, um extra de terapias, e um hospitalar, os quais poderiam ser combinados, e ainda com a segmentação para determinados tipos de doenças ou para procedimentos específicos. O usuário então montaria o seu plano, assim como faz com pacotes de tv por assinatura.

[4] Disponível no youtube , no canal da Revista Justiça e Cidadania no link: https://www.youtube.com/watch?v=ESgBAoe5WvQ.

[5] A referida lei é objeto da ADI nº 7.088/DF de relatoria do Ministro Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal.

[6] É oportuno mencionar que na parte de busca ao rol, no link: https://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/espaco-do-consumidor/o-que-o-seu-plano-de-saude-deve-cobrir, continua escrito que se trata de cobertura mínima, a saber: “Verificar cobertura de plano – Consulte se o procedimento faz parte da cobertura mínima obrigatória.

[7] É oportuno advertir que todas as menções aos votos realizadas nesse artigo de opinião são provenientes do assistido nas sessões de julgamentos disponíveis no youtube,  no canal do STJ nos seguintes endereços:

https://www.youtube.com/watch?v=4DjS1Hq8v_E

https://www.youtube.com/watch?v=gcbFCkP4drg&list=PL4p452_ygmscySkaCAwNS6XYJ6HJ0l1AC&index=100 ;

https://www.youtube.com/watch?v=9CHVEXFnyMI&t=7607s

[8] Sessão de julgamento disponível no canal do STJ do youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=gcbFCkP4drg&list=PL4p452_ygmscySkaCAwNS6XYJ6HJ0l1AC&index=100 (aproximadamente às 3horas e 30 minutos de vídeo).

[9] Lição extraída da aula 2 a respeito da obra Ensaio Sobre a Cegueira, atinente ao trecho da obra de Saramago transcrito no início desse artigo.

[10] NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, vol. I, 10º ed., Forense, 2011, p. 581.

[11] A Lei nº 12.842/2013 prevê no art. 4º , incisos II e III, que:

Art.4º São atividades privativas do médico:

I – (VETADO);

II – indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;

III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;

[12] Código  de  Ética  Médica  (Resolução  CFM  2.217/18) , capítulo I, inciso VIII.

[13] O Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo promover e realizar estudos de aspectos conceituais e técnicos que sirvam de embasamento para implementação de políticas e introdução de melhores práticas voltadas para a saúde suplementar. O estudo foi mencionado no voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi ao tempo 3horas e 10 minutos do vídeo disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=gcbFCkP4drg&list=PL4p452_ygmscySkaCAwNS6XYJ6HJ0l1AC&index=103.

Autores

  • é advogada, sócia da Fraemam e Guerra Advocacia, mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) e recém-aprovada na seleção do doutorado do mesmo programa.

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