Processo Novo

Necropolítica, necrodireito e Constituição

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

22 de junho de 2022, 9h42

Ao início de Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez afirma que os eventos que viria a descrever sucederam em uma época peculiar: "O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava de apontar com o dedo".

Spacca
Às vezes convém dar nome às coisas, sob pena de não se lhe reconhecer a existência. Isso se agrava quando, por não se nominar um problema, deixa-se de tratá-lo e de saneá-lo. Ignorado, ele pode ir se alastrando pé ante pé, até tornar-se sistêmico.

A necropolítica, em sentido estrito, consiste em tomada de decisões políticas elegendo-se grupos que devem viver e que devem morrer. Para Achille Mbembe, "a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder".[1]

É possível traçar uma relação entre necropolítica e necropoder. Afirma Mbembe que "as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror", e, diante disso, propõe "a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de 'mundos de morte', formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de 'mortos-vivos'".[2]

A necropolítica pode servir de princípio àqueles que criam programas que desfavoreçam determinado grupo social, pessoas que residam em dada localidade ou que tenham determinada idade etc. Com base nesse entendimento, uso o termo necropolítica para designar a atuação orientada pela morte, seja esta efetivamente desejada, seja ao menos admitida e não evitada por aqueles que têm poder de decisão política estatal.[3]

Como é evidente, a tomada de decisões políticas pelos agentes públicos que seja assim orientada contraria a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, III da CF) e não se ajusta aos objetivos fundamentais previstos no artigo 3.º da Constituição Federal.

Por exemplo, ao invés de melhorar a qualidade de vida de camadas mais fragilizadas em atendimento ao que dispõe o artigo 3.º, III da Constituição, um modo de agir orientado pela necropolítica agravaria as más condições de vida de pessoas já pouco favorecidas, levando ao seu perecimento.

Esses males vêm sendo reconhecidos em poucas, mas expressivas manifestações do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Pincemos dois exemplos:

A omissão de agentes estatais diante de flagrantes quadros de falência na área de saúde é algo que, sob certo ponto de vista, pode ser qualificado como uma postura necropolítica. Em julgado expressivo, o Ministro Rogério Schietti Cruz assim escreveu: "[…] A situação vem-se agravando e, provavelmente, dias piores ainda virão em alguns centros urbanos, cujas redes hospitalares não são capazes de atender à demanda crescente por novos leitos e unidades de tratamento intensivo. E boa parte dessa realidade se pode creditar ao comportamento de quem, em um momento como este, deveria deixar de lado suas opiniões pessoais, seus antagonismos políticos, suas questões familiares e suas desavenças ideológicas, em prol da construção de uma unidade nacional. O recado transmitido é, todavia, de confronto, de desprezo à ciência e às instituições e pessoas que se dedicam à pesquisa, de silêncio ou até de pilhéria diante de tragédias diárias. É a reprodução de uma espécie de necropolítica, de uma violência sistêmica, que se associa à já vergonhosa violência física, direta (que nos situa em patamares ignominiosos no cenário mundial) e à violência ideológica, mais silenciosa, porém igualmente perversa, e que se expressa nas manifestações de racismo, de misoginia, de discriminação sexual e intolerâncias a grupos minoritários. […]".[4]

A necropolítica, vê-se claramente, é incompatível com a ordem constitucional. Prática inaceitável, deve, como tal, ser repudiada na interpretação e na aplicação da Constituição. Se tolerada, pode permitir que a própria interpretação constitucional seja por ela contaminada.

A Constituição não se presta a ser interpretada como um pacto suicida. Após citar esse pensamento de Richard Posner,[5] afirma a ministra Rosa Weber, ao proferir voto em julgamento no Supremo: "Diante de uma grave e real ameaça à vida do povo, não há outro caminho a ser trilhado, à luz da Constituição, senão aquele que assegure o emprego dos meios – necessários, adequados e proporcionais — para a preservação da vida humana. A Constituição da República Federativa do Brasil repudia a instrumentalização retórica das liberdades nela asseguradas com vista à promoção de uma necropolítica que nenhum parentesco guarda com os ideais genuinamente liberais". Adiante, prossegue: "A omissão e a negligência com a saúde coletiva dos brasileiros têm como consequências esperadas, além das mortes que poderiam ser evitadas, o comprometimento, muitas vezes crônico, das capacidades físicas dos sobreviventes que são significativamente subtraídos em suas esferas de liberdades. Sequelas limitadoras reduzem as possibilidades de escolhas disponíveis aos indivíduos, o espaço em que pode ser exercida a sua autonomia individual, limitando-a".[6]

Necessário enfatizar que se trata de prática repugnante, que deve ser repelida, sob pena de, pouco a pouco, sorrateiramente, vir a contaminar o próprio direito. O necropoder, para além da necropolítica, pode atingir também essa forma de manifestação estatal. Daí, então, se poderia falar em necrodireito. O necrodireito, sob essa perspectiva, seria a atuação orientada pela morte, efetivamente desejada ou ao menos admitida e não evitada por aqueles que têm poder de decisão jurídica estatal.

Assim, por exemplo, poderia suceder com a atuação jurisdicional que, eventualmente, deixe-se levar pela prática de atos isolados ou coordenados que determinem ou deixem de impedir a violência contra grupos minoritários ou pessoas isoladas que se encontrem em situação de fragilidade, com isso podendo-se conduzir, até mesmo, à sua morte. Isso pode suceder com uma solução jurisdicional que conduza à redução ou à aniquilação do direito à saúde de um grupo, como as pessoas com deficiência, ou que subjugue ou reduza física ou moralmente uma mulher ou uma menina.

Em 2011, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas decidiu designar o dia 11 de outubro como o Dia Internacional da Menina. Após recordar os direitos humanos e outros instrumentos relevantes para os direitos das mulheres e das crianças (Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), a Resolução reconhece que a participação das meninas nas decisões que as afetam é fundamental "para quebrar o ciclo de discriminação e violência e para promover e proteger o gozo pleno e efetivo de seus direitos humanos".[7]

Tal como a necropolítica pode se manifestar tanto em atos isolados como em uma prática ampla e coordenada, assim também pode vir a suceder com as decisões da Justiça estatal. Esse grave problema, caso se manifeste isolada ou sistematicamente, tem um nome: necrodireito. Não mais se justifica apenas "apontar com o dedo", já que a figura pode ser reconhecida e estudada a partir de uma expressão que a designa. Os julgados acima mencionados revelam que o problema já chamou a atenção nos Tribunais. Cumpre-nos repudiar todos os modos e formas de construções doutrinárias ou jurisdicionais que conduzam à morte física ou moral de pessoas que se encontrem em situações menos favorecidas, encontrem-se estas em grupos ou isoladas.


[1] Achille Mbembe, Necropolítica, Arte & Ensaios – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dezembro/2016.

[2] Ob. Loc. cits.

[3] Nesse sentido, escrevemos em Constituição Federal Comentada, comentário ao artigo 3.º da Constituição (7.ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2022).

[4] STJ, HC 580653, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, j. 20.05.2020.

[5] Extraído da obra Not a Suicide Pact: the constitution in a time of national emergency (Oxford University Press, 2006).

[6] STF, ADI’s 6.586/DF e 6.587/DF e ARE 1.267.879/SP, relator Ministro Ricardo Lewandowski, Pleno, j. 17.12.2020, trechos do voto da Ministra Rosa Weber.

[7] Disponível em <https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/66/170>, acesso em 21/06/2022.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!