Opinião

Raimundo de Monte Arraes, cidadão de vários mundos

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22 de junho de 2022, 17h07

Há um jurista brasileiro que desempenhou um papel de destaque no cenário político e jurídico nacional, principalmente nas décadas de 1920 e 1930. Sua projeção pode ser creditada a algumas de suas atividades desempenhadas nesse período, como ter integrado os quadros do Partido Republicano Conservador (PRC) e da Aliança Liberal, ter publicado em 1925 a obra "O Rio Grande do Sul e suas Instituições Governamentais", em defesa da doutrina do conservadorismo positivista autoritário e do governo de raízes castilhistas no estado do Rio Grande do Sul [1], ter exercido o mandato de deputado estadual e deputado federal entre os anos de 1925 e 1927 e 1935 e 1937, e ter sido um importante ator na defesa doutrinária do Estado Novo através da publicação de obras como "O Estado Novo e suas Diretrizes" (1938) e "O Brasil e os Regimes Ocidentais" (1943) [2].

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Raimundo de Monte ArraesBiblioteca Nacional
 

Apesar desse papel relevante desempenhado a nível nacional, com participação notória no centro da vida política do país por aproximadamente 20 anos, nosso personagem parece ter sido em grande medida desconsiderado como uma fonte direta para entender aquele contexto jurídico e político tumultuado dos anos 20/30 e ainda assim ter uma densa e relevante produção bibliográfica, com grande potencial de contribuir para o debate a respeito dos caminhos do pensamento jurídico nacional.

Tratamos aqui de Raimundo de Monte Arraes (1882-1965), jurista nascido no Ceará, com breve passagem no Rio Grande do Sul e moradia definitiva no Rio de Janeiro.

A escassez de pesquisas a respeito de Monte Arraes é refletida na incerteza de muitos de seus dados biográficos, que vão desde dúvidas aparentemente triviais, como a grafia de seu sobrenome Arraes ser com e ou com i, até questões intrigantes, como a incerteza a respeito da data de seu nascimento [3].

Segundo o CPDoc-FGV, Monte Arraes concluiu sua formação jurídica na Faculdade de Direito do Ceará e desde jovem começou a publicar em periódicos de Fortaleza, tais como Unitário, Jornal do Comércio, Diário do Estado e A Razão. Exerceu mandato de deputado estadual no Ceará (1925-1927), bem como o mandato de deputado federal pelo mesmo Estado (1935-1937), presidiu o comitê da Aliança Liberal no Estado do Ceará, bem como exerceu cargo de Secretário de Estado por curtos períodos. Ocupou a cadeira de nº 35 da Academia Cearense de Letras (Patrono: Tomás Pompeu de Sousa Brasil). Nos anos 30, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro e lá viveu até seu falecimento (1965).

O ponto relevante a destacar é a importante contribuição que a leitura e discussão das obras de Monte Arraes pode trazer para o estudo do pensamento jurídico nacional. Considerado por seus pares do Instituto Cultural do Cariri como eminente jornalista, filósofo, publicista e sociólogo, trata-se também de um talentoso jusfilósofo que participou ativamente da defesa doutrinária e legitimação de duas experiências políticas duradouras na História da República no Brasil.

Em 1923, quando se avolumavam as críticas às sucessivas reeleições de Borges de Medeiros, Monte Arraes defendeu sistematicamente os princípios e as ideias centrais do castilhismo. No meio tempo, entre o fim do castilhismo e o advento do Estado Novo, esteve engajado na publicação de seu livro "Do Poder do Estado e dos Órgãos Governativos" (1935) [4], em que o jurista se empenhou em manifestar suas ideias políticas e constitucionais para a Constituinte de 1934. Ou seja, temos em mãos, fontes diretas que retratam e representam o debate jurídico e político que permeou a crise constitucional da Primeira República, exatamente na época em que a sucessão de eventos políticos desencadeou a Revolução de 30 e a implantação do regime varguista.

Acompanhar a evolução do pensamento antiliberal de Monte Arraes, no conjunto de seus escritos e livros publicados, revela uma oportunidade ímpar para perceber a tessitura e a construção sistemática de argumentos políticos e jurídicos voltados à desconstrução da democracia liberal e representativa brasileira e também na defesa de instituições governamentais que, no cotidiano de sua prática jurídica e política, refletiram as metamorfoses do regime político de Getúlio Vargas rumo à consolidação e concentração político-administrativa do poder executivo federal: um Estado forte e autoritário, centralizado e hegemônico, caracterizado por um Executivo Federal hipertrofiado, com ampla intervenção na autonomia das unidades federadas e nas liberdades públicas, e cuja legitimidade pretendia radicar na modernização e racionalização administrativas, na crescente indução e tutela da ordem econômica e do mercado nacionais, e tutela dos direitos dos trabalhadores, olvidando os direitos políticos. Nesse último caso, foi evidente e simbólica a ascensão da carteira de trabalho, em detrimento do título de eleitor.

É válido destacar, nessa ordem de ideias, que Monte Arraes nunca se restringiu a uma argumentação puramente jurídica na construção de suas teses, nas obras em que se comprometeu a defender as experiências do castilhismo e do Estado Novo, ou naqueles escritos em que esteve desvinculado da defesa de qualquer regime político específico.

A construção intelectual do seu pensamento possui muitas semelhanças com a tradição ensaística brasileira, porquanto o autor, de forma pragmática, se vale de diferentes campos do conhecimento para interpretar e reinterpretar os autores aos quais recorreu, elaborar suas ideias e as expor de forma bastante livre, não vinculada a um método ou sistema predeterminado ou específico. O autor perpassa pela filosofia, etnografia, sociologia, naturalismo, política e direito em todas as suas principais obras.

Ao lado de Oliveira Vianna e Francisco Campos, Monte Arraes participará da paulatina construção das bases teóricas do Estado Novo, da consolidação das bases teóricas de um regime político de matizes conservadoras e autoritárias e de um constitucionalismo de iguais diretrizes, ao invés de um Estado liberal de Direito, que se julgou incapaz de resolver as demandas essenciais da sociedade da época.

O momento político e social vigente, portanto, é mais do que propício para o incremento e para a renovação das mais variadas pesquisas sobre a vida e a obra de Raimundo de Monte Arraes, tanto no campo da política, como nos vários domínios da Teoria da Constituição e do Direito Constitucional.

 


[1] Em verdade, a obra de 1925 já havia vindo parcialmente a público na forma de artigos jornalísticos publicados no jornal de Fortaleza Tribuna, e foram reproduzidos pelo periódico castilhista A Federação, durante o ano de 1923. No anúncio que antecedia à reprodução dos artigos do autor, os editores do A Federação, anunciavam o conteúdo como um trunfo, pois se tratava de uma defesa pública do regime castilhista por parte de um erudito cidadão nascido no outro extremo do país. Durante o lançamento do livro, o Autor concedeu entrevista ao periódico carioca O Paiz; ao mesmo tempo, os fartos elogios lançados pelo periódico em 1º. de julho de 1925, demonstram a circulação de suas idéias e dos seus escritos na região central do país, antes mesmo de ter fixado definitivamente sua moradia no Rio de Janeiro.

[2] Além das obras doutrinárias em defesa do regime político inaugurado em 10 de novembro de 1937, Monte Arraes também publicou diversos artigos entre os anos de 1941 e 1944, no periódico Cultura Política, um dos veículos de comunicação do Estado Novo. Ademais, algumas fontes secundárias indicam que o autor foi, inclusive, em algum momento, Chefe de Censura do regime. Cf.: Revista Itaytera, nº 32, 1988, pp. 99-102 e GUIMARÃES, Hugo Victor. Deputados provinciais e estaduais do Ceará. Ed. Jurídica Ltda. Fortaleza. 1952, p.488.

[3] Fontes importantes de consulta apontam datas de nascimento conflitantes. No verbete do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc) dedicado a Monte Arraes, consta que seu nascimento se deu em 3 de julho de 1882, cf. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/raimundo-monte-arrais. Já na edição de nº 32 da Revista Itaytera, veículo de comunicação do Instituto Cultural do Cariri (ICC), do qual Arraes é Patrono da cadeira de nº 18, consta que nosso autor nasceu em 03 de julho de 1888 (cf. Revista Itaytera, nº 32, 1988, pp. 99-102). Se passarmos a considerar buscas avulsas pelo nome de Raimundo de Monte Arraes em navegadores de internet, encontraremos inclusive dias e meses diferentes para seu nascimento.

[4] Apesar de ter sido publicado em 1935, Monte Arraes esclarece no Prefácio que a obra foi concluída em 1933, o que se pode tomar em alguma medida como verdade, pois o texto da obra sempre se refere à Constituinte de 1934 no tempo futuro.

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