Opinião

Transação tributária federal: aguardadas inovações pela Lei 14.375/2022

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22 de junho de 2022, 18h01

A transação tributária, como modalidade de extinção do crédito tributário, consta desde a redação original do Código Tributário Nacional (artigo 156, III). Apesar disso, é possível afirmar que a sua utilização concreta no Brasil largamente se deu de forma extraordinária. Por exemplo, os programas de refinanciamento e parcelamento de dívidas tributárias, contendo a possibilidade de descontos e outas vantagens, podem ser caracterizados como formas tímidas de transação tributária.

Essas instâncias tradicionais, portanto, não faziam jus aos efeitos benéficos que a transação tributária poderia alcançar em nosso país. Subjacente a isso, vigorava uma percepção já superada acerca dos efetivos contornos da indisponibilidade do crédito tributário, calcada na desconfiança mútua entre Fazenda Pública e contribuintes.

Apesar de retrocessos e conflitos, a democracia brasileira amadureceu em muitos aspectos. É inquestionável que, nestas três décadas pós-regime militar, a transparência institucional avançou, bem como avançaram as ferramentas de responsabilização de agentes públicos e privados por vários tipos de mazelas. Neste contexto, a transação tributária teve espaço para concretamente se desenvolver, e o tem feito a passos largos nos últimos anos.

Dentre os recentes avanços, deve-se dar destaque à aguardada ampliação de escopo, em nível federal, para que a transação tributária possa melhor abranger: (i) créditos tributários ainda em discussão administrativa (hoje permitido apenas em alguns casos, como se vê abaixo); e (ii) o aproveitamento de créditos de Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) decorrentes da existência de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa. Essa ampliação é decorrente das recentes alterações promovidas pela Lei nº 14.375, de 21 de junho de 2022.

Para melhor entender essas novidades da Lei nº 14.375/2022, uma contextualização legislativa se faz necessária. A Lei nº 13.988/2020 estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária. Portanto, em nível federal, é esse o diploma que rege a transação em matéria tributária. Sendo assim, é justamente aqui que a Lei nº 14.375/2022 traz inovações.

Dentre as modalidades de transação federal constantes da Lei nº 13.988/2020 (artigo 2º), há dois grupos. O primeiro grupo se refere à proposta individual de transação. Esta pode ser realizada tanto pelo devedor quanto pela autoridade fiscal responsável pelo crédito em questão. O segundo grupo se refere à adesão a programa específico ofertado pela União. Esta modalidade tem escopo significativamente mais amplo, pois, entre outros fatores, alcança certos créditos ainda não inscritos em dívida ativa (inclusive aqueles ainda em contencioso administrativo).

Ambas as modalidades de transação federal têm sido ativamente utilizadas, e este fato merece encômios. Por exemplo, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) atualmente oferta onze diferentes programas de transação por adesão. Em alguns casos, isso é feito em conjunto com a RFB (pré-inscrição em dívida ativa).[1] Ademais, a PGFN desenvolveu ótimas ferramentas on-line para permitir o acesso aos detalhes numéricos dessas transações por adesão,[2] bem como dá plena transparência aos acordos individuais já celebrados.[3]

Por outro lado, a Lei nº 13.988/2020 não expressamente autorizava a proposta individual em relação a créditos em fase de contencioso administrativo fiscal, restringindo essa modalidade a créditos inscritos em dívida ativa. Com a Lei nº 14.375/2022, essa prerrogativa é positivada mediante a inclusão da expressão "ou em contencioso administrativo fiscal" ao final do inciso I do artigo 2º da Lei nº 13.988/2020.

Ademais, em sua redação anterior, as vantagens ofertadas pela Lei nº 13.988/2020 eram apenas descontos de multa, juros e encargos legais (em certos casos), prazos e formas especiais de pagamento, e medidas relativas a garantias e constrições (incisos I, II e III, respectivamente, do art. 11). Porém, com a Lei nº 14.375/2022, também fica positivada a prerrogativa de utilização de créditos de IRPJ e de CSLL decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa, até o limite de 70% do saldo devedor remanescente após eventuais descontos — mediante adição de um inciso IV no art. 11 Lei nº 13.988/2020. Deve-se atentar, porém, que essa prerrogativa é condicionada à concordância da PGFN ou da RFB, conforme o caso, e que, a princípio, isso somente se daria em caráter excepcional (proposto §1º-A ao mencionado artigo 11).

Observe-se que o aproveitamento de prejuízo fiscal para a quitação de créditos tributários conta com precedentes legislativos de peso. Por exemplo, o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) e o Programa de Recuperação Fiscal (Refis) expressamente permitiram o uso dos créditos acumulados de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa para a liquidação de débitos tributários ali contemplados — respectivamente, artigo 2º da Lei nº 13.496/2017 e artigo 2º da Lei nº 9.964/2000. Em adição, há importantes precedentes judiciais que caracterizam o aproveitamento de prejuízo fiscal como um direito dos contribuintes, ainda que temporalmente condicionável — Recurso Extraordinário nº 591.340/SP (2019), Recurso Extraordinário nº 344.994/PR (2009), Recurso Especial nº 1.925.025/SC (2021).

Isoladamente, essas duas novidades já representam ganhos para os contribuintes e para a Fazenda Pública. E se faz questão de, aqui, referir-se às duas partes envolvidas, porque o ambiente da transação é de diálogo e trabalho em conjunto, diferentemente da tradicional cultura contenciosa no Brasil. Assim, a mencionada ampliação de prerrogativas reforçaria o caráter de soma não-zero da transação federal, com múltiplas externalidades positivas também para os brasileiros amplamente considerados.

Ocorre que a Lei nº 14.375/2022 traz ainda mais novidades. Dentre essas, dá-se especial ênfase: (i) autorização expressa para o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros (novo inciso V do artigo 11); (ii) elevação do limite máximo de redução dos créditos de 50% para 65% (inciso II, §2º, do artigo 11); e (iii) aumento do prazo de quitação dos créditos de 84 para, no máximo, 120 meses (inciso III, §2º, do artigo 11).

Neste contexto, deve-se reconhecer que o uso de direitos líquidos e certos, consubstanciados ou não em precatórios, já tem abrigo na Constituição (artigo 100, §11). Ademais, essa prerrogativa tem autoaplicação para a União. De todo modo, norma legal em positiva harmonia com norma constitucional promove segurança jurídica e facilita o exercício de qualquer direito. Logo, também por essa razão a Lei nº 14.375/2022 é credora de admiração apartidária.

Não surpreende, então, o fato de que a comunidade tributária aguardava ansiosamente a Lei nº 14.375/2022 para trazer inovações relevantes para a transação federal no bojo da Lei nº 13.988/2020. No cenário macro, os múltiplos reveses deste final de pandemia (espera-se que, de fato, estejamos no seu término), as novidades mencionadas só têm a facilitar a compensação de dívidas entre as esferas pública e privada. Disso, somente decorrem vantagens para o Brasil, notadamente o aquecimento da economia, com promoção da arrecadação federal e quitação de dívidas privadas, e a ampliação dos canais de diálogo entre contribuintes e Fazenda Pública, com óbvio fortalecimento da nossa democracia.

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