Garantias do Consumo

Demora excessiva em atendimento bancário gera dano moral in re ipsa

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22 de junho de 2022, 8h00

Em 24/5/2022, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, afetou o Recurso Especial (REsp) 1.962.275/GO ao rito dos recursos repetitivos (RR), bem como determinou a suspensão da tramitação dos REsps e AREsps cujos objetos coincidam com o da matéria afetada. A questão jurídica que a Corte vai definir é "se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor".

O REsp em questão, indicado pelo tribunal de origem como representativo da controvérsia, foi interposto pelo Banco do Brasil contra o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 5273333.26.2019.8.09.0000 pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) que, em 12/08/2020 fixou, por unanimidade de votos do Órgão Especial, esta tese: “A demora excessiva na prestação dos serviços bancários presenciais em prazo superior aos definidos em legislação específica gera dano moral passível de reparação; Em casos que tais, o dano moral é presumido (in re ipsa) e, portanto, prescinde de prova de sua ocorrência por parte do consumidor, não obstante, admita a produção de prova em contrário (juris tantum)”.

Tal IRDR fora suscitado em 4/4/2019 pelo desembargador Marcus da Costa Ferreira, nos autos da Apelação Cível 0336291.61.2015.8.09.0134 do TJ-GO, diante da "existência de várias ações ajuizadas versando sobre o mesmo tema, com entendimentos opostos e conflitantes, […] com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica".

A questão jurídica agora submetida à 2ª Seção do STJ permitirá a construção de um precedente qualificado pelo rito dos RR, cujo objetivo, nas palavras do ministro presidente da Comissão Gestora de Precedentes, é "evitar decisões divergentes nas instâncias de origem e o envio desnecessário de [REsps e/ou AREsps] a esta Corte Superior, cumprindo com uma das finalidades dos precedentes qualificados […] que é o de servir como instrumento processual à disposição do [STJ] capaz de pacificar, em âmbito nacional, questões de direito relevantes ou que se repetem em múltiplos processos" [2]. Ou seja, a tese a ser definida nesse RR será aplicada a todos os feitos em tramitação no território nacional com fundamento em idêntica questão de direito.

Com efeito, a controvérsia sobre a reparabilidade do tempo de espera excessivo para atendimento bancário precisa ser dirimida pela Corte Superior, tendo em vista a existência de entendimentos divergentes nas duas turmas especializadas em Direito Privado. Exemplificando, de um lado a 3ª Turma assentou, no REsp 1.737.412/SE relatado pela ministra Nancy Andrighi e julgado em 5/2/2019, que "o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil [3] do consumidor". "Na hipótese concreta, a instituição financeira recorrida optou por não adequar seu serviço aos padrões de qualidade previstos em lei municipal e federal, impondo à sociedade o desperdício de tempo útil [4] e acarretando violação injusta e intolerável ao interesse social de máximo aproveitamento dos recursos produtivos, o que é suficiente para a configuração do dano moral coletivo."

Em 22/2/2022 a 3ª Turma reforçou, no REsp 1.929.288/TO também relatado pela ministra Nancy Andrighi, que "a responsabilização por dano moral coletivo se verifica pelo simples fato da violação, isto é, in re ipsa, não havendo que se falar, portanto, em ausência de prova do dano na hipótese em apreço". "A inadequada prestação de serviços bancários, caracterizada pela reiterada existência de caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, e pelo consequente excesso de espera em filas por tempo superior ao estabelecido em legislação municipal, é apta a caracterizar danos morais coletivos."

De outro lado, a 4ª Turma sustentou, no REsp 1.647.452/RO relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão e julgado em 26/2/2019, que "o direito à reparação de dano moral exsurge de condutas que ofendam direitos da personalidade, bens tutelados que não têm, per se, conteúdo patrimonial, mas extrema relevância conferida pelo ordenamento jurídico. A espera em fila de banco, supermercado, farmácia, e em repartições públicas, dentre outros setores, em regra, é mero desconforto que não tem o condão de afetar direito da personalidade, isto é, interferir intensamente no equilíbrio psicológico do consumidor do serviço (saúde mental)".

Em 24/11/2020, noutra causa em que "a instituição financeira [não se empenhou] em dar ao caso resolução satisfatória, na esfera extrajudicial, obrigando o consumidor a lavrar boletim de ocorrência em repartição policial e em seguida contratar advogado para trazer o caso para ser resolvido pelo Poder Judiciário", a 4ª Turma reiterou, no REsp 1.406.245/SP também relatado pelo ministro Salomão, que "o direito à compensação de dano moral, conforme a expressa disposição do artigo 12 do CC, exsurge de condutas que ofendam direitos da personalidade […], bens tutelados que não têm, per se, conteúdo patrimonial, mas extrema relevância conferida pelo ordenamento jurídico […]. Nessa linha de intelecção, como pondera a abalizada doutrina especializada, mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, […] tais situações não são tão intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo".

Para que se possa solucionar adequadamente tal divergência jurisprudencial, entendo que seja preciso revisitar os institutos do "dano" e do "dano moral", uma vez que eles são abordados pela doutrina brasileira sob diferentes perspectivas e com nomenclaturas variadas, o que não raro gera problemas na sua compreensão e aplicação.

Quanto ao dano, Junqueira de Azevedo, Silvano Flumignan, Caitlin Mulholland, Francisco Amaral e Fernando Noronha convergem no entendimento de que a lesão a um bem jurídico, enquanto objeto de um direito, atingirá interesse alheio, que é pressuposto do direito violado, podendo desse fato resultar um prejuízo. Nesse sentido, a lesão a direito alheio ou a interesse juridicamente tutelado caracteriza o dano-evento, que é um fato antijurídico, enquanto a consequência prejudicial dessa lesão configura o dano-resultado, que é o dano em sentido estrito ou propriamente dito [5]. Logo é possível conceituar dano-evento como a lesão a direito alheio ou a interesse juridicamente tutelado, e dano-resultado como o prejuízo decorrente da lesão a um bem, material ou imaterial, juridicamente tutelado.

No tocante ao dano moral, Noronha alerta que, no Brasil, existe uma "tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais […] presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali" e, em atenção àquela "designação tradicional", o autor sustenta que os danos extrapatrimoniais podem ser chamados de "danos morais em sentido amplo” e que os danos morais anímicos podem ser denominados “danos morais em sentido estrito" [6].

Em face dessa realidade, é possível inferir que o dano extrapatrimonial é o gênero, e que o dano moral anímico é uma espécie dele. Contudo, considerando-se que no Brasil os danos extrapatrimoniais são costumeiramente designados de "danos morais", há a necessidade de se reconhecer a existência — e assim se fazer a distinção — do dano moral lato sensu, como gênero, do dano moral stricto sensu, como espécie dele.

Nesse diapasão, pode-se afirmar que o dano moral lato sensu, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, é o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade, ao passo que o dano moral stricto sensu, enquanto espécie do dano extrapatrimonial (ou moral lato sensu), é o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa — cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento [7].

Ao estudar a problemática na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor [8] — que identificou e valorizou o "tempo do consumidor" como um bem jurídico —, percebi que não se sustentava a compreensão de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado pelo próprio fornecedor, representaria "mero aborrecimento", e não algum dano ressarcível.

O substantivo "aborrecimento" traduz um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo "mero", que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo ("aborrecimento"). Porém, segundo se infere dessa jurisprudência, tal sentimento é trivial ou sem importância ("mero"), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral reparável.

De fato, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a qualquer bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo equívoco é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar — como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar. O terceiro equívoco é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte o lógico é concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu compensável.

Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial pela alteração prejudicial do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor [9].

Ademais, considerando-se que todo dano pressupõe algum prejuízo para o titular do direito violado, o dano extrapatrimonial (ou moral lato sensu) que decorre do desvio produtivo do consumidor é presumido (in re ipsa), porque o prejuízo existencial é deduzido de dois postulados assim enunciados: o tempo é um recurso produtivo limitado, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas; e ninguém pode realizar, ao mesmo tempo, duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes, do que resulta que uma atividade preterida no presente, em regra, só poderá ser realizada no futuro deslocando-se no tempo outra atividade.

Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se ao longo dos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade — como o "tempo" da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa — como o dano temporal, o dano existencial —, bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso [10].

A Teoria do Desvio Produtivo promoveu a ressignificação e a valorização do tempo vital do consumidor — elevando-o à categoria de um bem jurídico —, vem possibilitando a crescente superação da jurisprudência baseada na tese do "mero aborrecimento" — que fora construída sobre bases equivocadas —, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral — apontando esse tempo do consumidor como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado — e ensejou o surgimento de uma nova jurisprudência brasileira — a do "desvio produtivo do consumidor" [11].

Diante desses fundamentos jurídicos, é forçoso concluir que a demora excessiva na prestação de serviços bancários, em tempo superior ao previsto na legislação de regência, gera dano moral lato sensu presumido (in re ipsa) pela lesão ao tempo existencial do consumidor, ensejando sua reparação quer em ação individual quer em tutela coletiva. Por outro prisma, a necessária redução do volume de processos com fundamento no desvio produtivo do consumidor, que sobrecarregam o Poder Judiciário tendo geralmente no polo passivo grandes fornecedores litigantes habituais, deve ser buscada pela concretização das funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil, assim estimulando o desenvolvimento de uma nova cultura empresarial da qualidade de atendimento ao vulnerável. Afinal, o consumidor que é bem atendido não precisa ser defendido.


[2] STJ, REsp 1.962.275/GO, despacho de 20-10-2021, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Disponível em: [www.stj.jus.br]. Acesso em: 16-06-2022.

[3] Sempre registro que, no contexto da teoria pioneira que desenvolvi, é inadequada a utilização da nomenclatura “tempo útil” e “tempo livre”. Denominá-lo “útil” implicaria reconhecer que existe algum tempo “inútil” na vida humana, e chamá-lo de “livre” desconsidera que todo tempo é “ocupado”, do ócio ao negócio. Prefiro designar esse valioso bem jurídico de “tempo vital ou existencial” (DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor… 2. ed. Vitória: Ed. do Autor, 2017. p. 162-164).

[4] Idem.

[5] AZEVEDO, 2004; FLUMIGNAN, 2015; MULHOLLAND, 2009; AMARAL, 2018; NORONHA, 2013.

[6] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[7] AMARAL, 2018; NORONHA, 2013.

[8] DESSAUNE, 2017, passim.

[9] ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial… RT, São Paulo, v. 6, n. 24, out.-dez. 2005. passim.

[10] BARROSO, Lucas A.; DIAS, Eini R. O dano psíquico nas relações civis e de consumo. RDC, São Paulo, v. 94, 2014. p. 93-94.

[11] Disponível em: [www.conjur.com.br/2021-nov-10/garantias-consumo-ampliacao-conceito-dano-moral-superacao-tese-mero-aborrecimento]. Acesso em: 17-06-2022.

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