Análise comparativa do cumprimento de decisões proferidas pelos dispute boards
21 de junho de 2022, 20h22
O Comitê de Prevenção e Solução de Disputas, internacionalmente conhecido como Dispute Board (DB), é um método de resolução de disputas que tem sido amplamente utilizado em grandes projetos de construção para evitar litígios e proporcionar agilidade na resolução de conflitos que possam surgir durante a execução da obra.
Embora os dispute boards tenham se tornado muito populares em projetos de construção e infraestrutura no mundo e inclusive no Brasil, as partes acabam enfrentando algumas dificuldades para executar as decisões, principalmente quando não há uma lei que regule como isso se dará.
Assim, o cumprimento de decisões proferidas por dispute boards é algo que vem sendo discutido ao longo dos últimos anos por alguns estudiosos e também foi objeto de análise de tribunais arbitrais e judiciais.
Common law vs Civil Law
O uso de dispute boards por países que adotam a Common Law é bastante popular e geralmente tem um formato estatutário. O primeiro registro do uso desse mecanismo foi em 1960, em Washington, nos Estados Unidos, em conflitos relacionados com uma barragem de fronteira.
O Reino Unido introduziu em sua Lei de Moradia, Construção e Reforma de 1996 (Housing Grants, Construction and Regeneration Act of 1996) as cláusulas 104 a 108[1], que preveem a obrigatoriedade da resolução de disputas por adjudication (mecanismo similar aos dispute boards). Assim, as disputas entre as partes são submetidas a um julgador neutro e com reputação idônea, cujas decisões têm efeito vinculante sobre as partes e podem ser revistas ou contestadas por processo arbitral ou judicial [2].
Além do Reino Unido, outros países que adotam a Common Law também já preveem em sua legislação o modelo legal de resolução de disputas rápido e vinculante. É o caso, por exemplo, de Singapura [3], Nova Zelândia [4] e Malásia [5].
Por outro lado, nas jurisdições que adotam a Civil Law, as partes sempre podem tentar encontrar uma lacuna para contornar o dispute board ou esquivar-se de cumprir sua decisão, alegando, por exemplo, que a real intenção das partes não era que a decisão do dispute board tivesse efeito vinculante imediato ou que o dispute board não é um requisito obrigatório para a realização da arbitragem.
No Brasil, por exemplo, o uso de dispute boards já está previsto em algumas leis, como é o caso da nova Lei de Licitações (Lei n° 14.133/2021), mas não há regulamentação específica sobre o cumprimento das respectivas decisões.
Assim, ao contrário dos países que adotam a Common Law, a maioria dos países que empregam a Civil Law não possui legislação e/ou regulamentação específica sobre mecanismos de resolução de disputas e/ou sobre os dispute boards.
Por essa razão, os países de Common Law parecem estar mais acostumados ao conceito de dispute board, ao seu efeito vinculante e ao cumprimento de suas decisões já que a maioria deles possui legislação específica e/ou regulamentação sobre o assunto. Como resultado, os tribunais de Common Law têm uma prática mais consolidada quanto ao cumprimento de decisões de dispute boards em comparação com aqueles que adotam Civil Law.
Isso porque, a falta de legislação e/ou regulamentação específica sobre os dispute boards em países de Civil Law causa incertezas sobre como eles serão adotados e/ou como ocorrerá o processo de resolução da disputa e, o mais importante, como os tribunais judiciais e/ou arbitrais irão tratar da questão da exequibilidade das decisões dos dispute boards.
Tipos de dispute boards
Existem duas modalidades de dispute board, o Dispute Review Board (DRB) e o Dispute Adjudication Board (DAB). No caso do DRB, a decisão proferida serve apenas como recomendação, sem vincular as partes, entretanto, se as partes não apresentarem manifestação de discordância em determinado prazo, ficará implícito que as partes concordaram contratualmente com a decisão.
O DAB, por outro lado, emite decisões vinculantes que assim permanecerão a menos que sejam revistas por tribunal arbitral ou judicial após a apresentação de manifestação de discordância por uma ou ambas as partes em prazo determinado em contrato.
Existe, ainda, uma terceira modalidade de dispute board desenvolvida pela Câmara de Comércio Internacional ("CCI") que é Combined Dispute Board ("CDB") em que, via de regra, é apenas proferido recomendações, mas, se uma das partes solicitar e a outra não se opor, é competente para proferir decisões vinculantes.
O cumprimento das decisões proferidas pelo dispute board
De acordo com o modelo contratual Fidic 2017 Silver Book que adota o DAB, se a decisão for proferida pelo DAB e nenhuma das partes apresentar manifestação de discordância no prazo de 28 dias do recebimento da decisão, essa decisão "passará a ser final e vinculante" [1].
De forma análoga, pode-se entender que mesmo se o contrato não seguir o modelo Fidic, mas prever o DAB e a decisão não for contestada no prazo estabelecido no contrato, a decisão passará a ser final e vinculante e deverá ser executada por tribunal arbitral ou judicial, de acordo com o que estiver estabelecido no contrato.
Entretanto, a questão que surge é se o tribunal arbitral ou judicial deve rever o mérito da decisão ou simplesmente proceder com a execução da decisão.
Nesse sentido, o parágrafo 2 da cláusula 21.6 do modelo FIDIC 2017 Silver Book trouxe uma inovação em relação à edição de 1999 para especificar que o tribunal arbitral irá analisar e revisar qualquer decisão do DAB que não seja definitiva e vinculante, que leve ao entendimento que decisões finais e vinculantes não devem ser analisadas e revisadas, conforme abaixo:
"O (s) árbitro (s) terá (ão) total poder para acessar, analisar e revisar qualquer certificado, determinação (que não seja definitiva e vinculante), instrução, parecer ou avaliação do Empregador e/ou do Representante do Empregador, e qualquer decisão do DAB (que não seja definitiva e vinculante) relevante para a Disputa. (…)".
Além disso, no caso Macob Civil Engineering Ltd v. Morrison Construction Ltd [2] os tribunais ingleses confirmaram que a decisão do julgador "deveria ser cumprida de forma sumária, independentemente de qualquer irregularidade processual, erro ou violação de direitos" [3].
A experiência mostra que nos países de Common Law, o conceito de execução direta da decisão final e vinculante do DAB é mais facilmente aplicado já que, em alguns casos a decisão foi imediatamente cumprida. Entretanto, a tendência é que com o passar do tempo, os tribunais terão um maior nível de confiança para a execução imediata dessas decisões.
Os tribunais alemães, por exemplo, já decidiram que os procedimentos sob o modelo de dispute boards são aplicáveis. Assim, como a Alemanha normalmente inspira outros países seguidores da Civil Law, tais como a Turquia, Grécia e Rússia, este é um grande progresso que deve virar tendência nos países que adotam a Civil Law.
Já no Brasil, o Conselho de Justiça Federal (CJF) estabeleceu no seu enunciado 76 que as decisões proferidas por dispute boards quando os contratantes tiverem acordado pela sua adoção obrigatória (que é o caso do DAB, conforme descrito a seguir), vinculam as partes ao seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emitam nova decisão ou a confirmem.
Dessa forma, parece que a regra geral é que as decisões finais e vinculantes do DAB devem ser cumpridas de forma direta pelo tribunal arbitral ou judicial, sem exame do mérito. Entretanto, antes de prontamente cumprir a decisão, o tribunal arbitral e/ou judicial deve considerar todo o contexto da disputa, examinar seu escopo e reconhecer sua própria competência para o caso.
De acordo com o parágrafo 1 da cláusula 21.4.4 do modelo Fidic 2017 Silver Book, se uma das partes não concordar com a decisão do DAB deve apresentar manifestação de discordância à outra parte no prazo de 28 dias do recebimento da decisão.
Assim, se uma das partes apresentar a manifestação de discordância, a decisão continuará com efeito vinculativo sobre as partes, mas não será final já que será submetida à arbitragem. Nesse caso, há uma decisão "não definitiva e não vinculante", portanto, embora a decisão seja vinculante, também é provisória.
A execução de uma decisão não definitiva e não vinculante é algo que tem sido discutido pelos doutrinadores e profissionais do direito, e também foi objeto de exame pelos tribunais arbitrais e judiciais.
Christopher Seppäla [4] defende que todas as decisões proferidas pelo DAB devem ser cumpridas e que a única diferença das decisões não definitivas em relação às decisões finais é que sua exequibilidade — assim como sua natureza vinculante — são temporárias.
No entanto, alguns casos mostram que por vezes o entendimento dos tribunais arbitrais e judiciais não é tão simples. O que se argumenta é que se o tribunal se restringir a executar a decisão não definitiva e não vinculante sem analisar o mérito, ele estará indo contra o que as partes acordaram e a decisão não definitiva passará a ser uma decisão final.
Consequentemente, uma alternativa é cumprir a decisão não definitiva e não vinculante do DAB por meio de liminar antes que o tribunal arbitral examine o mérito da disputa [5].
Isso leva a um caso importante sobre a execução de decisão não definitiva e não vinculante — o Caso ICC nº 10619 — onde o tribunal arbitral emitiu uma sentença estabelecendo que as decisões do Engenheiro poderiam ser cumpridas por decisão parcial ou liminar. A decisão do Caso ICC nº 10619 parece ser a primeira sentença publicada para determinar o cumprimento de uma decisão não definitiva e não vinculante [6].
Outro caso muito relevante sobre o cumprimento de uma decisão não definitiva e não vinculante aconteceu em Singapura, conhecido como "Caso Persero" [7] em que o Tribunal Superior de Singapura entendeu que existe uma obrigação clara das partes de cumprir o disposto no contrato, que estabelece que as partes "devem dar efeito imediato" à decisão do DAB. Por exemplo, se houver uma determinação do DAB para que uma parte pague uma quantia à outra, essa parte deve prontamente proceder com o pagamento mesmo se não concordar com o mérito da decisão.
Esse entendimento do Tribunal Superior de Singapura está alinhado com o princípio que diz "pague agora, conteste depois" (pay now, argue later), que está no cerne das decisões estatutárias, principalmente nos países que adotam a Common Law.
Isso leva à mesma lógica descrita acima sobre o cumprimento de uma decisão final e vinculante, ou seja, se nenhuma das partes apresentar manifestação de discordância, ou apresentar a manifestação, mas não solicitar a revisão do mérito da decisão, fica implícito que as partes concordaram contratualmente com a decisão. Portanto, a decisão deve ser diretamente cumprida pelo tribunal sem revisão do mérito.
Os efeitos desse procedimento diferem nos países de Civil Law e Common Law. Nos países que adotam a Civil Law, isso provavelmente seria visto com um abuso de direitos e, consequentemente, violação da obrigação geral de agir de boa-fé no momento do cumprimento do contrato, o que envolveria uma penalidade insegurança jurídica.
Países que adotam a Common Law, por sua vez, dificilmente aplicariam tal penalidade e muito provavelmente estabeleceriam um prazo para o início do procedimento arbitral ou considerariam a decisão do DAB final e vinculante.
Considerando o acima exposto, o Caso Persero estabeleceu uma regra importante sobre o cumprimento de decisões não definitivas e não vinculantes do DAB, pois concluiu que a decisão do DAB, mesmo não sendo final, pode ser cumprida diretamente, mesmo em uma arbitragem segregada da disputa primária ou por meio de uma liminar.
Conclusão
Diante do exposto, a execução das decisões proferidas pelos dispute boards possui uma abordagem diferente nos países de Civil Law e Common Law.
Nos países de Common Law, o conceito de execução direta da decisão final e vinculante proferida pelo dispute board é mais facilmente aplicado e em alguns casos a decisão foi imediatamente cumprida.
Entretanto, a tendência é que se desenvolva uma abordagem mais consistente e que os tribunais arbitrais e judiciais aumentem sua confiança no cumprimento imediato de tais decisões. Por exemplo, alguns países de Civil Law, como a Alemanha e Brasil, já determinaram que os procedimentos sob o modelo de dispute board são aplicáveis.
[1] Parágrafo 3 da cláusula 21.4.4 do Modelo Contratual Fidic 2017 Silver Book.
[2] Macob Civil Engineering Ltd v. Morrison Construction Ltd, [1999] BLR 93.
[3] Gould, Nicholas. Enforcing a Dispute Board’s decision: issues and considerations. The International Construction Law Review, 21 September 2012 [2012] ICLR 442, p. 471.
[4] Seppäla, Christopher R. The Arbitration Clause in FIDIC Contracts for Major Works. The International Construction Law Review, 1 January 2005 [2005] ICLR 4, p. 188.
[5] Vide Caso ICC nº 10619 e Caso ICC nº 18320.
[6] Seppäla (n 23) 414 e 425.
[7] PT Perusahaan Gas Negara (Persero) TBK v CRW Joint Operation — [2010] SGHC 202; [2011] SGCA 33; [2014] SGHC 146 and [2015] SGCA 30. PT Perusahaan Gas Negara (Persero) TBK v CRW Joint Operation [2014] SGHC 146. PT Perusahaan Gas Negara (Persero) TBK v CRW Joint Operation [2015] SGCA 30.
[2] Dorgan, Carroll S. The ICC'S New Dispute Board Rules. The International Construction Law Review, 1 April 2005 [2005] ICLR 142, p. 143.
[3] Capítulo 30B da Building and Construction Industry Security of Payment Act.
[4] New Zealand Construction Contracts Bill.
[5] Construction Industry Payment and Adjudication Act 2012.
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