Opinião

Direito a ambiente de trabalho seguro e saudável na declaração de princípios da OIT

Autores

  • Ana Virginia Moreira Gomes

    é professora do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito Constitucional e do curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor).

  • André Luiz Sienkievicz Machado

    é especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pelo Centro Universitário Christus mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor) membro do Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de Fortaleza (Unifor) e procurador do Estado na Procuradoria-Geral do Estado do Ceará.

21 de junho de 2022, 17h02

No último dia 10 de junho, a Conferência Internacional do Trabalho aprovou a inclusão do direito a um meio ambiente de trabalho seguro e saudável na Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O reconhecimento desse direito como fundamental no âmbito do sistema normativo da OIT finda uma discussão que se iniciou antes mesmo da aprovação da Declaração de 1998.

A crítica à época era a de que a Declaração havia assegurado um "pequeno grupo de quatro normas fundamentais do trabalho identificadas na Declaração, em detrimento de um corpo muito mais amplo de normas trabalhistas refletidas no Código Internacional do Trabalho" [1]. O argumento exposto por Maupain em resposta a essa crítica foi de que os direitos na Declaração de 1998 foram escolhidos a fim de capacitar os trabalhadores a alcançarem as condições garantidas pelos demais direitos trabalhistas [2]. Essa resposta, todavia, não justificaria a exclusão dos direitos de saúde e segurança.

O tempo mostrou que a lista restrita de direitos resultou do consenso possível a ser alcançado entre os Estados membros da OIT naquele momento  final da década de 1990  marcado por pressões políticas e econômicas questionadoras da própria ideia de proteção ao trabalho. O tempo também mostrou que a lista era de fato incompleta, pois a racionalidade da Declaração de 1998 mostrada por Maupain acerca dos direitos fundamentais habilitarem ou capacitarem os trabalhadores a alcançarem outros direitos expunha de forma clara a lacuna acerca dos direitos de saúde e segurança.

Fortalecendo o argumento acerca da sua fundamentalidade, os direitos de saúde e segurança tem uma origem constitucional no sistema da OIT. A Constituição da OIT dispõe que os trabalhadores devem ser protegidos de "doenças e lesões decorrentes de [seu] emprego" (Preâmbulo, parágrafo 2). A Declaração da Filadélfia, de 1944, que integra, como anexo, a Constituição da OIT, inclui a obrigação da OIT de prestar auxílio às "[…] Nações do Mundo na execução de programas que visem: […]; g) assegurar uma proteção adequada da vida e da saúde dos trabalhadores em todas as ocupações; […]" e de colaborar com entidades de natureza congênere "na melhoria da saúde, no aperfeiçoamento da educação e do bem-estar de todos os povos". Em 2008, reconheceu-se, na Declaração da OIT sobre a Justiça social para uma Globalização Equitativa, a integração da saúde do trabalhador na agenda do trabalho decente, vinculando àquele conjunto básico de quatro princípios:

"[…]. Num contexto marcado por mudanças aceleradas, os compromissos e esforços dos Membros e da Organização visando a colocar em prática o mandato constitucional da OIT, particularmente pelas normas internacionais do trabalho, para situar o pleno emprego produtivo e o trabalho decente como elemento central das políticas econômicas e sociais, deveriam basear-se nos quatro igualmente importantes objetivos estratégicos da OIT, sobre os quais se articula a Agenda do Trabalho Decente e que podem resumir-se da seguinte forma: […]; 2) adotar e ampliar medidas de proteção social  seguridade social e proteção dos trabalhadores  que sejam sustentáveis e estejam adaptadas às circunstâncias nacionais, e particularmente, […].  condições de trabalho que preservem a saúde e segurança dos trabalhadores, […]".

O direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável é reconhecido como um direito humano também fora da OIT. O direito a "condições de trabalho seguras e saudáveis" é parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Conforme a meta 8.8, constitui um dos objetivos "Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários".

Em 2019, na Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho, reforça-se essa vinculação, enunciando-se, assertivamente, o seguinte: "[c]ondições de trabalho seguras e saudáveis são fundamentais para o trabalho digno".

No sistema da OIT, as declarações encontram espaço jurídico diferenciado, não contando com valência normativa em sentido forte. Não há, todavia, como deixar de reconhecer a centralidade que elas nele desempenham, ainda que com a qualidade de soft law. Nesse sistema, as declarações operam como atos de elevada carga simbólica e colocam-se como instrumentos de mediação dialética de ações estratégicas prioritárias. De acordo com a própria OIT, as declarações:

"[…] são resoluções da Conferência Internacional do Trabalho usadas para fazer uma declaração formal e oficial e reafirmar a importância que os constituintes atribuem a certos princípios e valores. Embora as declarações não estejam sujeitas a ratificação e não sejam vinculativas, elas pretendem ter uma ampla aplicação e conter compromissos simbólicos e políticos dos Estados membros. […]" [3].

O consenso alcançado na Declaração do Centenário lançou as bases para a atuação do Conselho de Administração e da Conferência da OIT no sentido de concretizar a inclusão desses direitos na Declaração. A Conferência Internacional do Trabalho em 2019 urge que a OIT passe a atuar no sentido de incluir os direitos de saúde e segurança dentre os direitos fundamentais da Declaração de 1998. Finalmente, em 10 de junho de 2022, o plenário da Conferência aprovou uma resolução alterando a Declaração de 1998 em seu parágrafo 2 "para incluir, após as palavras 'eliminação da discriminação em relação ao emprego e ocupação', as palavras 'e (e) um ambiente de trabalho seguro e saudável'" [4].

A escolha do termo "ambiente de trabalho seguro e saudável" foi um dos pontos essenciais nesse processo. A orientação nessa discussão deveria seguir o proposto durante a preparação da Declaração de 1998, conforme o qual "um princípio e direito fundamental adicional poderiam ser redigidos da mesma maneira que aparecem na Constituição ou na Declaração de Filadélfia. … Alternativamente, a redação pode se basear ou ser inspirada na terminologia usada em padrões relevantes ou no uso contemporâneo predominante" [5].

O direito dos trabalhadores a um meio ambiente de trabalho seguro e saudável. é assegurado nos artigos 1º e 3º, nº 2, da Convenção nº 187 [6]. No que concerne a esse termo, a OIT esclarece:

"'Como um conceito descritivo e aberto que não tem origem legal, o termo “ambiente de trabalho seguro e saudável'. pode se adaptar às mudanças de foco da organização do local de trabalho. Assim, atualmente foi adotado por políticas regulatórias, sem exigir uma lista de todos os aspectos das operações do local de trabalho que seriam protegidos. Pode, assim, corresponder a questões relativas à saúde psicossocial, diversidade e violência e assédio no local de trabalho, e pode incluir todas as instâncias de segurança e saúde ocupacional. Como tal, o direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável proporcionaria proteção adequada à vida e à saúde dos trabalhadores em todas as ocupações" [7].

A Conferência também decidiu que as Convenções nº 155, de 1981, sobre sistema de saúde e segurança no trabalho [8], e a Convenção nº 187, de 2006, que estabelece um marco promocional em matéria de saúde e segurança no trabalho [9], são as convenções fundamentais que expressam o direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável. O Brasil ratificou a Convenção 155 em 1994, mas ainda não ratificou a Convenção 187.

A Convenção nº 155 traz os elementos-chave para a formulação de uma política nacional de saúde e segurança no trabalho, incluindo as funções e responsabilidades de governos, empregadores e trabalhadores e estabelecendo princípios fundamentais relacionados a políticas sobre a matéria. A norma se fundamenta na proteção à saúde e segurança garantida na Constituição da OIT e foca no princípio da prevenção de acidentes de trabalho, doenças e mortes [10].

A Convenção Nº 187 promove de forma complementar os princípios da Convenção nº 155, indo além da formulação de uma política nacional para também delinear o desenvolvimento e manutenção de um sistema nacional de saúde e segurança no trabalho, trazendo orientações para os elementos de tal sistema. A Convenção nº 187 também delineia a formulação de um programa nacional de saúde e segurança no trabalho que promova o desenvolvimento de uma cultura preventiva nacional de segurança e saúde [11].

Quais os potenciais efeitos da inclusão do direito a um meio ambiente seguro e saudável na Declaração de 1998? No âmbito internacional, será interessante observar se o reconhecimento desse direito como fundamental irá gerar um efeito cascata no sistema jurídico internacional. No sistema da OIT, esse efeito já se verifica. Não somente a Declaração de 1998 foi alterada; também a Declaração da OIT sobre a Justiça social para uma Globalização Equitativa e o Pacto Global para o Emprego sofreram uma emenda para a inclusão do direito ao ambiente saudável e seguro. Ademais, todas as normas internacionais do trabalho  convenções, recomendações, protocolos  da OIT e a Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social serão emendadas para constar essa inclusão.

Fora do sistema da OIT, a Declaração de 1998 tem sido usada como paradigma e referência, inclusive por tratados não trabalhistas, como é o caso de tratados bilaterais de livre comércio. Por exemplo, o modelo norte-americano de tratados bilaterais de comércio reconhece como direitos trabalhistas fundamentais condições de trabalho aceitáveis com respeito ao salário-mínimo, jornada de trabalho e já incluía a segurança e saúde ocupacional, além dos direitos garantidos pela Declaração de 1998. A Resolução adotada pela Conferência dispõe sobre o tema que "nada nesta resolução deve ser interpretado como afetando de forma não intencional os direitos e obrigações de um Membro decorrentes de acordos comerciais e de investimento existentes entre os Estados" [12]. Portanto, será necessária uma alteração formal desses tratados para a inclusão ou substituição do termo segurança e saúde ocupacional pelo direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável.

Espera-se que no âmbito doméstico, o reconhecimento desse direito como fundamental no sistema da OIT leve à discussão sobre a ratificação da Convenção 187 pelo Brasil e redimensione a forma como os tribunais lidam com a juridicidade de ambas as convenções.

Referências Bibliográficas
Alston, Philip; Heenan, James, "Shrinking the International Labor Code: An Unintended Consequence of the 1998 ILO Declaration on Fundamental Principles and Rights at Work?". Winter / Spring, 2004, 36 N.Y.U. J. Int’l L. & Pol. 221.
Maupain, Francis, "Revitalisation Not Retreat: The Real Potential of the 1998 ILO Declaration for the Universal Protection of Workers' Rights". 2005,16 nº 3 EJIL 439.
ILO (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION). Monitoring compliance with international labour standards: the key role of the ILO Committee of Experts on the Application of Conventions and Recommendations. Genebra: International Labour Office, 2019. Disponível em https://is.gd/EaynAh. Acesso em: 26 maio 2022.
ILOa. Normlex. Disponível em:
https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:1:0::NO:::. Acesso em: 26 maio 2022.
OIT BRASÍLIA (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO: ESCRITÓRIO NO BRASIL). Constituição OIT e Declaração de Filadélfia. Disponível em https://is.gd/uZp1vc. Acesso em: 26 maio 2022.
ILOb. Governing Body. Issues relating to the inclusion of safe and healthy working conditions in the ILO’s framework of fundamental principles and rights at work. GB.344/INS/6(Add.1). 344th Session, Geneva, March 2022. 
ILOc. Resolution on the inclusion of a safe and healthy working environment in the ILO's framework of fundamental principles and rights at work. ILC.110/Record No.1C International Labour Conference  110th Session, 2022.
OIT BRASÍLIA (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO: ESCRITÓRIO NO BRASIL). Declaração da OIT sobre a Justiça social para uma Globalização Eqüitativa, 2008. Disponível em https://is.gd/9Ngbz2. Acesso em: 28
maio 2022.
OIT LISBOA (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO: ESCRITÓRIO EM LISBOA). Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho. Disponível em https://is.gd/O7L4by. Acesso em: 29 maio 2022.


[1] Alston, Philip; Heenan, James, 2004, p. 231.

[2] Maupain, Francis, 2005, p.448.

[3] Em livre tradução a partir do original em língua inglesa, as declarações "[…] are resolutions of the International Labour Conference used to make a formal and authoritative statement and reaffirm the importance that the constituents attach to certain principles and values. Although declarations are not subject to ratification and are not binding, they are intended to have a wide application and contain symbolic and political undertakings by the member States. […]". ILO 2019.

[4] Em livre tradução a partir do original em língua inglesa, "to include, after the words 'the elimination of discrimination in respect of employment and occupation', the words 'and (e) a safe and healthy working environment'". ILOc. 2022.

[5] ILOb, 2022, p.5.

[6] ILOb, 2022.

[7] Em livre tradução a partir do original em língua inglesa, "As a descriptive and open-ended concept that does not have a legal origin, the term 'safe and healthy working environment' can adapt to the changing focus of workplace organization. Accordingly, it has currently been adopted into legal policy, without necessitating a list of all aspects of workplace operations that would be protected. It can thus correspond to issues concerning psychosocial health, diversity and workplace violence and harassment, and can include all instances of occupational safety and health. As such, the right to a safe and healthy working environment would provide adequate protection for the life and health of workers in all occupations". ILOb, 2022, p. 8

[8] Incorporada à ordem jurídica brasileira pela Decreto nº 1.254, de 1994 (BRASIL, 2021x). Outros 70 Estados-membros da OIT já a ratificaram, sem nenhuma denúncia. As mais recentes ratificações são de Senegal e Somália, em março de 2021 (ILOa, 2022). A Convenção 155 é complementada pelo Protocolo nº 155, de 2002 (ILOa, 2022).

[9] Embora relativamente recente, ela já reúne 52 ratificações. Nela, a propósito, considera-se "[…] a promoção da segurança e saúde no trabalho como parte da agenda de trabalho decente da Organização Internacional do Trabalho para todos […]" (em livre tradução a partir da versão em língua inglesa). Consta da versão original: "[…] the promotion of occupational safety and health is part of the International Labour Organization's agenda of decent work for all […]" (ILOa, 2022).

[10] ILOb, 2022

[11] ILOb, 2022.

[12] Em livre tradução a partir do original em língua inglesa, "nothing in this resolution shall be construed as affecting in any unintended manner the rights and obligations of a Member arising from existing trade and investment agreements between States". ILO. 2022.

Autores

  • Brave

    é professora do programa de pós-graduação em Direito Constitucional e do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), LL.M na Faculdade de Direito da University of Toronto, doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), estágio pós-doutoral na School of Industrial and Labor Relations da Cornell University e coordenadora do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de Fortaleza.

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    é especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pelo Centro Universitário Christus, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), membro do Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de Fortaleza (Unifor) e procurador do Estado na Procuradoria-Geral do Estado do Ceará.

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