Direito Civil Atual

Papel do Direito Civil no desenvolvimento do enforcement privado (Parte 1)

Autor

  • João Pedro Natividade

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e mestre em Direito das Relações Sociais pela Faculdade de Direito da UFPR.

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13 de junho de 2022, 15h08

A atual Lei de Defesa da Concorrência LDC (Lei 12.529/2011) entrou em vigor no dia 29 de maio de 2012. Alcançou, assim, dez anos de vigência no mês passado. Em celebração desse marco, esta série de duas colunas tem por finalidade indagar o papel do Direito Civil na evolução do enforcement privado da legislação antitruste.

ConJur
O objetivo deste primeiro texto é conjecturar possíveis causas para a incipiência desse desenvolvimento no Brasil, nada obstante a previsão constante no artigo 47 da Lei 12.529/2011, já presente no artigo 29 da revogada Lei 8.884/1994, enunciando a possibilidade de os prejudicados invocarem a LDC em lides privadas.

Esse cenário, antes de constituir mera preocupação teórica, gera efeitos práticos: diante de incertezas na aplicação privada da lei concorrencial, poucas são as ARDCs (ações de reparação de danos concorrenciais) ajuizadas pelos prejudicados por infrações à ordem econômica. Há, conforme assinalam Eduardo Frade e Frederico Bastos Pinheiro Martins, um tesouro perdido, quantificado pelas indenizações que deixam de ser pleiteadas face às empresas condenadas, em particular pela conduta de cartel [1].

Feita essa breve digressão, retome-se o fio. No longínquo ano de 1938, o Decreto-Lei 869 estabeleceu, pela primeira vez no sistema jurídico brasileiro, regras com nítido caráter antitruste, tipificando criminalmente práticas que violassem a economia popular, tais como o açambarcamento de mercadorias (artigo 2º, inciso IV), a manipulação da oferta e da procura (artigo 2º, inciso I e II) e a fixação de preços mediante acordo entre empresas (artigo 3º, inciso I).[2]

Depois disso, o Decreto-Lei 7.666/1945, gestado por Agamenon Magalhães, sistematizou, em um diploma de caráter administrativo, a repressão ao abuso de poder econômico. Mas a norma teve vida curta em razão da queda do governo getulista em outubro de 1945, e não chegou a ser implementada [3].

Houve então um hiato que perdurou até setembro de 1962, quando o Congresso aprovou a Lei 4.137, norma que estruturou a defesa concorrencial no âmbito administrativo e criou o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão de Estado vinculado à presidência do Conselho de Ministros [4].

Já na década de 90, em um contexto de abertura do mercado brasileiro e de liberalização da economia, a Lei 8.137/1990 (ainda vigente) tipificou os crimes contra a ordem econômica [5].

Depois dela, em 1991, a Lei 8.158 veio para reestruturar o microssistema de defesa da concorrência na seara administrativa. Mas foi logo sucedida pela Lei 8.884/1994, que não fugiu à regra. Seu foco tal como os diplomas anteriores foi o âmbito administrativo, com destaque para a transformação do Cade em autarquia [6].

Como diferencial, a Lei 8.884 construiu uma ponte entre o Direito Concorrencial e o exercício de pretensões privadas, enunciando a possibilidade não que isto fosse vedado de "os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, …[ingressarem] em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação. (art. 29)".

Posteriormente, a atual Lei 12.529/2011 novamente reestruturou sob o aspecto administrativo o sistema brasileiro de defesa da concorrência. No que concerne ao exercício de pretensões privadas, ela replicou, literalmente, o teor do artigo 29 da revogada Lei 8.884 em seu artigo 47, mas não avançou na regulação da matéria.

Esse inventário chama a atenção para o fato de que as normas de Direito Concorrencial no Brasil possuem, em sua vasta maioria, feição estritamente administrativa ou criminal. Elas enfocam a tipificação das condutas que constituem ilícito administrativo ou penal, a estruturação ou reestruturação do aparato administrativo de defesa da concorrência (enforcement público) e a definição dos procedimentos a serem adotados pelos agentes econômicos perante o Cade (ex.: notificação obrigatória de determinadas operações em certas circunstâncias).

Mas pouca atenção, sob o prisma legislativo, foi dispensada ao exercício de pretensões privadas amparadas no Direito Antitruste, o que acaba causando dúvidas e incertezas sobre questões-chave, como termo inicial da prescrição (ex. seria a decisão do Cade o marco da contagem nos casos de cartel?); acesso a documentos de prova nos processos sancionadores; e tutela diferenciada dos signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação de condutas (afinal, o enforcement privado não pode desestimular as ferramentas de persecução pública) [7].

A título comparativo, percebendo a incipiência do private enforcement na União Europeia, a Comissão Europeia advogou discussões sobre o tema, publicando, em dezembro de 2005, o Livro Verde, contendo diagnóstico dos problemas a serem enfrentados para estimulá-lo, e, em abril de 2008, o Livro Branco, endereçando as soluções propostas [8].

Num segundo momento, a Comissão elaborou uma proposta normativa, que resultou na Diretiva sobre Ações de Reparação Antitruste 2014/104/EU, aprovada pelo Parlamento Europeu, obrigando os Estados-Membros a adequarem suas legislações internas para estimular as ARDCs à luz do Direito Comunitário [9].Conforme demonstra o exemplo europeu, o desenvolvimento de políticas regulatórias é um dos principais meios de incentivo às ARDCs e ao exercício de pretensões privadas fundadas na LDC.

No Brasil, o design legislativo ainda faz com que a defesa da concorrência seja muito dependente do Cade, representativo do enforcement público, o que relega a aplicação privada da lei concorrencial a um segundo plano [10].

Veja-se que essa dependência é prejudicial, pois não se pode pretender que, num país de dimensões continentais, como o Brasil, o Cade, "(…) a partir de seus gabinetes de Brasília, tenha condições de, sozinho, coibir o abuso de posições dominantes e de práticas anticompetitivas em todo o território nacional" [11]. Depender apenas do Conselho faz com que gama de condutas possivelmente ilícitas sob o referencial antitruste fiquem à míngua de tutela.

Por último, há ainda uma questão de compatibilidade entre os institutos de Direito Civil, especialmente a regras e princípios da responsabilidade civil, e o Direito Concorrencial [12]. Cada ramo teria sua própria sua racionalidade, sua frequência peculiar, o que poderia atrapalhar o exercício de pretensões privadas fundadas na LDC.

Como exemplo, pode-se aludir à dificuldade de comprovar e quantificar o dano concorrencial. De regra, o dano patrimonial precisa ser comprovado pela parte que o alega, e a medida da indenização deve corresponder à extensão do dano, nos termos do artigo 944, do Código Civil. Tomando como referência a prática de cartel, os prejuízos são normalmente calculados com base em fórmulas matemáticas para estimar o sobrepreço. Ora, nisso há uma dificuldade de comprovação, pois esse cálculo é complexo, dependente de perícia fora a questão, muito discutida, do repasse do sobrepreço (passing-on defense) , e há também um problema de quantificação, pois o dano deve ser certo, e não hipotético [13]. Daí a necessidade de a doutrina refletir os institutos de Direito Civil em vista das particularidades do ilícito concorrencial [14].

Elencadas essas possíveis explicações para o incipiente desenvolvimento do enforcement privado da Lei Concorrencial no Brasil, notadamente das ARDCs, o próximo texto se debruçará sobre a pergunta que dá título à coluna: qual é o papel do Direito Civil diante dessa conjuntura?

Continua parte 2.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] FRADE, Eduardo; MARTINS, Frederico Bastos Pinheiro. Reparação de danos concorrenciais e o tesouro perdido. ConJur, São Paulo, 31 jan. 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-31/defesa-concorrencia-reparacao-danos-concorrenciais-tesouro-perdido#_edn6. Acesso em 12 jun. 2022.

[2] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[3] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste… cit.

[4] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste… cit.

[5] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste… cit.

[6] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste… cit.

[7] RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Responsabilidade civil concorrencial: desenvolvimento de uma agenda de fomento à reparação cível de infrações à ordem econômica. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 28, p. 145-166, jul./set. 2021. Convém assinalar que o Cade editou a Resolução 21/2018, buscando avançar, a partir da autarquia, a articulação entre persecução pública e privada às infrações contra a ordem econômica no Brasil, por meio da criação de mecanismo de acesso aos documentos extraídos dos processos sancionadores, e que há na Câmara dos Deputados Projeto de Lei endereçando o tema.

[8] RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Responsabilidade civil concorrencial… cit.

[9] RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Responsabilidade civil concorrencial… cit.

[10] GOMES, Adriano Camargo. Técnicas processuais adequadas à tutela reparatória dos danos a direitos individuais decorrentes de infrações à ordem econômica. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.

[11] FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste… cit., p. 129.

[12] FRISON-ROCHE, Marie-Anne. Contrat, concurrence, régulation. In: RTDCiv. julliet/septembre, 2004; BELLANTUONO, Giuseppe. Contract law and regulation. In: MONATERI, P. Handbook of Comparative Contract Law. [s.l.]: Elgar Pub., 2015; CSERES, K. Competition and contract law. HARTKKAMP, M. W. et al. Towards a European Civil Code. 4ª ed. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2011. p. 205-237.

[13] CARVALHO, Henrique Araújo. Quantificação do dano em ações reparatórias individuais por danos decorrentes da prática de cartel no Brasil: indo além do an debeatur. Revista de Defesa da Concorrência, v. 7, nº 1, p. 108-130, 2019.

[14] Essa necessidade é bem demonstrada em: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito da concorrência e enforcement privado na legislação brasileira. Revista de Direito da Concorrência, v. 1, nº 2, p 11-31, 2013.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e mestre em Direito das Relações Sociais pela Faculdade de Direito da UFPR.

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