Defesa da Concorrência

Defesa da concorrência no Brasil e políticas ESG: entre incerteza e esperança

Autores

  • Mauricio Oscar Bandeira Maia

    é advogado parecerista na área de Direito Concorrencial e auditor do Tribunal de Contas da União. Foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica entre 2017 e 2021. É Mestre em Direito pelo Instituto de Direito Público (IDP).

  • Edson J. Dias de Sousa

    é advogado no escritório Figueiredo e Velloso Advogados Associados ex-assessor do Cade e mestre em Direito Constitucional pela UnB.

20 de junho de 2022, 8h05

Ainda que não seja novidade, ao menos desde meados da década de 1980, com o surgimento e disseminação do conceito de sustentabilidade [1], a preocupação com temas relacionados aos aspectos ambientais, sociais e de governança (ASG, em português, ou Environmental, Social and Governance, ESG [2], em inglês) tem sido crescente nas últimas décadas e anos em todo o mundo, intensificando-se sobretudo após a pandemia de Covid-19.

ConJur
De acordo com o Relatório Gerenciamento de Riscos Globais (Gris) de 2020 [3], houve um expressivo crescimento no volume financeiro dos investimentos sustentáveis globais, atingindo US$ 35,3 trilhões nos cinco principais mercados cobertos pelo relatório (Austrália, Canadá, Europa, Estados Unidos e Japão), o que representa aproximadamente 36% dos ativos financeiros sob gestão no mundo [4].

A relevância atual do tema decorre, nos mais diversos níveis, propostas e conformações, da urgência e da amplitude dos riscos ESG aos quais mercados, países e populações inteiras vêm sendo expostos. Nesse sentido, sob a ótica empresarial e sem a pretensão de esgotar o assunto, há inúmeros impactos possíveis a serem examinados.

Em relação ao aspecto ambiental, por exemplo, a sustentabilidade de longo prazo da empresa será inevitavelmente abalada se o meio-ambiente mudar significativamente, afetando a oferta de matérias-primas e insumos essenciais. A gestão das mudanças climáticas, o acesso à água e ao saneamento básico, bem como a emissão de poluentes, têm impactos estratégicos diferentes para cada negócio.

No que diz respeito aos aspectos sociais, ao se assumir uma posição de relevância no mercado, é possível se criar um impacto positivo sobre as regiões onde se atua (gerando melhores empregos e desenvolvendo empatia com as causas importantes para os consumidores), bem como se oportunizar diversidade e inclusão de grupos minoritários.

Por conseguinte, em países em desenvolvimento, como o Brasil, preocupações com temas ESG são ainda mais fundamentais na atração de recursos, mas, em especial, no modo como ditas questões podem remodelar e melhorar instituições e políticas públicas nesses países.

Assim sendo, a necessidade de mudanças imediatas nos atuais padrões de produção, distribuição e consumo, desafios aos quais o mundo corporativo vem buscando soluções e alternativas inovadoras globalmente, agora também impõe obstáculos, cada qual com suas idiossincrasias, aos mais diversos ramos do direito. E o direito da concorrência não é exceção. É cada vez mais evidente, para os fins deste texto, possíveis diálogos e limites.

Embora o debate sobre eventuais intersecções entre políticas ESG e a defesa da concorrência ainda seja incipiente no Brasil, no âmbito internacional já se avançou bastante [5]. Destaca-se, sobretudo, o empenho de autoridades da concorrência de países europeus e da própria Comissão Europeia (CE), as quais têm se debruçado sobre como fatores relacionados à sustentabilidade devem ser considerados e/ou integrados à análise concorrencial em atos de concentração e/ou na apuração de possíveis condutas anticompetitivas. De igual modo, referidas autoridades têm examinado possíveis impactos concorrenciais de iniciativas de ESG.

Posto isso, as autoridades da concorrência europeias atuam e devem atuar de modo pendular. De um lado, em documentos diversos a respeito [6], vocalizam preocupações e entendimentos de modo que normas de defesa da concorrências não se constituam empecilhos à adoção de práticas empresariais sustentáveis relevantes, inclusive realçando a necessidade de viabilizá-las mediante parcerias estratégicas; por outro, sinalizam a importância da estruturação de mecanismos capazes de evitar que determinadas iniciativas, positivas do ponto de vista socioambiental, se configurem danosas sob a ótica da concorrência.

Nesse sentido, referido pêndulo de Newton deve, para seu adequado funcionamento, sopesar e equacionar muitos pesos, forças e princípios.

Isso porque, embora a cooperação/colaboração entre players privados possa favorecer a implementação de iniciativas essenciais ao mundo contemporâneo — por exemplo, investimentos conjuntos no desenvolvimento de tecnologias menos agressivas ao meio-ambiente ou à estrutura social de determinada região do globo —, deve existir um receio válido de que tais interações possam dar azo a infrações à legislação concorrencial aplicável.

Desse modo, ao oportunizar canais para trocas de informações concorrencialmente sensíveis e/ou a adoção de padrões produtivos comuns entre concorrentes, é possível que comportamentos meritórios como políticas ESG eventualmente favoreçam condutas colusivas entre os agentes ou, de algum modo, que possam arrefecer a disputa no setor.

Portanto, em que pese o crescente apoio a iniciativas de possível flexibilização do direito da concorrência para acomodar políticas ESG, é também notória a crescente preocupação quanto aos possíveis efeitos negativos delas decorrentes — sendo o mais emblemático deles, a possibilidade de greenwashing [7].

Ainda, outra importante matéria a ser assinalada consiste na indispensabilidade de, quando de sua adoção, se criar parâmetros os mais objetivos possíveis que auxiliem na avaliação de, em qual medida, impactos socioambientais positivos resultantes de atos de concentração devam ser levados em consideração na análise, por exemplo, de eficiências.

No Brasil, contudo, por ora não há material específico publicado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), tampouco massa crítica de posicionamentos em casos concretos que possam orientar a compreensão acerca da relação entre políticas ESG e a defesa da concorrência em território nacional. Com efeito, ressalta-se que dito tema foi trazido à tona em poucas ocasiões, no âmbito de atos de concentração envolvendo iniciativas sustentáveis; entretanto, tais casos foram examinados pelo Cade exclusivamente com base em aspectos concorrenciais, e eventual menção à sustentabilidade normalmente se deu somente sob o viés econômico da metodologia tradicional de análise concorrencial.

Três exemplos paradigmáticos [8] dessa abordagem incluem, inicialmente, a análise 1) da aquisição, pela Cargill Agrícola S.A., de participação na Zero North A/S, com o subsequente fornecimento de um software ecologicamente correto pela Zero North à Cargill (Ato de Concentração nº 08700.009764/2015-70) e 2) a aquisição, pela ISP Marl Holdings, do negócio de cuidados pessoais da Schulke & Mayr GmbH (Ato de Concentração nº 08700.012602/2015-19). Apesar de ambas as operações resultarem na implementação de práticas mais sustentáveis, esse aspecto não teve qualquer peso na análise empreendida pela Superintendência-Geral (SG) do Cade, cujas decisões de aprovação se pautaram exclusivamente na ausência de efeitos deletérios à concorrência decorrentes dos atos de concentração em comento. Outrossim, merece destaque o posicionamento expresso no contexto 3) da aquisição da Ferrous Resources Limited pela Vale S.A. (Ato de Concentração nº 08700.007101/2018-63). Naquela ocasião, o Cade deixou expresso que sua atuação se circunscreveria a questões de ordem concorrencial, ficando afastadas considerações regulatórias, sociais, ambientais e afins.

Nessa esteira, verifica-se que, por ora, não há orientações específicas do Cade sobre quais cuidados devem ser tomados pelas empresas ao implementar determinadas iniciativas socioambientais (para além de orientações gerais de praxe), assim como não há indicativo de que haverá a integração de políticas ESG à análise de atos de concentração ou de infrações anticompetitivas. No entanto, tendo em vista a importância e a relevância atribuída ao tema por autoridades concorrenciais estrangeiras, assim como por outros agentes públicos e privados, é possível que discussões dessa natureza surjam com maior frequência e profundidade no Brasil e entrem na pauta do Cade.

Por fim, é de se retornar, como no pêndulo de Newton, às forças motrizes iniciais deste texto: incerteza e esperança. Existem várias razões para o crescimento mundial da demanda por políticas ESG: por exemplo, a preocupação com questões climáticas e de biodiversidade, na dimensão ambiental; o desejo de promover uma sociedade mais justa com inclusão social e respeito pelos direitos humanos, na dimensão social; o desejo de maior transparência nos negócios, na dimensão de governança. Políticas ESG são, por conseguinte, retrato da urgência e das profundas transformações pelas quais atravessa o mundo contemporâneo, mas expressam também as possibilidades, oportunidades e perspectivas desse brave new world que se avizinha.

É preciso que Cade e defesa da concorrência, especialmente no Brasil, se apropriem cada vez mais dessas temáticas, ainda que seja — e legitimamente pode sê-lo — para delimitar não ser de sua competência incluí-las em sua metodologia de análise ou, sendo o caso, para demarcar com qual grau de influência e a partir de quais parâmetros ou critérios a intersecção entre ESG e concorrência deve ser estruturada no país. Mas é necessário, principalmente, que sem demora e expressamente se opte pela esperança em detrimento da atual incerteza quanto ao papel a ser desempenhado pelas políticas ESG no fortalecimento da defesa da concorrência no país.

 


[1] Note-se que o termo "sustentabilidade" é aqui utilizado em seu sentido amplo, englobando fatores ambientais, sociais e econômicos. Há, contudo, extenso debate sobre a nomenclatura mais adequada, por exemplo, no âmbito do mercado mobiliário e dos fundos de investimento: ASG, ESG, SDG, verde, green, entre outros, são todas possibilidades nas quais a sustentabilidade passa a integrar o drive (conjunto de motivos) de decisão.

[2] Em síntese, ESG consiste em um conjunto de padrões e boas práticas que visa a definir se a operação de uma empresa é socialmente consciente, sustentável e corretamente gerenciada. Os três pilares expressos na sigla em inglês são utilizados como critérios para entender se uma empresa possui sustentabilidade empresarial, ampliando a perspectiva de análise do negócio para além das métricas financeiras. Por conseguinte, busca-se mensurar se a empresa é realmente uma opção viável de investimentos sustentáveis, capazes (e engajados) de gerar impactos positivos financeiros, sociais e ambientais.

[4] Ainda segundo o GRIS 2020, houve um aumento de 15% nos últimos 2 (dois) anos (2018-2020) e de 55% nos últimos 4 (quatro) anos (2016- 2020). Além disso, o percentual de investimentos sustentáveis sobre o total de ativos sob gestão nestes mercados também cresceu em termos relativos, passando de aproximadamente 28%, em 2016, para 36% em 2020.

[5] Exemplificativamente, autoridades concorrenciais na Europa publicaram diversos documentos sobre o tema: a autoridade grega publicou um documento denominado "Staff Discussion Paper on Sustainability Issues and Competition Law", em setembro de 2020; a Competition and Markets Authority (CMA) do Reino Unido, por sua vez, disponibilizou um documento intitulado "Environmental sustainability agreements and competition law"; a autoridade holandesa (ACM) está desenvolvendo um Guia sobre Acordos de Sustentabilidade, para proporcionar maior segurança jurídica a concorrentes que desejem colaborar na execução de práticas socioambientais; e, por fim, a OCDE também emitiu um relatório sobre "Sustentabilidade e Concorrência", examinando a questão sob as perspectivas jurídica e econômica.

[6] A Comissão Europeia já anunciou que levará em consideração objetivos de sustentabilidade em suas análises concorrenciais e em guias sobre acordos horizontais e verticais. Não obstante, já ressaltou que o direito da concorrência não deve ser visto como instrumento determinante na promoção da sustentabilidade, mas apenas como uma das diversas ferramentas acessórias, até porque, em sua visão, medidas de cunho fiscal e regulatório se mostram mais adequadas ao propósito. Para maiores detalhes: https://www.whitecase.com/publications/alert/eu-horizontal-rules-under-review-european ; commission-publishes-staff-working; https://www.lw.com/thoughtLeadership/eu-distribution-rules-under-review; e https://ec.europa.eu/competition/information/green_deal/call_for_contributions_pt.pdf.

[7] Para os fins deste texto, greenwashing antitruste consiste na utilização do conceito de sustentabilidade como cobertura para infrações anticompetitivas, o que pode ser agravado pelo fato de ainda inexistirem parâmetros objetivos para se avaliar o nível de sustentabilidade alcançado por determinadas práticas, o que eventualmente pode dar margem a uma interpretação excessivamente ampla desse conceito.

[8] Outros exemplos dessa interface, por ora, ainda não desenvolvida pelo Cade: AC nº 08700.007101/2018-63, AC nº 08700.003713/2015-34, AC nº 08700.002997/2017-11, AC nº 08700.002165/2017-97, AC nº 08700.001097/2017-49, AC nº 08012.003711/2000-17, AC nº 08700.002975/2014-09, AC nº 08012.004808/2000-01, AC nº 08700.005937/2016-61, AC nº 08700.010688/2013-83, AC nº 08012.007378/2011-78, AC nº 08700.010965/2015-10, AC nº 08012.000640/2000-09, AC nº 08012.007776/2008-99, AC nº 08700.004230/2012-12, AC nº 08700.010123/2013-04, AC nº 08700.004226/2012-46 e PA nº 08012.004430/2002-43.

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