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20 ANOS com GILMAR MENDES: integridade e confiança

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17 de junho de 2022, 20h10

Em 2010, ao ensejo do XIV Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABRADT), homenageamos o Ministro GILMAR MENDES, então aos 8 anos de magistratura na Corte Suprema. Na ocasião, como presidente da ABRADT, saudei-o com a mais subida honra e admiração que, àquela época, meu espírito poderia cultivar.

Homenageamos então o homem forte, nascido de terras auríferas, em Diamantino, Mato Grosso, descobertas e povoadas pelos bandeirantes, para aproximar suas origens das terras mineiras do ciclo do ouro, onde se instalou o movimento libertário da Inconfidência Mineira. Minas Gerais tornou-se o símbolo da liberdade, mas ainda da integração nacional, pois em que pese à resistência dos paulistas pioneiros à cata do monopólio, abriu seu território aos forasteiros vindos de toda parte do país. A guerra dos Emboabas foi disso um exemplo. GILMAR MENDES tem conosco, das Minas, tal aproximação, um homem que garantiu e garante a efetividade da separação de poderes, do Estado de Direito, da segurança e da liberdade. Mas de modo nada paroquial, e sim integrativo.

Naquele velho discurso, de 2010, reproduzimos o artigo do Ministro mineiro, CARLOS MÁRIO VELLOSO, publicado no Estado de Minas em 23 de abril de 2010, e o fazemos parcialmente, de novo:

"Intimorato, íntegro, bravo, GILMAR MENDES fez valer a autoridade do Supremo Tribunal toda vez que essa autoridade foi desafiada. Forte na Constituição e na defesa das liberdades públicas, impôs um basta à escalada policialesca que tomava corpo com as prisões espetaculosas de cidadãos, inclusive advogados, diante dos holofotes das televisões, prisões que se faziam muita vez simplesmente para que os presos prestassem declarações à polícia. Advogados tiveram seus escritórios e seus arquivos abertos à fúria policialesca… É como condenar para depois julgar. Algemas só devem ser utilizadas relativamente aos criminosos contumazes, aos indivíduos violentos e em caso de resistência e de fundado receio de fuga. A isso tudo reagiu, corajosamente, GILMAR MENDES, brandindo a Constituição. No que concerne ao uso de algemas, editou o Supremo Tribunal Federal, a Súmula Vinculante nº 11. E o fez decidindo um habeas corpus que tinha por objeto o julgamento, pelo júri popular, de um operário. A Nação vai ficar devendo ao presidente GILMAR MENDES o basta que impôs à escalada policialesca…"

Doze anos depois desses eventos… o Ministro GILMAR MENDES, leal aos grandes valores e princípios que a Constituição abriga, liberdade, segurança e estado de direito, continua respeitoso das tradições locais e regionais, verdadeiro federalista, sem perder a solidariedade e a integração nacionais. Em face da continuidade e da fugacidade da vida, o juiz, sábio que é, sabe extrair dessas mudanças constantes, o que de permanente deve prevalecer e o que de fugaz se deve deixar passar.

Agora, o mais difícil, em uma sociedade em rede, midiática, com hiper adensamento dos conflitos e das decisões judiciais, em momento histórico peculiar, de sistemáticos ataques às Instituições, ao papel, atuação e posição da Suprema Corte, GILMAR MENDES buscou o que deve prevalecer, o permanente, capitaneou a resistência democrática, garantidora do estado de direito e do império da Constituição que marcaram sempre o rol de suas acertadíssimas decisões, majoritárias e, sobretudo, contra majoritárias. Mesmo tendo sido necessárias, tais decisões costumam arrastar magistrados e votos proferidos, a uma exposição adversa, cruel e intolerante. Em tais circunstâncias, nunca se pediu tanta coragem a um magistrado, além de sua independência e do melhor de sua arte e expertise. Nada mais atual e consistente do que aquele discurso do Ministro CARLOS VELLOSO, em louvor a juiz tão intimorato.

São vários os exemplos notáveis da gritante fidelidade do Ministro GILMAR à Constituição, em especial ao seu núcleo de garantias fundamentais: quando se bate contrariamente à execução antecipada da pena, exceção feita às hipóteses de prisão preventiva; quando, no Habeas Corpus 164.493/PR, ratificou a incompetência da 13ª Vara Federal para o exame dos casos ali afetados no chamado inquérito da "lava-jato" e, em sequência, liderou a 2ª Turma ao reconhecimento da parcialidade/suspeição do juiz em relação ao paciente Lula da Silva, anulando todos os atos decisórios proferidos por aquele magistrado incompetente; ao rejeitar a prisão por dívida tributária no ICMS, RHC 163.334; e em outros casos importantes, voltados a consagrar os requisitos formais e materiais do estado de direito.

Esses requisitos configuram o que, na filosofia, denomina-se de porta estreita do direito. EROS GRAU, antes do Ministro GILMAR MENDES, também escolhera passar pela porta estreita, no belíssimo voto condutor do pleno da Corte Suprema, quando do julgamento do HC 84.078, de 2008, em que igualmente vedou o cumprimento antecipado da pena, ressalvados os casos de prisão preventiva. Essa passagem, "entrai pela porta estreita" do Sermão na Montanha, retratada no Evangelho de São Mateus, e tantas vezes invocada por filósofos do direito como KRIEGER e POSTEMA,1 pode resumir os muitos pressupostos e procedimentos inerentes ao estado de direito, que o fecham ao campo livre e aberto dos comandos externos ao direito, políticos, econômicos, ideológicos ou religiosos. Comentando o brocardo búlgaro segundo o qual somente os tolos, em face de um campo aberto, escolhem passar pela porta estreita do direito, diz KRIEGER, com razão, que na sociedade onde essa equivocada rejeição à porta estreita prevalece, o estado de direito foi eviscerado.

Pois bem. Toda teoria razoável da jurisdição tem de dar conta da responsabilidade política de se interpretar o Direito, em especial a Constituição. E isso é peculiar em GILMAR MENDES. Atrelado ao fundo rígido da Constituição, dos direitos fundamentais da liberdade e da justiça, nem por isso ele se abala com as miríades de conflitos em cadeia; de normas legais desafiantes da coerência e da consistência; da resistência dos tribunais inferiores à obediência aos precedentes vinculantes (daí resultando milhares de reclamações); da magnitude do contencioso mutante e mutável… uma sociedade em rede que demanda soluções mais rápidas e que, no entanto, transborda, carente de segurança e, sobretudo, de confiança.

As transformações preconizadas por GILMAR MENDES, ao longo de 20 anos, são os únicos caminhos abertos, capazes de a um só tempo adequar os julgados à variedade infinita da vida e, ao mesmo tempo, reconhecer a responsabilidade do juiz pela confiança gerada nos jurisdicionados.

As ricas técnicas de controle de constitucionalidade com que o Ministro soube colher a realidade social e econômica, multifacetada e cambiante, para conferir-lhe mais segurança e proteger a confiança gerada nas relações tributárias, é o que devemos destacar. Compartilhamos com o notável jurista, a posição que defendeu em livros e junto à Corte Suprema, abrindo-lhe novos caminhos.

Hoje, não queremos deixar esquecido o pioneirismo de GILMAR MENDES em relação às ricas técnicas de controle de constitucionalidade, já que a questão foi pacificada com o advento de dois diplomas legais, a Lei 9.868/99, art. 27, e o novo CPC, em seu art. 927, §3º.2

De longa data, preocupado com a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, GILMAR MENDES (cf. Die Abstrake Nomenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem Brasilianischen Supremo Tribunal Federal, Berlim, 1991, Ed. Duncher & Humblot) destacou a "conveniência e a oportunidade de as Cortes Constitucionais estipularem os efeitos de suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade", se ex tunc, se ex nunc, ou ainda se não acompanhadas de nulidade imediata. Essa flexibilidade que as Cortes Constitucionais podem se atribuir, em certos casos, evita dilemas de difícil solução em que os juízes são obrigados a escolher entre a aplicação justa e estrita da Constituição, de um lado, e os problemas orçamentários, ou jurídico-legislativos graves, acarretados por suas decisões, de outro; entre a necessidade de corrigirem atos do Poder Legislativo ou do Poder Executivo e o caos ou vazio legislativo decorrente da declaração de inconstitucionalidade.

Não temos dúvidas de que a Constituição de 1988 deseja a efetividade dos direitos e garantias fundamentais do contribuinte, e não um simples legislador negativo.

O Direito Tributário tem de cumprir sua função básica de atender às expectativas normativas criadas, não apenas pelo Estado-legislativo, mas ainda pelo Estado-executivo e, sobretudo pelo Estado-juiz nas decisões adotadas, abrindo sendas seguras ao desenvolvimento e ao investimento. Formando-se precedentes vinculantes em série, nos quais os contribuintes confiaram e por eles, de boa-fé, pautaram seu comportamento, uma mudança repentina na interpretação do direito representará "quebra de confiança", pela qual o juiz é responsável. Daí a modulação de efeitos, com que restabelecer a confiança gerada.

Coube a RONALD DWORKIN, entre os contemporâneos, fazer a melhor descrição do fenômeno da integridade, pedagogicamente explicada pelo planeta Netuno, a partir de uma bela metáfora. Pois anos antes de Netuno ser visualizado por meio de telescópios e fotografias espaciais, a ciência já sabia de sua existência e a postulava, apenas por inferências lógicas. Como poderia a ciência postular um fato empírico, se ela não conseguia constatar esse fato por meio da observação? A resposta dada por DWORKIN, em sua obra seminal "O Império do Direito", é de que Netuno precisa ser postulado porque sem ele as leis da física não seriam válidas. Não seria possível explicar, por exemplo, a movimentação dos demais planetas que integram o sistema solar.

Da mesma maneira, para que possamos reivindicar qualquer pretensão de justiça precisamos postular o valor da integridade, que nada mais é do que uma expressão institucionalizada da ideia de "igual respeito e consideração", é dizer, da ideia de que todos os cidadãos têm o direito de serem tratados como iguais e de forma responsável.

A integridade seria, pois, o nosso Netuno.3 Ela é uma parte constitutiva do Direito, é a que nele está implícita, pressuposta. A solução, sem dúvida, está lá, às vezes invisíveis aos olhos de muitos. Nos casos concretos da vida, e aí está a grande e difícil tarefa, o Ministro GILMAR MENDES desnuda e traz à superfície a melhor solução, por integridade no dizer de DWORKIN, explicitando a implicitude do princípio, por meio da racionalidade argumentativa. Não se quebra a regra, não se viola o direito, mas se concretiza o direito vivo, na melhor escolha possível.

Enfim, esse admirável Juiz-Netuno, GILMAR MENDES, o melhor dentre os melhores, ao longo de 20 anos, fez aflorar por integridade o mais importante dos Netunos contemporâneos, a responsabilidade do juiz pela confiança gerada por seus julgados. Tudo pela lógica da física jurídica.

Na cambiante sociedade em rede, de contínua conflitualidade e formação de precedentes, GILMAR MENDES puxa a base de fundo do sistema, integra-o, garante a liberdade e a confiança. Vida tão produtiva para si, para os seus e para nós, cidadãos e jurisdicionados, é ímpar.


1 V. Gerald J. Postema. Law’s Rule. Reflexivity, Mutual Accountability, and the Rule of Law. In Bentham’s Theory of Law and Public Opinion. Coord. Xrabv Zhai, p 33; Martin Krygier. The State of the Rule of Law State, Cap. 3, p.60; Thomas Bustamante. Precedent. IVR Encyclopedia. Heidelberg, Springer, no prelo para 2021.

2 Não se ignora o papel proeminente do Ministro LUIS FUX na fundamentação e elaboração para aprovação do novo CPC/2015, forte em segurança e proteção da confiança em especial nas mutações jurisprudenciais.

3 Ver, em especial, Dworkin, Ronald, Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap, 1986, cap. 6.

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