Senso Incomum

Por que precedente desfavorável não pode retroagir

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16 de junho de 2022, 8h00

Aviso para quem não gosta de textos longos: ao final tem um post scriptum sobre a revogação da lei da gravidade proposta por um deputado. Ou algo similar.

Spacca
Os advogados Thaila Fernandes da Silva e João Guilherme Gualberto Torres escreveram um belo artigo aqui na ConJur tratando da irretroatividade do precedente desfavorável.

Duas questões importantes: primeiro, que se o Supremo Tribunal Federal estabelece uma nova interpretação, ele está estabelecendo uma nova norma a um texto anterior.

Segundo, que essa nova norma não pode ser usada retroativamente para prejudicar direitos.

É evidente que ainda temos um longo caminho a percorrer para estabelecermos as bases para que um julgamento seja apropriado pelo "sistema" como sendo um precedente. Falta, no Brasil, aquilo que gosto de chamar de uma epistemologia do precedente. Qual é o DNA? O que é isto — o precedente? Qualquer julgamento? Qual é a doutrina que temos sobre identificação da ratio decidendi de uma decisão? Questões que a boa dogmática deve(ria) resolver.

Isto porque ainda entendemos, erradamente, que somente é precedente aquilo que vem com uma tarja escrito "eis o novo precedente". É como se um precedente não fosse contingencial e, sim, fosse uma construção para resolver casos futuros (ou, aqui, no limite, até do passado). Precedente não é tese abstrata prospectiva. Retroativa, menos ainda.

Precedentes não nascem precedentes e não tem certidão de nascimento. Um habeas corpus julgado pelo STF deve ser interpretado à luz do artigo 926 do CPC e das indicações postas no artigo 315 do CPP. Isto porque não pode o STF (ou qualquer tribunal) fazer apreciações ad hoc. Logo, o que o STF decide em um HC pode e deve ser entendido como o norte a seguir em outros casos de Habeas Corpus e até mesmo naquilo que se tira como princípio do referido julgamento.

Assim deveria ser. Aliás, um problema sério é pensar que teses são precedentes simplesmente porque são teses.

Mas, jogando nas regras que o jogo tem, hoje, os articulistas enfrentaram bem o problema. Uma nova decisão é uma nova norma. Decisões são normas jurídicas. E normas são atribuições de sentido que se fazem a um determinado texto, que pode ser a velha norma agora redefinida. Os articulistas capturam bem esse ponto; nem precisamos apelar para Müller e tantos outros (eu mesmo); uma boa leitura de Kelsen já resolve.

No caso, em termos de direto penal a questão se torna gravíssima, se por acaso uma nova norma venha a ser aplicada de forma retroativa sob o argumento de que "só a lei é que não pode retroagir" e que decisões judiciais não são normas (ARE nº 1.316.809/ES, DJe 2/6/2021). Aí fica difícil. O que é, afinal, uma norma jurídica para o STF? Mas, se o STF assim entende, resta apenas à doutrina o papel de buscar fazer com o Tribunal se muna do "princípio da caridade" para ouvir a comunidade jurídica, que se esforça em estudar teoria do direito. O que é isto — uma norma?

O princípio que veda a retroatividade no direito é uma questão teórica que ultrapassa ordenamentos específicos. Ou alguém acha que no common law, e pensemos no common law em suas origens, anterior a muito do direito estatutário, efeitos de decisões podem simplesmente retroagir? Simplesmente porque "não é lei"? Ora.

Espero que o Supremo não se torne vítima voluntária do aguilhão semântico, definindo, criterialisticamente, o significado de "norma" sempre que lhe aprouver. Aliás, esse é o problema central da dogmática: pensar que pode, criterialisticamente (quer dizer, de forma convencionalista) definir o sentido de algo.

Assim, se o STF diz que o acórdão confirmatório da condenação é marco interruptivo da prescrição, essa nova norma não pode retroagir. Porque a anterior é mais benéfica. Se o STF assim não entender, cabe à doutrina discutir isso com a Suprema Corte. Esse é o seu papel.  

De todo modo, parece que o STF, ao menos por parte do ministro Gilmar (são poucas as decisões nessa linha), mostra-se disposto a discutir o tema, conforme se lê no AgRg no HC nº 192.757/RR.

O que é isto — um precedente? Há um longo caminho a ser percorrido pela doutrina nacional, pela boa dogmática. Como entender o significado, o alcance e a força normativa de uma decisão?

A dogmática tem exatamente o papel de construir critérios. Sob pena de ficarmos todos reféns de criterialismos ad hoc. Critérios são uma coisa; criterialismo já é bem outra.

Post scriptum: sim, devemos estocar alimentos!

Fiquei sabendo agora que alguns deputados querem alterar a Constituição para permitir que o Congresso cancele decisões não unânimes do STF. Nem deveríamos discutir esse disparate. Funcionaria “tipo decreto legislativo”. Bom, para o nível desse parlamento que faz projeto culminando pena de 1 a 4 anos para quem “tocar” (sic) em um policial, nada surpreende.

Consta que o deputado "einstein" que bolou o projeto corretor das decisões da Suprema Corte é veterinário. Mas deve ter assessores bem pagos. Alguns deles devem ter formação jurídica. Queria saber em que faculdade se (de)formaram. Pior: um dos líderes do governo disse que não conhecia o projeto… mas que concordava. Pronto.

Parece que alguns deputados sugerem que a tal PEC tenha efeito retroativo! O Brasil vai ganhar o prêmio Ig-Nobel. Agora vai.

O próximo projeto será declarar, por lei, que a terra é, mesmo, plana e revogar a lei da gravidade. Porque a Lei de Hume já foi revogada faz tempo.

Burrice deve ser ciência. Afinal, ao que se percebe, pode ser ensinada. Há muitos aprendizes. De sucesso.  

Talvez a solução seja estocar alimentos. Ou fugir para as montanhas. A ignorância parece não ter limites.

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