Interesse Público

Rol taxativo de cobertura de saúde suplementar: um exercício de retórica

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

16 de junho de 2022, 8h04

Na semana passada, movimentou o cenário jurídico a decisão proferida pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça nos EREsps 1.886.929 e 1.889.704, nos quais se discutia o caráter exemplificativo ou taxativo do rol de tratamentos definido pela ANS como cobertura a ser observada pelos planos e seguros privados de assistência à saúde.

Spacca
A competência em favor da ANS para a delimitação desse rol, como se sabe, decorre do artigo 10, § 4º da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998 — no particular, alterada recentemente pela Lei 14.307, de 3 de março de 2022. A corte, nos feitos acima indicados, reverteu posicionamento até então prevalecente, de que o referido elenco de procedimentos fosse meramente exemplificativo. Essa compreensão até então vigente tinha em conta a necessidade de se recepcionar no sistema a dinâmica que é própria do segmento de saúde, sempre aportando alternativas novas de enfrentamento das fragilidades humanas.

Buscava-se, no julgamento submetido ao STJ, a promoção do equilíbrio entre a proteção à vida e à saúde dos segurados inerente a essa modalidade negocial; e ainda a aplicação dos princípios da ordem econômica — e, em última análise, a viabilidade desse mesmo segmento de operação. Na perspectiva das operadoras, a compreensão do elenco da ANS como meramente exemplificativo [1] trazia ao negócio uma álea que inviabilizaria a operação, ou quando menos, tornaria a cobertura excessivamente onerosa, em desfavor dos segurados — no que se teria por malferido também o princípio de defesa ao consumidor contemplado no artigo 170 CF.

É evidente o desconforto e hesitação da corte em promover a conciliação das duas posições. Se de um lado garantir a viabilidade desse segmento econômico, que responde pela saúde de mais de 49 milhões de brasileiros [2], parecia relevante, de outro lado é inequívoco que a velocidade em que se dá a evolução da medicina e a oferta de novas alternativas terapêuticas, que podem significar a diferença entre a vida e a morte, ou quando menos um significativo incremento de qualidade, não pode ser ignorada. A solução foi proclamar a taxatividade — para em seguida descaracterizá-la, com a previsão de possíveis exceções.

A decisão buscou algum alinhamento com o que antes decidiria o STF no Tema 500 da repercussão geral, no qual se debatia o dever do Estado em fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Ali também se punha o equilíbrio delicado entre a deferência para com o juízo de deliberação do regulador e as necessidades extremas de alguns pacientes — e a solução foi assemelhada: negar o dever de fornecimento, salvo situações excepcionais.

Os mais pessimistas diriam que a inclinação, antes do STF, e agora repetida pelo STJ, em preservar uma possibilidade de excepcionalizar a parte inicial da decisão reflita uma intenção de reservar para si a prerrogativa ainda de, em casos específicos, dizer diferente. Essa é uma possibilidade.

Ainda que não se compartilhe dessa percepção, e que se credite ao STJ a intenção de recepcionar situações excepcionais em que se possa imputar o dever de oferta de cobertura, a decisão deixa amplo espaço para crítica. Afinal, os contornos do que seja situação excepcional são sempre de difícil delineamento, e as conclusões expendidas pela corte revelam isso. Vejamos.

Estabeleceu o STJ no referido julgamento, a seguinte tese:

1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;

2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

Em que pese se tenha nos subitens (ii), (iii) e (iv) supostos mecanismos de prevenção em relação à eficácia e relevância do tratamento indicado, o percurso de todos estes estágios parece atrair um ônus desproporcional ao segurado/paciente. Curiosamente, o texto parece revelar uma percepção dessa fragilidade, eis que se vê permeado de aberturas semânticas — "recomendações" de órgãos técnicos (mas não a deliberação em si); realizar "sempre que possível" o diálogo institucional etc. — que podem ser "calibradas" à vista das circunstâncias do caso concreto submetido a exame jurisdicional.

Um primeiro comentário a se fazer em relação à decisão — que busca, como se diz no vulgo, "dar uma no cravo e outra na ferradura" — é que ela certamente não contribuirá para a diminuição do contencioso na matéria. Afinal, se a corte antecipadamente proclama que haverá exceções, é natural que cada interessado busque se enquadrar nessa brecha — especialmente considerados os valores envolvidos no conflito. O que parece resultar de pronto da decisão é que os planos de saúde privados se sentirão mais à vontade na recusa, o que pode resultar tão somente em antecipar a judicialização — mas nunca em diminuí-la.

No que toca às condicionantes sugeridas pela decisão para que se reconheça a situação excepcional, o que elas parecem sugerir é que caiba ao interessado evidenciar um estado de certeza tão robusto em relação à relevância terapêutica do tratamento buscado, que praticamente autorizaria em si já a inclusão do tratamento no rol da ANS. Ocorre que a controvérsia haverá de se estabelecer, certamente, porque ou ainda não se tem, em relação àquele procedimento terapêutico, o grau de certeza absoluta quanto à sua eficácia, ou ainda o convencimento pleno das instâncias reguladoras. Esse é o campo de indeterminação onde a decisão judicial será requerida — e nesses termos, as condições fixadas pelo STJ ou se reputarão inatendidas no caso concreto (e, portanto, a ressalva à taxatividade absoluta não subsistirá); ou serão desconsideradas ante a premência de se salvar uma vida. O prognóstico é de pouca modificação no cenário hoje existente, com uma decisão que se afigura mais retórica do que comprometida com uma verdadeira alteração no estado real das coisas.

O que transparece de decisões como essa é a dificuldade vivenciada pelo Judiciário quando pretende se substituir ao regulador. A matriz ordinária de pensamento do juiz reclama a fixação de um comando rígido e objetivo que permita, sempre que possível, a aplicação por subsunção. Estabilidade e previsibilidade, elementos integrantes da almejada segurança jurídica, são mais facilmente alcançáveis quando se tem comandos rígidos, que operem a partir do simples enquadramento da fato na forma. De outro lado, o comando constitucional de proteção à dignidade da pessoa e aos compromissos enunciados pelos direitos fundamentais reclamam alguma abertura na textura da norma — e é no desenho dessa fresta que reside a dificuldade, que em verdade se revela no dia a dia da Administração Pública e dos reguladores.

A enunciação em si da tese confere ao julgador a sensação de que o problema se tenha por solvido — afinal, há um comando genérico e abstrato de conduta que haverá de regular decisões futuras. Mas se o comando se reveste de expressões com grande abertura semântica ("comprovação da eficácia", "recomendações", diálogo "quando possível"), em verdade de pouca valia ele se apresentará à solução dos problemas reais que se põe na relação entre 49 milhões de brasileiros e as operadoras de planos de saúde.

O Judiciário parece ter se encantado com a agora recorrente expressão "medicina baseada em evidências". Afinal, ela ecoa uma pretensão de certeza que é própria do Direito — mas essa é uma compreensão equivocada, eivada por um viés de confirmação dos profissionais do campo jurídico, de que exista no campo médico, uma resposta única e precisa.

"A prática da medicina baseada em evidências significa integrar expertise clínica individual com a melhor evidência externa originária de pesquisa sistemática" [3]. Desse conceito já se extrai que, também no campo médico, não bastará o recurso às almejadas "evidências" — a resposta correta de tratamento envolverá uma combinação de fatores subjetivos, típicos do paciente e da expertise do profissional envolvido. É por isso que a resposta quanto à real necessidade de um tratamento ainda não incluído no rol da ANS não se poderá encontrar no conjunto de indicadores que a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça veio de enunciar no tema.

O problema de decisões retóricas, como a presente, está em sua pretensão de reforçar, no imaginário social, uma versão de que se possa encontrar no Judiciário a resposta a dramas sociais que são onipresentes mundo afora. Abdica-se do projeto de qualificação das estruturas reguladoras da atividade, em favor da solução mágica do julgador.

Há um misto de ingenuidade e pretensão de ocupação de um espaço de poder nessa narrativa — se o Leviatã não os salva, o Judiciário salvará. Essa estratégia tem produzido seus frutos, eis que o índice de confiança no Judiciário segue expressivo (40%, segundo o relatório da pesquisa ICJ Brasil, promovida pela FGV em 20214). Resta saber se essa confiança se traduz em eficácia e efetividade na solução jurisdicional — ou se a proclamação de um suposto direito existente e tutelado não se resume a isso; a palavras que o vento leva.

 


[1] Consulte-se a título de exemplo, decisões contemporâneas da corte, v.g., AgInt no AREsp nº 1.954.574/RJ, relator ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, julgado em 6/6/2022, DJe de 8/6/2022; AgInt no REsp nº 1.936.034/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 30/5/2022, DJe de 2/6/2022, dentre outras.

[2] Dados divulgados pela Agência Brasil, em 6 de maio de 2022, in https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-05/planos-de-saude-superam-49-milhoes-de-beneficiarios-no-pais#:~:text=Aumento%20foi%202%2C6%25%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20a%20mar%C3%A7o%20de%202021&text=O%20n%C3%BAmero%20de%20pessoas%20com,rela%C3%A7%C3%A3o%20a%20mar%C3%A7o%20de%202021.

[3] SACKETT, David L. et al. Evidence based medicine: what it is and what it isn't. Bmj, v. 312, nº 7.023, p. 71-72, 1996.

[4] Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30922, acesso em 10 de junho de 2022.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!