Controvérsias Jurídicas

A internação compulsória e as políticas públicas de combate ao crack

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

16 de junho de 2022, 14h38

Visando combater a proliferação do uso de crack e o aumento descontrolado da "Cracolândia", a prefeitura de São Paulo passou a se utilizar de um dispositivo legal que permite a internação compulsória ou involuntária dos usuários de entorpecentes que se espraiam por boa parte do centro histórico. Desde meados de abril, as pessoas em situação de drogadição estão sendo levadas para o Hospital Bela Vista, também na região central, para tratamento com prazo máximo de 90 dias.

A ação se deveu ao deslocamento dos usuários da região da Luz para a Praça Princesa Isabel. Devido à aglomeração de dependentes químicos e traficantes ao redor da estátua de Duque de Caxias, mês passado, uma ação policial tentou conter a desordem no local. Contudo, o real resultado da operação foi o espalhamento daquela população por várias ruas do centro, desde a Rua São João até a Praça da República.

Segundo dados da prefeitura, cerca de 250 pessoas vendem e consomem crack nas proximidades da Rua Helvétia, enquanto 150 usuários se concentram nas cercanias da Rua Gusmões. Infelizmente, o problema não é de exclusividade brasileira. Los Angeles, sede dos próximos Jogos Olímpicos de 2024, também vive situação semelhante com o cada vez mais crescente "fluxo" na região de Skid Row, formada por 54 quarteirões com mais de 4 mil usuários de crack que se empilham entre cabanas e tendas no centro da cidade.

Assegura o art. 196 da Constituição Federal que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido mediante a execução de políticas públicas que objetivem a redução do risco de doenças e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. No âmbito infraconstitucional, a Lei n. 10.216/01 já previa a possibilidade de o Estado destinar tratamento compulsório aos portadores de dependência química, principalmente quando a condição específica do cidadão indicasse que não havia mais possibilidade de tratamento voluntário (consensual).

No que tange à temática de entorpecentes, recente inovação legislativa trazida pela Lei n. 13.840/19, a qual alterou parte da Lei n. 11.343/06, introduziu a previsão de que o usuário de drogas deverá realizar o tratamento em uma rede de atenção à saúde com prioridade para a abordagem ambulatorial. De igual forma, preceitua o art. 23-A, § 2º, da Lei n. 13.840/19, que é admitida a internação de pessoas em situação de drogadição, desde que realizadas em unidades de saúde ou hospitais gerais com equipes médicas multidisciplinares, devendo ser obrigatoriamente precedida de autorização de médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina da região do hospital.

Para a internação involuntária, faz-se necessário, portanto, a comprovação de risco concreto à saúde e integridade física do indivíduo ou de terceiros, demonstrado mediante laudo psiquiátrico lavrado por profissional habilitado, com a descrição do quadro clínico do paciente e a impossibilidade ou insuficiência da adoção de outras abordagens terapêuticas, justificando tal medida extremada. No prazo máximo de 72 horas, Ministério Público e Defensoria Pública deverão receber informações acerca da decisão.

A medida pode ser requisitada por familiares ou representante legal do usuário, servidores públicos da área da saúde, de assistência social ou de órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Ressalte-se que remanesce o direito dos integrantes da família ou do representante legal, a qualquer momento, de requisitar a interrupção do tratamento ao médico que o assiste.

Há que se destacar que existem diferenças significativas entre os institutos da internação involuntária e compulsória. Para esse último não é necessária a requisição de familiar ou representante legal. Será determinada por um juiz competente, mediante pedido formal feito por médico, confirmando que o indivíduo não possui autodeterminação sobre sua condição física e mental. Para sua decisão, deverá o magistrado levar em consideração o laudo médico juntado ao pedido e as condições de segurança do estabelecimento para o usuário e demais pacientes do local.

Embora improvável para os casos de dependência em crack, a Lei n. 10. 216/01 ainda prevê a internação voluntária, situação na qual o usuário solicita voluntariamente a própria internação, ou com ela consente, assinando, no momento de sua admissão, que conscientemente optou por esse tipo de tratamento. O término do tratamento será requisitado mediante pedido escrito do paciente ou de seu médico assistente, porém, nada impede que a internação se torne involuntária ou compulsória, se no decorrer do tratamento sobrevier pedido médico ou determinação judicial.

A razão de ser da existência do instituto da internação compulsória reside nos casos em que existe a necessidade de intervenção do Estado, mormente em matérias de ordem pública, mas sem nenhuma solicitação de familiar ou pedido médico. Nesses casos, o Ministério Público ou órgãos públicos da área da saúde poderão formular o pedido para o juiz da Vara da Família. De caráter emergencial e temporário, a internação compulsória sempre deverá levar em consideração a proteção do interesse do usuário, que em função do seu alto grau de dependência química perdeu a capacidade de controlar seus atos, resultando em risco atual ou iminente à sua vida e integridade física ou psíquica.

Conforme art. 2º, parágrafo único, V, da Lei n. 10.2016/10, o usuário internado compulsória ou involuntariamente “tem direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização”, aferindo-se que o tempo de internação deverá ficar adstrito à cessação de seus motivos determinantes. Deverá ser, pois, o mínimo possível para a desintoxicação do paciente e retorno de seu poder de autodeterminação. Verificando o Poder Judiciário que o usuário não poderá causar risco a si ou a terceiros, colocara-o em liberdade imediatamente.

A internação compulsória também não deve ser confundida com a interdição, tendo em vista que o instituto civil poderá caracterizar medida ainda mais gravosa ao indivíduo. A interdição civil somente será reconhecida caso o tratamento ao qual foi submetido o usuário tenha sido ineficaz e a dependência química tenha comprometido sua capacidade para os atos da vida civil. Inclusive, o art. 4º, II, do Código Civil estabelece que os toxicômanos são “incapazes relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”, devendo o juiz especificar na sentença de declaração de incapacidade por dependência química quais são os limites da incapacidade.

Embora polêmica, a medida encampada pela prefeitura de São Paulo busca auxílio da ciência na tentativa de solucionar o mais grave problema de saúde pública das últimas décadas. Setores da sociedade têm se mostrado reticentes ante à política de internação compulsória muito em função da confusão entre o instituto e as políticas de reclusão manicomial.

Erving Goffman1, em seu “Manicômios, prisões e conventos”, descreve os mecanismos de dominação que as instituições totais aplicam aos seus pacientes, de modo a apagar a configuração do “eu” em detrimento de um comportamento docilizado e subserviente. Maria Clementina Pereira Cunha2, em “O espelho do mundo” retrata as concepções de normalidade e anormalidade comportamental da sociedade paulista na passagem do século 19 para o 20, atestando que conforme o imaginário da época, a construção das colônias hospitalares para tratamento mental tinha como propósito esconder dos olhos do público pessoas com comportamento indesejado ou desviante.

Em uma sociedade que se pretendia civilizada, a presença de travestis, homossexuais, alcoólatras, mães solteiras e outras pessoas de comportamento “inadequado” causava incomodo à ordem familiar nuclear burguesa, tendo as instituições manicomiais servido como local de recolhimento dos indesejáveis à pretexto de tratamento médico3. Além de seu caráter sociológico, as instituições psiquiátricas refletiam as concepções de intervenção médica da época, notadamente pautada pela laborterapia:

"Tuke O`Neill – que afirmava ser o trabalho um valioso contingente do bom exemplo que se deve dar à classe dos que estão sempre prontos para fazer o mal, em virtude de aberração mental – Kraepelin, Kovalevsky, entre outros, em apoio das técnicas da laborterapia para concluir enfática e sinteticamente: A orientação que domina o hospício de São Paulo é completamente científica. E basta".4

Suspender as garantias e os direitos individuais do cidadão em busca da satisfação do bem comum, ainda mais se fundamentado sob a ótica médica, é sempre um caminho tortuoso e perigoso. Entretanto, o perigo do domínio do mercado do crack se mostra tão desafiador, que poucas são as opções de intervenção estatal para a solução do conflito. Obviamente que a questão deve ser abordada sob múltiplos prismas, considerando-se desde o aumento da população de rua em função da pauperização e desemprego, passando pela questão de migrantes e imigrantes que não se habituaram com a nova cidade e condições psiquiátricas alheias ao uso de drogas, requerendo abordagem humanitária, específica e adequada para cada caso. Quanto ao crack, por se tratar de entorpecente que causa alto grau de dependência, quase que irreversível, e levar o usuário à morte em poucos anos de uso, a internação compulsória de seus usuários, desde que fiscalizada por vários atores da sociedade civil, pode se mostrar uma alternativa preferível a omissão.


1 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos, 7ª edição, Ed. Perspectiva, 2003.

2 CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo – Juquery, a história de um asilo, 2ª edição, Ed. Paz e Terra, 1986.

3 G. Stedman-Jones. Le Londres des réprouvés: de la désmoralisation a la dégénérescence, in L`Haleine des Faubourgs, Recherches, nº 29, Paris, 1977.

4 Cf. F. Franco da Rocha. A questão do trabalho nos hospícios, in Estatísticas e Apontamentos, Hospício de São Paulo, Typ. Diário Official, 1900 (artigo publicado originalmente no Jornal O Estado de São Paulo em janeiro de 1899).

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