Estatais e contratação de startups: aderência das normas
14 de junho de 2022, 19h34
O fomento à inovação do procedimento licitatório com práticas mais eficientes e menos burocráticas, atrelado ao incentivo da participação da iniciativa privada na elaboração de políticas públicas têm feito parte das legislações contemporâneas que versam sobre o processo de contratação pública.
Dessa maneira, é inegável admitir que o viés moderno e flexível trazido pela Lei 13.303/16, regime jurídico das empresas estatais, dotou as empresas públicas e sociedades de economia mista de artefatos para profissionalizar a alta administração das entidades, além de trazer ferramentas para a modelar da licitação como forma de enfrentar os desafios da administração pública.
Assim, o binômio gestão profissionalizada e procedimento licitatório moderno e menos moroso trouxe para as empresas estatais a possibilidade de contratarem startups e soluções inovadoras muito antes do advento da Lei Complementar 182/21, conforme se abordará doravante, de modo que atualmente há perfeita aderência das disposições de uma norma à outra.
Novos contornos da gestão e da contratação na Lei 13.303/2016
A Lei 13.303, mais do que cumprir o que determina o artigo 173, §1º da Constituição, ao dispor sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, inaugurou um regime jurídico administrativo próprio para essas entidades, promovendo alterações profundas na gestão de suas organizações e dotando-as de um procedimento peculiar de licitações e contratos.
Sobre as inovações acerca das licitações e contratos, a Lei determinou que cada empresa estatal edite seu próprio regulamento de licitações (artigo 40) e para elaborar este documento a estatal deve considerar suas peculiaridades e especificidades de mercado, disciplinando, a sua maneira, os detalhes do seu procedimento licitatório.
De maneira geral, a licitação das estatais visar trazer celeridade às contratações e se destaca por apontar que, preferencialmente, as licitações deverão ser realizadas por meio eletrônico [1], além de que, preliminarmente, deverá haver a disputa de preços e posteriormente a habilitação apenas do licitante provisoriamente em primeiro lugar, com posterior fase recursal única [2].
De maneira inovadora, prevê a participação da iniciativa privada nas contratações públicas com a instituição do PMI [3], trazendo, ainda, fora da órbita da contratação clássica, a possibilidade de firmar contratos — sem a observância da obrigatoriedade do procedimento licitatório — tendo por objeto a comercialização, prestação ou execução, de forma direta, pelas empresas estatais, de produtos/serviços/obras especificamente relacionados com seus objetos sociais e também no casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo, com base no artigo 28, §3º, incisos I e II, respectivamente.
Para que toda essa mudança possa ser absorvida e internalizada, a Lei das Estatais também se preocupou em profissionalizar a alta administração, com critérios mais rígidos para ser administrador [4], além de trazer para dentro da diretoria executiva e do conselho de administração a governança corporativa, de modo que uma gestão comprometida traz o exemplo necessário para que todos sigam, com integridade e dentro da legalidade, as inovações que a Lei trouxe.
Especificidades das empresas estatais na LC 182/21
Nas palavras de Ribeiro Neto:
"A contratação de startups e soluções ligadas à inovação pela administração pública é um tema extremamente relevante hoje. O avanço tecnológico proporcionado pela revolução 4.0, trouxe desafios para o Estado, não só para sua função regulatória, mas também administrativamente e na prestação de serviços. Contratar startups e incorporá-las à administração pública e, ainda, possibilitar uma entrega de serviços mais eficientes aos cidadãos, é hoje um desafio para o setor público. A inflexibilidade legislativa e o controle excessivo são algumas das críticas."
E como forma de superar esse desafio foi publicada em 2021 a Lei Complementar 182, LC, instituindo o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador e já no seu artigo 1º estabeleceu os princípios e as diretrizes para a atuação da administração pública em todas as esferas de governo e disciplinou a licitação e a contratação de soluções inovadoras pela administração pública.
Em relação às estatais, a LC admite no artigo 9º que as empresas que possuem obrigações de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação, decorrentes de outorgas ou de delegações firmadas por meio de agências reguladoras, ficam autorizadas a cumprir seus compromissos com aporte de recursos em startups por meio de investimentos em programas, em editais ou em concursos destinados a financiamento, a aceleração e a escalabilidade de startups gerenciados por empresas públicas direcionadas ao desenvolvimento de pesquisa, inovação e novas tecnologias.
Nessa toada, as empresas públicas com a função social de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação funcionam como intermediadora na relação entre as empresas que possuem obrigação de investimento, já que estas podem cumprir seus compromissos aportando recursos em startups através de políticas públicas de financiamento, aceleração e escalabilidade de startups gerenciadas por estatais.
Sobre licitações e contratos, o artigo 12 afirma que têm por finalidade resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia e promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado e disciplinou no §2º que a empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias poderão adotar, no que couber, as disposições licitatórias e contratuais do Marco Legal, desde que o façam nos termos dos seus regulamento interno de licitações e contratações, harmonizando o processo de contratação pública em ambos os normativos.
Em aderência ainda às normas maleáveis, mais próximas do que mercado demanda para as novas soluções e ainda com perfeita aderência ao regime jurídico da Lei 13.303/16 que, além da flexibilidade na licitação, tem um forte conteúdo de gestão, o artigo 12, §2º da LC admite que o conselho de administração da empresa estatal autorize valores diferenciados para a) os valores do Contrato Público para Solução Inovadora — CPSI que são limitados a até um milhão e seiscentos mil reais pelo §2º do artigo 14 e b) o valor máximo do contrato de fornecimento estipulado pelo artigo 15, §3º, que é de cinco vezes o valor máximo definido para do CPSI.
Assim, por ato motivado do conselho de administração, o valor do CPSI firmado por uma estatal pode ser superior a um milhão e seiscentos mil reais, bem como o contrato de fornecimento também pode ultrapassar o limite de cinco vezes o valor do CPSI. Especificamente sobre a possibilidade de alteração dos valores pelo conselho de administração destacamos que essa faculdade tem sintonia com o que já é previsto na Lei 13.303/16 [5].
Destarte, a LC trata de maneira distinta as estatais em três momentos: 1) na autorização do artigo 9º, III; 2) na possibilidade de utilizar a licitação especial da LC desde que previsto em regulamento e 3) na faculdade dada ao conselho de administração para alteração de valores prevista no artigo 12, §2º.
Aderência da modalidade especial da licitação
Como bem destacado por Portela e Fassio, o procedimento licitatório da LC "não é restrito à participação de startups e, por isso, pode abranger quaisquer pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, capazes de contribuir com a resolução do desafio veiculado no edital", de maneira que é necessário conhecer as peculiaridades da licitação advinda com o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador.
Nessa senda, ainda que a LC em seu artigo 13 trate a modalidade de licitação por ela trazida como especial, se comparada ao regime licitatório da Lei 13.303/16, percebe-se as mesmas funcionalidades.
O artigo 13 dispensa a descrição de eventual solução técnica previamente mapeada e suas especificações técnicas, cabendo aos licitantes propor diferentes meios para a resolução do problema. Surge, como dito por Duarte, a possibilidade de "a Administração Pública construir, em conjunto a iniciativa privada, a solução tecnológica ao problema enfrentado", o que já é possível, na Lei das Estatais, com a utilização do Procedimento de Manifestação de Interesse — PMI, previsto no artigo 31, §4º, antes mesmo da realização da licitação. A previsão do artigo 13 ainda carrega ainda a possibilidade de que o planejamento da contratação não seja completo e mitigue alguns elementos da fase interna, o que também é admitido na Lei das Estatais, que não tem um sistema hermético de preparação da fase interna.
O artigo 13, §8º traz da possibilidade de dispensar o rol de documentos de habilitação previsto no artigo 27, incisos I a IV da Lei 8.666/93, além de facultar a prestação de garantia à contratação. Todas essas possibilidades da LC já estão contempladas na Lei 13.303/16: a) o artigo 58 traz um padrão de habilitação aberto que não dispõe de nenhuma certidão de regularidade, o que vai ficar a cargo de cada regulamento interno; b) a prestação de garantia à execução é discricionária nos termos do artigo 70.
Ainda destacamos o §6º do artigo 13 da LC dispondo que a licitação poderá selecionar mais de uma proposta para a celebração do contrato, alternativa também prevista na Lei das Estatais, que tratou da contratação simultânea em seu artigo 46.
Por fim, há a permissão trazida pelo artigo 15 da LC de que a administração pública poderá celebrar com a mesma contratada, sem nova licitação, contrato para o fornecimento do produto, do processo ou da solução resultante do CPSI ou para a integração da solução à infraestrutura tecnológica ou ao processo de trabalho da administração pública, o que se amolda às exceções ao dever de licitar que viabiliza hipóteses de contratação direta excepcionais trazidas pelo artigo 28, §3º da Lei 13.303/16, seja para cumprimento, de forma direta, do objeto social da empresa estatal ou para celebrar com um parceiro contratos classificados como oportunidades de negócio.
Dessa maneira, as ferramentas que fazem licitação e contratação da LC uma modalidade especial já existem rotineiramente na Lei 13.303/16, sendo inegável, no entanto, que a contratação de startups e de soluções inovadoras por parte de empresas estatais é ainda muito incipiente, mesmo havendo tantas possibilidades e compatibilidades normativas.
Conclusão
Antes da publicação do Marco Legal, Ribeiro Neto já destacava que os principais desafios para a contratação de startups pela administração pública que eram "o processo caro, burocrático, lento e muito arriscado devido à insegurança jurídica dos órgãos de controle sobre o processo de licitação" tradicional, tendo Lei Complementar 182/21 buscado transcender esses desafios, fomentando à contratação de startups e de soluções inovadoras pela administração pública mediante um processo de licitação diferenciado.
A LC, portanto, ao dispor da contratação de startups e de soluções inovadoras trouxe tratamento diferenciado às empresas estatais, tanto por prever condições distintas a depender de ato do conselho de administração, quanto por trazer aderência à modalidade especial de licitação que trata aos ditames da Lei das Estatais, confiando nos contornos de maturidade licitatória e de profissionalização da alta administração das empresas estatais para equacionarem o fomento à inovação com as melhores práticas de contratação pública.
Referências
DUARTE, Júlia. A contratação das startups guiada pela Lei Complementar 182/2021. Disponível em https://www.ssantosrodrigues.com.br/assets/images/uploads/srstnewsartigo90.pdf. Acesso em 03/06/2022
PORTELA, Bruno Monteiro; FASSIO, Rafael Carvalho de. A hora e a vez das contratações de inovação. Uma análise do procedimento de compra pública do Marco Legal de Startups e do Empreendedorismo Inovador. Disponível em https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/a-hora-e-a-vez-das-contratacoes-de-inovacao-16072021 Acesso em 01/06/2022.
RIBEIRO NETO, Rafael, Desafios na contratação de startups pela administração pública. Disponível em https://itsrio.org/wp-content/uploads/2020/10/Desafios-na-contrata%C3%A7%C3%A3o-de-startups_Rafael_Ribeiro_Neto.pdf Acesso em 03/06/2022.
[1] Artigo 51. […] §2º Os atos e procedimentos decorrentes das fases enumeradas no caput praticados por empresas públicas, por sociedades de economia mista e por licitantes serão efetivados preferencialmente por meio eletrônico, nos termos definidos pelo instrumento convocatório, devendo os avisos contendo os resumos dos editais das licitações e contratos abrangidos por esta Lei ser previamente publicados no Diário Oficial da União, do Estado ou do Município e na internet.
[2] Artigo 51. As licitações de que trata esta Lei observarão a seguinte sequência de fases: […] III – apresentação de lances ou propostas, conforme o modo de disputa adotado; […] VII – habilitação; VIII – interposição de recursos.
[3] Artigo 31 […] § 4º A empresa pública e a sociedade de economia mista poderão adotar procedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e projetos de empreendimentos com vistas a atender necessidades previamente identificadas, cabendo a regulamento a definição de suas regras específicas.
[4] Artigo 17.
[5] Artigo 29 […] §3º Os valores estabelecidos nos incisos I e II do caput podem ser alterados, para refletir a variação de custos, por deliberação do Conselho de Administração da empresa pública ou sociedade de economia mista, admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade.
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