Território Aduaneiro

Drawback sobre serviços no Brasil?

Autores

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • Solon Sehn

    é professor de Direito Aduaneiro e Tributário doutor e mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) advogado graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) ex-conselheiro do Conselho Administrativo Federal de Recursos Fiscais (Carf) e representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

  • Ana Clarissa Masuko

    é advogada graduada pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP doutora em Direito Tributário pela USP pós- doutora pela Universidade Católica de Brasília pós-doutoranda pela Escola de Políticas Pública e Governo da FGV-EEPG professora da FGV-EEPG e autora entre outras obras de "Princípio do Destino no Comércio Exterior de Serviços - Desafios na Era da Economia Digital" (Rio de Janeiro: Lumen Juris 2021).

14 de junho de 2022, 8h04

No meu artigo anterior neste "Território Aduaneiro" [1], escrevi sobre o regime aduaneiro especial de drawback e mencionei que tinha concluído um texto acadêmico, com os amigos Solon Sehn e Ana Clarissa Masuko, a respeito da aplicação do drawback aos serviços. Pois bem, parece que esse tema desperta interesse, de forma que recebi várias perguntas e, por isso, convidei os coautores para escrevermos juntos a coluna desta semana. Espero que respondamos à curiosidade dos leitores e estudiosos.

Spacca
No panorama atual do comércio internacional, da economia digital, onde os serviços têm adquirido grande e crescente relevância, é premente no Brasil a discussão sobre a necessidade de desoneração dos tributos sobre serviços destinados à exportação, e não somente dos bens tangíveis.

O drawback constitui o mais relevante instrumento fiscal de estímulo à exportação [2] e seu efeito é potencializado na proporção direta da complexidade e do índice de valor agregado da atividade industrial. Cumpre lembrar que se permite, neste regime, a aquisição de insumos importados, e também nacionais, com desoneração de tributos, para industrialização ou aperfeiçoamento [3] no Brasil e a exportação do produto final. Essa desoneração atinge: imposto sobre a importação, IPI, PIS, Cofins, AFRMM (Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante) e ICMS.

Assim, a desoneração na aquisição ou importação é condicionada à exportação do produto com agregação de valor e, por isso, a legislação refere-se ao drawback como um incentivo à exportação [4]. Embora a legislação não determine em termos exatos o valor a ser agregado na operação, na aprovação do ato concessório do regime, o potencial beneficiário deverá demonstrar quais condições amparam o seu processo produtivo e, portanto, qual será a agregação de valor e de ganho cambial para o Brasil.

Considerando a importância do drawback, sua natureza, bem como a preocupação do legislador em adaptar a legislação a conjunturas econômicas, para que o regime se mantivesse como um instrumento de incentivo à exportação, a inclusão dos tributos incidentes sobre os serviços na sistemática do regime de drawback é uma questão que se impõe no atual ambiente da economia digital.

Entretanto, a implementação do drawback sobre serviços esbarra em uma realidade mais ampla, que é a ineficiência do sistema tributário brasileiro, eivado de problemas estruturais e obsolescências, que repercutem sobre a potencial implantação de um drawback sobre serviços.

O processo de desoneração das exportações no Brasil não alcança o grau de eficiência de outros sistemas tributários mais simples. Na grande maioria dos países do mundo, é praxe desonerar dos tributos a exportação e onerar a importação com os tributos incidentes sobre a produção/consumo (em muitos países, mediante a incidência de tributos do tipo IVA — imposto sobre o valor agregado).

No Brasil, a dinâmica é similar, porém, o sistema tributário é muito mais complexo, e há um maior número de tributos incidentes no ciclo produtivo, que são exigidos por diferentes entes da Federação. Por isso, não é possível desonerar alguns desses tributos da cadeia produtiva de bens voltados à exportação; e, para outros tributos, somente é possível desoneração tardia, mediante a utilização de crédito ou a restituição em dinheiro.

Ou seja, no sistema tradicional brasileiro, primeiro são recolhidos os tributos incidentes na cadeia produtiva do produto a ser exportado e depois o exportador toma as providências para recuperar parte dos valores desembolsados, mediante crédito, ou, o que costuma ser mais moroso e burocrático [5], mediante restituição em dinheiro [6].

Em relação especificamente aos serviços, são altos os custos tributários na importação, o que impacta as condições de competitividade, havendo sete exações que oneram nosso comércio exterior, estruturadas com racionalidades próprias, perfazendo um quase ininteligível regime jurídico de tributação, extremamente dispendioso, agravado pela repartição de competências tributárias, em que concorrem os três entes federativos.

A Confederação Nacional da Indústria estimou a carga tributária sobre os serviços em cerca de 58,60% (também considerando IRRF, Cide-remessas, ISSQN, PIS, Cofins, IOF); e levantou também que, entre 2014 e 2019, os serviços representaram até R$ 196 bilhões nas vendas para o exterior, de um total de R$ 4,3 trilhões, e que o valor da participação dos serviços no valor da produção da indústria de transformação saltou de 9,2%, em 2005, para 23,7%, em 2015 [7].

Em face da conjuntura e dos desafios da economia digital, bem como do ônus tributário sobre os serviços importados, diversos países desenvolvem medidas para desonerar a tributação sobre os serviços. Da mesma forma, o governo brasileiro acena para a criação de um "drawback de serviços", no âmbito do qual se aplicaria aos serviços a racionalidade já existente para os bens corpóreos empregados em produtos voltados à exportação.

Em estudo do Ministério da Economia, conduzido pela Subsecretaria de Operações de Comércio Exterior (Suext), com o intuito de se fazer um benchmark sobre a prática internacional relativa à aplicação do drawback de serviços no direito internacional, analisou-se a sua forma de implementação e extensão em dez países do G-20 e na União Europeia [8].

Alguns achados relevantes do estudo apontam que todos os países analisados tributam o consumo sob um modelo IVA, que seria mais compatível com regimes especiais para estímulo à exportação, desonerativos de serviços. Ademais, verificou-se que esses regimes especiais, invariavelmente, são empregados em conjunto com medidas de desoneração dos serviços no âmbito da legislação geral, cujo escopo são os serviços fornecidos ao longo da cadeia produtiva do bem exportado, além de estabelecerem mecanismos de compensação e restituição de tributos eficazes e céleres.

A Índia, um dos países examinados no estudo, é um caso de interessante exemplificação, na medida em que além de estar incluída no grupo dos Brics, passou pela ampla reforma de seu sistema tributário, focada na tributação indireta, em 2017.

O Goods and Services Tax (GST) indiano veio para substituir um sistema tributário extremamente cumulativo, com cerca de quatro tributos divididos entre entes federativos federal e estadual, com sobreposição de legislações, ineficiente e altos custos de conformidade, índices elevados de evasão, diversos incentivos tributários distribuídos de forma assistemática; isso resultava diretamente na falta de competitividade dos produtos exportados pelo país [9].

No bojo dessa ampla reforma indiana, foram estabelecidos regramentos para os regimes aduaneiros especiais, incluindo-se a tributação dos serviços no drawback. A peculiaridade mais notória foi um conceito bastante amplo de serviços para fins de elegibilidade. Empregou-se na legislação de drawback uma definição de "insumos-serviços" que compreenderia aqueles utilizados por um fornecedor em um serviço resultante, aqueles utilizados por um produtor em manufaturas, intermediárias ou finais, serviços em relação à instalação, modernização, renovação ou reparação de fábrica, publicidade ou promoção de vendas, pesquisas de mercado, armazenagem, atividades relacionadas aos negócios, tais como contabilidade, auditoria, financiamento, recrutamento e controle de qualidade, capacitação e treinamento, redes de computadores, transportes, corretagens, dentre outros.

O modelo IVA de tributação indireta permite amplo sistema de deduções, facilita a fiscalizações e trata equitativamente as exportações, sob a perspectiva do comércio exterior, considerando a adoção do princípio do destino, permitindo-se quantificar o encargo tributário a que um bem se submete, para efeitos de reembolso ou compensação.

A despeito de a experiência mundial demonstrar que o modelo IVA ainda comporta altos índices de cumulatividade, onerando as cadeias de comercialização e distribuição, o que se deve, principalmente, à existência de operações ou agentes que não se submetem ao tributo, como no caso de isenções, ou pela dificuldade de dedução de créditos, gerando-se cumulatividade residual, tais efeitos distorcivos são bem menores se comparados às outras estruturas de tributação.

Um modelo de IVA broad based (incluindo serviços e mercadorias), com ampla possibilidade de creditamento seria compatível com o regime de drawback para serviços, na medida em que se permitiria a redução da cumulatividade residual da cadeia de um produto. Nessa configuração da tributação indireta, a possibilidade de técnicas céleres para a recuperação dos referidos créditos gerados ao longo da cadeia, além de créditos acumulados para grandes exportadores, coaduna-se com uma política tributária de estímulo às exportações, com a inclusão dos serviços.

No Brasil, as discussões sobre a tributação dos serviços e a eficiência no comércio exterior devem refletir as tendências econômicas no plano interno e internacional e desafiar as nossas adversidades crônicas, como o fato de ser um sistema de altos custos de administração, com alta carga tributária, a ausência de mecanismos para a eliminação da cumulatividade residual.

A introdução dos serviços no regime aduaneiro especial de drawback é um item de política tributária, especificamente de estímulo às exportações, e é muito relevante, como se verifica na implementação dessa política em diversos países do mundo. Contudo, os países que adotaram esse modelo possuem um ambiente tributário favorável para tanto, especialmente por adotarem um modelo IVA compatível com a tributação de serviços e eliminação da cumulatividade residual das cadeias.

Nesses termos, a adoção do drawback sobre serviços no Brasil poderá enfrentar entraves, tanto no plano normativo, como de sua operacionalização. Entretanto, ainda que essa implantação seja restrita em seu alcance, pode ser um passo em direção ao reconhecimento da relevância dos serviços para a competividade das exportações brasileiras.

Assim retomamos as conclusões do artigo anterior [10] sobre drawback, no sentido de que precisamos de uma reforma tributária que simplifique a tributação da cadeia produtiva e permita que a desoneração das exportações seja mais eficiente, e importante: incluindo os serviços. Não é apenas uma questão de melhoria interna, pois devemos entrar para a OCDE em breve e haverá necessariamente mais abertura comercial no Brasil. Abertura sem competitividade, como já alertamos, pode implicar desindustrialização e redução do nível de emprego e de renda no Brasil.

 


[1] "Regime de drawback em tempos de Covid-19 e guerra na Ucrânia" (disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-17/territorio-aduaneiro-regime-drawback-tempos-covid-19-guerra-ucrania. Acesso em: 9 jun. 2022.).

[2] Sabemos, mais de 20% das exportações contam com o incentivo fiscal de drawback, conforme dados disponíveis em: https://www.gov.br/siscomex/pt-br/informacoes/drawback/paineis-drawback#entendendo. Acesso em: 09 jun. 2022.

[3] A Portaria Secex nº 44/2020 elenca as operações que geralmente podem ser realizadas sob o amparo do regime: transformação, beneficiamento, montagem, renovação ou recondicionamento, acondicionamento ou reacondicionamento, embalagem para transporte.

[4] Nesse sentido, o caput do artigo 383 do Regulamenta Aduaneiro.

[5] Esta segunda forma tem de ser adotada se o contribuinte é majoritariamente exportador ou, por outro motivo, não tem tributos internos a compensar.

[6] Conforme MEIRA, Liziane Angelotti. Regime Aduaneiro Especial de drawback. In: Gisele Barra Bossa. (Org.). Eficiência Probatória e a Atual Jurisprudência do Carf, 2020, p. 724/726.

[7] OTTA, Lu Aiko e Mariana Ribeiro. Tributação de serviços na produção mobiliza a indústria. Jornal Valor Econômico, São Paulo, 22/2/2021.

[8] SALLES, Luiz Eduardo et. al. Análise Da Prática Internacional Relativa À Inserção De Serviços Em Regimes Aduaneiros Especiais De Industrialização Para Exportação. Disponível http://siscomex.gov.br/wp-content/uploads/2021/05/IND_SER.pdf. Acesso: em 16 mai. 2022.

[9] Sobre o tema: GOUVEIA, Carlos Marcelo. A Reforma Da Tributação Sobre O Consumo Na Índia / The India Tax Reform Of Consumption. Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento. v. 7, nº 9 (2019).

[10] "Regime de drawback em tempos de Covid-19 e guerra na Ucrânia" (disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-17/territorio-aduaneiro-regime-drawback-tempos-covid-19-guerra-ucrania. Acesso em: 9 jun. 2022.).

Autores

  • é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • é advogado, graduado pela UFPR, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor conferencista no Curso de Especialização em Direito Tributário do Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários), ex-conselheiro do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e autor, entre outras obras, do livro “Curso de Direito Aduaneiro” (2ª ed., Rio de Janeiro: Forense).

  • é advogada, graduada pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, doutora em Direito Tributário pela USP, pós- doutora pela Universidade Católica de Brasília, pós-doutoranda pela Escola de Políticas Pública e Governo da FGV-EEPG, professora da FGV-EEPG e autora, entre outras obras, de "Princípio do Destino no Comércio Exterior de Serviços - Desafios na Era da Economia Digital" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021).

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