Demissão de servidores por improbidade administrativa à luz da Lei nº 14.230
13 de junho de 2022, 7h09
Assim como acontece com diversos campos das nossas vidas pessoais, os institutos jurídicos também são submetidos a ciclos, apresentando maior ou menor evidência no ordenamento a depender das mudanças no contexto político-social.
Desde o advento da Constituição de 1988, as instituições públicas têm buscado criar e normatizar instrumentos jurídicos para o exercício do controle dos atos estatais. Com efeito, logo no início desta nova fase democrática da história do país, foi editada a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, aclamada por possibilitar a punição administrativa a qualquer ator público — desde mandatários políticos a voluntários do serviço público — que desbordar dos limites da lisura e moralidade administrativas.Todavia, como igualmente acontece em diversas áreas da vida pessoal, durante a execução de planos é usual, e às vezes necessário, modificar alguns pontos, a fim de corrigir falhas, a fim de garantir o alcance do intento inicialmente fixado.
Pois bem, em rápido olhar pela jurisprudência dos tribunais, verifica-se que a aplicação da lei de improbidade administrativa foi crescente entre 1992 e 2021, alcançando em diversas vezes o seu ideal de promover o controle dos atos administrativos e, eventualmente, a punição do seu infrator.
Contudo, os contornos normativos até então instituídos delegavam tanto aos autores das ações quanto aos julgadores alto grau de subjetividade para fins de caracterização das infrações nela estatuídas, situação causadora de forte insegurança jurídica, não desejável em qualquer Estado de Direito. Um mesmo ato administrativo poderia ser validado ou condenado, a depender da avaliação subjetiva do demandante ou do julgador.
Em síntese, a utilização desmedida de procedimentos administrativos e processos judiciais para investigar a lisura de atos administrativos e de seus praticantes, em última análise, causa o engessamento da gestão pública, uma vez que inviabiliza inovações — tão necessárias à iniciativa privada quanto à pública — e retira o dinamismo natural da atividade executiva, ante o receio permanente de punição por parte dos gestores.
Nesse contexto, no ano de 2021 (Lei nº 14.230/2021), foram promovidas diversas alterações na referida lei de improbidade administrativa, a maior parte delas com a intenção de dotar de maior assertividade os textos normativos, para aumentar a objetividade na análise dos casos.
Uma das principais alterações foi a retirada da possibilidade de condenação por improbidade administrativa baseada em culpa — entenda-se, prática decorrente de negligência ou imprudência. Assim somente os atos dolosos — quando o agente tem a vontade consciente dirigida à produção do resultado ilícito — são passíveis de caracterizar improbidade administrativa. Mais que isso, nem mesmo o dolo genérico serve para a caracterização em comento, exigindo a nova lei o dolo específico com finalidade de obter proveito ou benefício indevido.
Todavia, os reflexos de tal modificação impactam não somente nos processos judiciais, mas também nos procedimentos administrativos disciplinares que tenham por objetivo apurar a responsabilidade de servidores públicos por prática de atos de improbidade.
Explicamos: A lei federal nº 8.112/1990, que define o regime jurídico dos servidores públicos civis federais, prevê expressamente como hipótese de punição administrativa por demissão a prática de ato de improbidade administrativa (artigo 132, IV). Tal regramento é espelhado por diversas normas que definem o regime jurídico de servidores públicos estaduais e municipais por todo o país.
Antes das alterações recentemente promovidas na lei de improbidade administrativa, a possibilidade de condenação com base em dolo genérico ou culpa permitia ampla independência entre as instâncias administrativa e civil. Isto é, o mesmo ato poderia ser objeto de investigação administrativa em PAD e apuração judicial em ação de improbidade administrativa, podendo haver aplicação de pena de demissão no âmbito administrativo mesmo antes de qualquer decisão judicial sobre a apuração do mesmo ato.
A jurisprudência do STJ há muito assentava que "Este fundamento (independência das instâncias), inclusive, autoriza a conclusão no sentido de que as penalidades aplicadas em sede de processo administrativo disciplinar e no âmbito da improbidade administrativa, embora possam incidir na restrição de um mesmo direito, são distintas entre si, tendo em vista que se assentam em distintos planos". (STJ. 2ª Turma. REsp 1364075/DF, relator ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 24/11/2015).
Por coincidência, quatro dias antes de publicadas as profundas alterações legislativas incidentes sobre a lei de improbidade administrativa, o STJ, baseado nos inúmeros precedentes firmados ainda sob a égide da legislação até então em vigor sobre o tema, aprovou entendimento no sentido de que "Compete à autoridade administrativa aplicar a servidor público a pena de demissão em razão da prática de improbidade administrativa, independentemente de prévia condenação, por autoridade judicial, à perda da função pública". (Súmula 651 do STJ).
Ora, referida conclusão jurisdicional restou patentemente afetada pela nova conformação normativa aplicada ao tema.
Como, desde a entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, a aplicação de sanção de perda da função pública definida na lei de improbidade administrativa — equivalente à demissão administrativa — demanda comprovação de dolo específico do agente, e a respectiva execução depende de trânsito em julgado da decisão judicial, resta insustentável do ponto de vista lógico-jurídico aplicar penalidade de demissão a servidor público no bojo de procedimento administrativo disciplinar por prática de ato ímprobo administrativo sem prévia decisão judicial sobre o mesmo ato.
Isso porque a exigência da comprovação de dolo específico atrai redobrada necessidade de respeito ao devido processo legal, o qual alberga o exercício intensivo do contraditório e da ampla defesa e a imparcialidade do julgador. Os dois pontos indicados são bem mais frágeis no âmbito administrativo, que não dispõe de diversos instrumentos processuais disponíveis apenas em sede judicial (notadamente os de natureza de instrução probatória), e tem como autoridade julgadora pessoa integrante do próprio ente potencialmente lesado (imparcialidade fortemente mitigada).
Em síntese: se a maior punição extrapenal possível no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro ocorre por caracterização de prática de ato de improbidade administrativa, e esta sanção demanda comprovação de dolo específico (e trânsito em julgado da condenação no que atine à perda da função pública), não pode haver penalização administrativa sem que reste obedecido os mesmos requisitos, o que impede, por consequência, a independência entre as instâncias administrativa e civil para o caso de demissão de servidor público por ato de improbidade administrativa.
Outrossim, tratando-se de matéria sancionatória, há de se alertar para a possibilidade hermenêutica de aplicação retroativa da norma mais benéfica (no caso, a Lei nº 14.230/2021), de modo que os servidores demitidos por ato de improbidade sem respaldo judicial no sentido da perda da função pública podem buscar a via judicial para reivindicar o respectivo retorno ao serviço público.
Relembre-se que o servidor público reintegrado após demissão ilegal ou irregular, assim declarada em âmbito judicial, tem direito a todos os benefícios e vantagens aplicáveis aos ocupantes do mesmo cargo que ocupava antes do retorno ao serviço público, fator que intensifica o dever de cautela da Administração Pública na condução dos procedimentos disciplinares para apuração de prática de ato de improbidade por seus servidores.
Certamente os tribunais pátrios serão provocados para deliberação jurisdicional sobre os reflexos da alteração da lei de improbidade sobre os mais diversos pontos do direito, mostrando-se provável haver mudança sensível no entendimento até agora aplicado no que tange à demissão de servidores públicos por atos de improbidade administrativa.
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