Justiça Tributária

Novas propostas para o ICMS dos combustíveis e o federalismo ameaçado

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

13 de junho de 2022, 8h03

Um ditado muito antigo já dizia que a cada dia com sua agonia, o que cabe plenamente para a pauta tributária brasileira atual. Retornou à cena o debate sobre o ICMS de 17% dos combustíveis (Projeto de Lei Complementar — PLP 18/22) já aprovado pela Câmara e pendente de apreciação no Senado e o ICMS de 0% proposto pelo presidente através da PEC 16/22, já denominada de PEC do diesel, cuja tramitação se inicia na Câmara.

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Para melhor compreender esse barulho de informações, é necessário analisar separadamente as duas propostas normativas.

O PLP 18/22 considera como bens essenciais "os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo", fazendo com que passem a ter a alíquota básica de ICMS, que é de 17%.

A lógica do PLP está ancorada na decisão do STF que determinou a regra da essencialidade e da seletividade do ICMS sobre a energia elétrica, entendendo que suas alíquotas devem ser as básicas, e não as majoradas (RE 714.139, Tema 745 da Repercussão Geral). Simplificando: o que é essencial não pode ter alíquotas majoradas, o que está absolutamente correto. Essa decisão do STF teve modulação de seus efeitos para o exercício financeiro de 2024 a fim de que as finanças estaduais não fossem imediatamente atingidas.

O PLP 18/22 centra sua atenção em um aspecto importantíssimo, que é o da excessiva tributação dos estados sobre essas atividades que são essenciais para a economia do país. Dados coletados pela imprensa apontam incontáveis distorções, como o estado do Rio de Janeiro cobrando 34% de ICMS sobre a gasolina e 32% sobre o etanol e a energia residencial, o Maranhão cobrando 18,5% sobre o diesel, Alagoas exigindo 18% sobre o gás de cozinha, e Rondônia tributando em 35% as telecomunicações. As causas dessa excessiva tributação sobre essas atividades são relevantes, mas não cabem neste texto.

O PLP propõe que as perdas de arrecadação dos estados serão deduzidas da dívida destes para com a União (artigo 3º), desde que a perda de arrecadação seja superior a 5% — ou seja, troca-se receita por abatimento de dívida. Os estados ainda terão que repassar aos municípios sua parcela na correspondente quota-parte do ICMS (artigo 4º). O PLP ainda afasta regras da Lei de Responsabilidade Fiscal que incidiriam sobre essa operação (artigo 7º), dentre outras normas de controle, o que não está bem detalhado e pode gerar problemas sérios aos estados. A questão das vinculações aos gastos com ensino e saúde, dentre outras, também não estão adequadamente descritas, o que deve ser observado.

Não há dúvidas que o impacto fiscal nos estados será gigantesco, pois trocar arrecadação por pagamento de dívida não gera necessariamente dinheiro no caixa para custear educação, saúde e segurança pública, três das principais políticas públicas a cargo desses entes federados. Além do mais, grande parte da dívida interfederativa encontra-se judicializada, motivo pelo qual sequer se conhece seu efetivo montante (nesse sentido, ver o livro de Rafael Fonseca sobre o assunto).

Já a PEC 16/22 é completamente fora da caixinha, pois busca modificar a Constituição lançando uma espécie de conclamação aos estados, pela qual receberão compensação em dinheiro da União, se, entre 1º de julho e 31 de dezembro, adotarem simultaneamente: (1) alíquota zero (0%) para o ICMS sobre óleo diesel e gás, e (2) 12% de ICMS sobre etanol. Claro que todas as normas que se referem ao controle de despesas e à compensação de perdas encontram-se afastadas pelo texto da PEC 16/22, o que igualmente deve ser objeto de redobrada análise. A forma como essa PEC está descrita me faz lembrar aqueles cartazes de filmes de faroeste, propondo recompensas a quem levasse o bandido ao xerife, vivo ou morto…

Essa PEC é simplesmente inexequível, tal como proposta, pois: (1) para reduzir a alíquota do ICMS, uma das quais seria zero, os estados terão que aprovar leis em menos de 20 dias, o que é sabidamente impossível, a despeito do afastamento da exigência de deliberação do Confaz; (2) o montante de R$ 29,6 bilhões é insuficiente para toda a compensação pretendida, caso todos os estados aceitem a proposta, sendo necessário ao menos R$ 46,4 bilhões, segundo alerta o senador Fernando Bezerra, líder informal do governo no Senado, o que gerará uma corrida ao fundo do poço a fim de assegurar a parte de cada qual no montante disponibilizado — sendo insuficiente, o que será feito? Nova PEC?; (3) tudo isso para vigorar com data marcada: até 31/12/2022; depois virá o dilúvio. Essa PEC é o último prego no caixão do federalismo brasileiro atual, pois institucionaliza o estado de beligerância na federação, o de todos contra todos. Hobbes se revira no caixão e Maquiavel aplaude.

Basta de improvisos. Temos que organizar o país em bases planejadas — a economia não cresce sem planejamento e com litígios entre União e todos os estados. Por qual motivo não foi levada a sério uma proposta de reforma tributária e financeira factível e concreta ao longo desses três anos e meio? E tudo isso para baixar o preço dos combustíveis, com inflação de 1% ao mês (segundo índices oficiais), e os olhos voltados para as pesquisas eleitorais, que apontam enorme rejeição ao atual governo, que busca reeleição. Passados uns meses o efeito econômico será nulo, mas aí já terão passados as eleições.

Quem viveu durante o governo Sarney lembrará do Plano Cruzado, que artificialmente sustentou a economia, mas se esfarelou logo após as eleições, embora tenha permitido a maciça eleição de políticos da base então governista.

Estamos repetindo o passado, sendo que desta vez vemos o concreto desmantelamento da federação brasileira e o naufrágio de qualquer teoria da Constituição, transformada em instrumento de pressão da União sobre os estados. Que triste período estamos vivendo.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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