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Opinião: Precedente desfavorável não retroage

11 de junho de 2022, 13h11

Por Thaila Fernandes da Silva, João Guilherme Gualberto Torres

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Tomemos "precedente", em seu sentido amplo, como a decisão judicial com aptidão para influenciar o julgamento de caso posterior [1]; e, como exemplo, o julgamento do HC 176.473/RR, relator ministro Alexandre de Moraes (DJe 9/9/2020), em que a Suprema Corte entendeu, por maioria, que o acórdão, mesmo que confirmatório da sentença condenatória de primeiro grau, constitui marco interruptivo da prescrição, nos termos do artigo 117, IV, do Código Penal.

Trata-se de fixação de entendimento, diante da existência de posicionamentos divergentes na jurisprudência pátria, e mesmo entre as turmas do STF, o que foi pontuado pelo próprio relator na decisão monocrática em que submeteu o julgamento a Plenário.

Extrai-se que, se até então não estava pacificada a matéria, o STF uniformizou as compreensões, atribuindo sentido ao enunciado prescritivo (CP, artigo 117, IV), a fim de que seja observado, pela própria Corte e pelos demais juízos e tribunais (CPC, artigo 926).

O que significa dizer, dentre as soluções interpretativas existentes, a partir deste julgamento (ruptura paradigmática) o Supremo cria uma norma jurídica segundo a qual o acórdão confirmatório da condenação é marco interruptivo da prescrição e, portanto, uma construção normativa desfavorável à pessoa acusada em relação à outra interpretação mais favorável que não admite o acórdão confirmatório da condenação como marco interruptivo da prescrição.

Estabelecido este precedente, com aptidão para influenciar no julgamento de casos futuros; e, sendo inegável, que a norma construída, por um lado, amplia o poder punitivo estatal, e, por outro lado, reduz o espaço de liberdade da pessoa acusada, deve a norma, submeter-se ao princípio da irretroatividade (Constituição da República, artigo º5, XL).

Ocorre que, o próprio STF "possui jurisprudência no sentido de que os preceitos constitucionais que regem a aplicação retroativa da norma penal benéfica e a irretroatividade da lei mais grave ao acusado (artigo 5º, XL, CF) não são aplicáveis aos precedentes jurisprudenciais, pois tais regras referem-se às leis penais" (ARE nº 1.316.809/ES, relator ministro Ricardo Lewandowski, DJe 2/6/2021)

Ora, a diferença apresentada entre lei penal e precedentes jurisprudenciais, a fim de obstar a aplicação do preceito constitucional a estes últimos não resiste a uma análise teórica, refletindo, tão somente, a refração do posicionamento da Corte à efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Com efeito, trata-se de (ir) retroatividade da norma penal, e não da lei penal ou de precedentes jurisprudenciais. Por aqui, desde logo, abandona-se a suposta dicotomia ou oposição que se intenta impor entre uma e outros para sonegar a aplicação do princípio construído a partir do artigo 5º, XL, da Constituição Federal.

A norma é sempre construção de sentido, portanto produto da interpretação. E, sendo o precedente jurisprudencial, interpretação dos enunciados prescritivos, a que comumente se cognomina "lei penal", de forma indistinta, forçoso concluir que precedente, na acepção restrita, é norma, posto que atribui sentido ao texto legal, à lei penal. A distinção entre texto e norma não pode ser subvertida tão somente para deixar de aplicar as garantias penais.

Friedrich Müller para quem "a norma jurídica não existe ante causum: o caso da decisão é coconstitutivo. O texto da norma no código legal é (apenas) um dado de entrada do processo de trabalho chamado 'concretização'. A norma jurídica criada no caso está estruturada segundo um 'programa da norma' e 'âmbito da norma'; ela é, portanto, um conceito composto que torna o problema tradicionalmente irresolvido de 'ser e dever ser' operacional e trabalhável. Com isso os dualismos irrealistas do passado do direito, tais como 'norma/caso', 'direito/realidade' podem ser aposentados assim como a ilusão da ‘aplicação’ do direito enquanto subsunção puramente lógica ou silogismo ou enquanto a construção linguisticamente não realizável de um 'limite do teor literal' definível, coisificado na linguagem. Todos esses dualismos são representações centrais fracassadas do positivismo histórico" [2].

A partir de Müller, sobretudo, texto e norma são ontologicamente distintos, porém interdependentes, na medida em que a norma é sempre o sentido atribuído ao texto. Logo, o texto não subsiste sem a norma, isto é, a atribuição de sentido, que se faz somente na concretude do caso.

Com Lenio Streck, "o texto não existe em uma espécie de 'textitude' metafísica; pois é inseparável de seu sentido; textos dizem sempre a respeito de algo da facticidade; interpretar um texto é aplicá-lo; daí a impossibilidade de cindir interpretação de aplicação. Salta-se do fundamentar para o compreender (e, portanto, aplicar)" [3].

A atribuição de sentido ao texto normativo é, indubitavelmente, criação de norma jurídica, na aplicação-interpretação do "Código Penal", de forma que a interpretação e, logo, a norma mais gravosa não pode operar efeitos retroativos, retroagir para alcançar fatos pretéritos, sob pena de indevida mácula à cláusula pétrea do artigo 5º, XL, da Constituição Federal.

Nas palavras de Juarez Tavares, "a proibição de retroatividade se estende também à variação da jurisprudência, já consolidada pelos tribunais em súmulas ou decisões repetidas, quando essa implique não apenas uma alteração de concepção jurídica, senão uma forma de integração legislativa. Haverá integração legal e não apenas diversidade de interpretação todas as vezes em que a decisão judicial acrescentar ao enunciado legal outro elemento nele não previsto e nem autorizado pela própria lei mediante o recurso da interpretação analógica. Com a inserção dessa jurisprudência em súmulas, principalmente vinculantes, concretiza-se nos sujeitos a convicção acerca do que seja lícito ou ilícito. Quando ocorre uma variação jurisprudencial, de tal sorte que se modifique o próprio sentido da proibição ou determinação, opera-se nesses sujeitos também uma alteração quanto à orientação que devam seguir na vida social. A retroatividade dessa nova interpretação integradora implica uma verdadeira quebra de confiança na ordem jurídica, o que afeta diretamente sua liberdade de escolha e orientação. Está, claro, então, que essa alteração não pode retroagir" [4].

Com efeito, ao julgar o HC 176.473/RR, o Supremo Tribunal Federal criou norma jurídica, atribuindo sentido ao preceito legal do artigo 117, IV, do Código Penal, para afirmar que o acórdão confirmatório da condenação não serve de marco interruptivo.

Logo, somente após essa decisão, foi atribuído novo sentido ao texto (ou, como consta no próprio acórdão, firmou "tese"), tendo em vista que, consoante se afere do voto do ministro Alexandre de Moraes, havia, ao menos, divergência jurisprudencial, não se podendo, nem mesmo, falar em ratificação de jurisprudência consolidada.

Somente a partir desse julgamento deve-se ler que o acórdão confirmatório interrompe a prescrição e, referindo-se à punibilidade do agente e sendo desfavorável a este, impossível fazer retroagir referida norma penal à data dos fatos.

Do contrário, ter-se-ia, patente quebra da confiança, surpreendendo, a não mais poder, o modo de agir da pessoa acusada, por fatos aos quais não pode voltar para fazer de modo diverso e quando lhe era dado nutrir sincera expectativa de que o acórdão confirmatório não interromperia a prescrição.

Ao modificar, radicalmente, ou estabelecer concepção jurídica, deve-se preservar a cláusula constitucional da irretroatividade da norma penal mais gravosa. Por outras palavras, a retroatividade do sentido atribuído ao texto, da norma penal, somente ocorre quando em benefício da pessoa acusada, mesmo que se trate de "compreensão da lei", não podendo alcançar fatos pretéritos, sob pena de  repita-se  quebra de confiança e de ruína do próprio Estado democrático de Direito.

Sem a jurisprudência, a lei torna-se inaplicável, na medida em que somente pela produção jurisprudencial constrói-se o sentido legítimo do preceito legal, e por meio do que podem os indivíduos tomar conhecimento da norma jurídica e pautar as respectivas condutas com base nesse entendimento.

Alterada, em todo caso, a interpretação  e daí porquanto a volatilidade da jurisprudência não é adequada ao Estado democrático de Direito  não pode alcançar fatos anteriores à vigência do novel entendimento se desfavoráveis. A lei (texto) não é nada sem a norma.

Importante pontuar que, no julgamento do HC 176.473/RR, o Supremo não modulou os efeitos da decisão, o que sequer seria necessário, uma vez que a modulação é condicionada previamente pela norma constitucional [5].

Hermes Zaneti Jr. pontifica que "nas hipóteses insuprimíveis em que a Corte definir conceitos jurídicos indeterminados, normas penais em branco ou qualquer conteúdo controverso da norma penal para gerar efeitos negativos em face do acusado, estes efeitos devem ser limitados, no campo dos precedentes normativos formalmente vinculantes, aos fatos futuros, ou seja, devem valer como razões de persuasão, mas não como precedentes propriamente dito" [6].

A seu turno, Mariângela Gama de Magalhães Gomes [7], salienta que "se a proibição da irretroatividade se fundamenta na proteção da confiança dos cidadãos de que não vão ser surpreendidos por atuações arbitrárias, não previstas nem previsíveis por parte dos poderes estatais, para o indivíduo é psicologicamente indiferente que seja punido de forma irretroativa imprevista ou imprevisível por causa de uma lei editada pelo Poder Legislativo inexistente no momento da infração, ou que se chegue a esse resultado através de uma nova interpretação judicial, sobre uma lei já existente e impossível de ser conhecida antes da sua declaração". E prossegue: "Uma vez que a lei e sua interpretação possuem vínculo necessário de complementação, a realidade jurídica do princípio da legalidade somente será entendida quando, para determinado tipo penal, vigore a mesma interpretação que lhe era dada à época do cometimento do fato".

Danyelle Galvão conclui que "No tocante às alterações de Direito material gravosas ao acusado, a melhor solução é a adotada pela doutrina italiana e argentina, qual seja, de irretroatividade do precedente judicial (ou do entendimento mesmo que não vinculante) em desfavor do acusado" [8].

Odone Sanguiné [9] caracteriza essa atual posição jurisprudencial predominante na Suprema Corte, aqui combatida, como posição "ortodoxa", que nega a aplicação da garantia da irretroatividade às variações da jurisprudência penal (maléfica). Posição essa que se nega a enxergar, na jurisprudência, algo além da interpretação da lei, o que reduz a complexidade do papel criador que pode desempenhar. Diz o autor: "a posição mais correta consiste em solucionar a questão desde a perspectiva constitucional (solução objetiva) estendendo a proibição de retroatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu" [10]. Trata-se de se amparar, entre outros, na segurança jurídica, como fundamento do princípio da irretroatividade.

Assim, portanto, a jurisprudência do STF encontra-se em manifesto equívoco ao ignorar a incidência, sobre os precedentes judiciais, do princípio da irretroatividade da norma penal mais gravosa, urgindo seja o tema trazido à baila, com escopo de buscar a consonância constitucional.

A despeito da recusa em observar o princípio da irretroatividade penal quando da aplicação dos precedentes judiciais, a recente decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes no AgRg no HC nº 192.757/RR reconheceu a vedação da retroação diante da inauguração de entendimento jurisprudencial mais gravoso à pessoa acusada [11].

A decisão, ainda que isolada e incipientemente fundamentada, deve ser enaltecida para que, repercutindo na própria Corte, provoque o constrangimento constitucional e mudança de paradigma em salvaguarda de direitos e garantias fundamentais da pessoa acusada.


[1] Nesse sentido, cf. GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2022. p. 45. PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 143. MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 79.

[2] MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 11.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 421.

[4] TAVARES, Juarez. Fundamentos da teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 75.

[5] Estes autores já se manifestaram nesse sentido em SILVA, Thaila Fernandes da; TORRES, João Guilherme Gualberto. Precisamos falar sobre precedentes em matéria penal. Boletim IBCCRIM, ano 29, n. 349, dez. 2021. pp. 18-19.

[6] ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. pp. 410-419 passim.

[7] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008. p. 146.

[8] GALVÃO, Danyelle da Silva. Precedentes judiciais no processo penal. Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. Orientador: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. São Paulo, 2019. p. 196.

[9] SANGUINÉ, Odone. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 31, jul./set. 2000.

[10] SANGUINÉ, Odone. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 31, jul./set. 2000.

[11] Reconhecemos que em outras ocasiões e matérias há decisões que afirmaram o princípio da irretroatividade. Cf. AgR no ARE 652.469/PA, relator ministro Celso de Mello; e RE 979.962/RS, relator ministro Roberto Barroso.