Tribuna da Defensoria

Do necessário ingresso de membros da Defensoria Pública nos tribunais

Autores

  • Gustavo Dayrell

    é defensor público em Minas Gerais membro eleito do Conselho Superior da Defensoria Pública biênio 2022-2024 ex-assessor judiciário do TJ-MG e ex-procurador municipal de Sete Lagoas (MG).

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

7 de junho de 2022, 8h01

A nomeação da ex-defensora pública Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA), assegurando a diversidade na composição da corte, faz reacender o debate acerca da necessidade de efetiva e real implementação da "oxigenação" dos tribunais brasileiros.

No Brasil, o artigo 94 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) determina que a composição dos órgãos de segunda instância da jurisdição terá um quinto de seus membros recrutados dentre advogados, com mais de dez anos de efetivo exercício da profissão, e membros do Ministério Público, igualmente com mais de dez anos de efetivo exercício da função.

Por oportuno, note-se que para que advogados e promotores sejam definitivamente indicados pelo chefe do Poder Executivo para ocuparem uma vaga no assento dos magistrados, é preciso que os candidatos tenham se inscrito no respectivo órgão representante da classe ou da função. Tais órgãos, elaborando uma lista sêxtupla, remetem-na ao tribunal cuja vaga está aberta, para que este elimine três dos nomes indicados e envie ao Poder Executivo lista tríplice, da qual sairá um novo magistrado.

O artigo 104 da CF/88, por sua vez, prescreve que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) compõe-se de, no mínimo, trinta e três ministros, nomeados pelo presidente da República, dispondo, ainda, que um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, estadual, do Distrito Federal e Territórios, alternadamente, indicados na forma do artigo 94.

Por força de tais dispositivos, que instituem a regra "quinto constitucional", possibilita-se que os Tribunais de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e o STJ sejam constantemente renovados, permitindo que membros do Ministério Público e da advocacia integrem os quadros da magistratura. A finalidade da norma constitucional é viabilizar que profissionais de outras áreas de atuação também tenham acesso à função julgadora e utilizem suas experiências e vivência profissionais para revitalizar a Justiça e minimizar a rigidez de alguns tribunais.

A despeito do intuito manifestado pelo legislador e do reconhecimento da própria simetria existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público, impõe-se reconhecer que a norma constitucional acaba por restringir a viabilidade de que membros da Defensoria Pública possam vir a compor os tribunais acima indicados; o que esvazia, de forma significativa, o verdadeiro sentido encampado pelo instituto do quinto constitucional, o qual tem por finalidade a "oxigenação" dos tribunais.

Com efeito, necessário faz-se mencionar que com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2021 (BRASIL. STF. Recurso Extraordinário — RE — nº 1240999/SP, relator: min. Alexandre de Moraes. Julgamento: 4/11/2021) — que assentou o entendimento de que a Defensoria Pública é uma instituição autônoma e com regime próprio — concluindo que a exigência de inscrição dos defensores públicos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é inconstitucional, resta dificultado o acesso da Defensoria Pública à composição dos tribunais por meio da regra do quinto constitucional [1].

Sobre o tema, asseveram Paiva e Fensterseifer (2019, p. 91) que o fato de os membros da Defensoria Pública não integrarem os tribunais estaduais e federais por conta da regra do quinto constitucional implica:

"(…), sub-representação dos interesses (e defesa dos direitos) dos indivíduos e grupos sociais necessitados nas nossas Cortes de Justiça, perpetuando posição jurisprudencial (é fácil perceber isso, por exemplo, no âmbito penal) que lhes é desfavorável em muitos casos, haja vista que, por exemplo, o Ministério Público tem seu lugar reservado no âmbito do quinto constitucional. Ou seja, o discurso institucional do MP penetra nos Tribunais de forma muito mais efetiva, desequilibrando a balança da Justiça na relação entre acusação e defesa."

Para bem aquilatar a extensão do problema, destaque-se que raramente é constatada nos Tribunais de Justiça dos estados a presença de membros que tenham se dedicado à atuação defensorial durante a carreira. Do mesmo modo, avaliando o currículo dos ministros que atualmente integram o STF (neste caso, é o presidente da República quem indica, com liberdade, os onze integrantes da Corte), é possível observar que mais da metade destes ocuparam cargos políticos no Executivo. Os demais, iniciaram suas carreiras no próprio Judiciário, no Ministério Público ou em grandes Escritórios de advocacia privada.

Escrevendo sobre o "Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal", alerta Campos Mello (2015, p. 290) para o fato de que a vida pública pregressa do integrante da corte, assim, como suas convicções pessoais, tende a influenciar em seu processo decisório. Sob essa ótica, a título ilustrativo, assevera a autora, que no caso daqueles que atuaram por décadas como órgão de acusação na Procuradoria da República (órgão do máximo do Ministério Público Federal), "a experiência de anos como órgão de acusação pode levar um magistrado a ter inclinações mais condenatórias ou mais restritivas dos direitos dos acusados" (2015, p. 295)

Nesse sentido, válido pontuar que, no início do corrente ano, o presidente dos EUA, Joe Biden, indicou a juíza Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte daquele país, tendo sido confirmada a sua nomeação pelo Senado norte-americano. Como defensora pública na justiça federal, no Distrito de Columbia, Ketanji Jackson se dedicou, por dois anos e meio, à defesa de "réus indigentes" e representou diversos prisioneiros detidos em Guantánamo Bay, prisão na base naval dos EUA em Cuba. Além de visar a diversidade judicial, a nomeação da juíza – primeira mulher negra no Tribunal também objetiva assegurar a efetivação de direitos humanos, bem como conter a exacerbação do controle penal contra negros e pardos naquele País, partindo da premissa de que os defensores públicos são a última salvaguarda contra o exagero governamental e as violações constitucionais. Nessa perspectiva, é que se sustenta que "a bench with more public defenders could finally reshuffle the prestige hierarchy—and make the criminal legal system a little fairer in the process" (Almanza, 2022).

Deveras, segundo destaca a doutrina e imprensa norte-americanas, a formação profissional de juíza Ketanji Jackson, em especial sua experiência como ex-defensora pública, pode contribuir, de forma significativa, para o senso de justiça das decisões tomadas pelo tribunal, além de implicar redução de condenações desproporcionais e o encarceramento em massa, dado que além de serem mais sensíveis e dotados de riqueza de experiências, ex-defensores geralmente encontram-se mais propensos a avaliar as condições estruturais e sociais que levam o indíviduo a praticar o crime. Nesse sentido, afirmam Allison P. Harris e Maya Sen, do jornal "The Washington Post" (2022) que:

"Because of this, former public defenders bring a wealth of firsthand experience that advocates of criminal justice reform believe could help shift sentencing patterns. In other words, a hopeful view among some of these advocates is that appointing former public defenders will help scale back a criminal justice system that many think is unduly harsh and reliant on incarceration."

Com isso, com a finalidade de assegurar uma visão diversa e plural também por parte dos tribunais brasileiros, além de imprimir um olhar mais sensato e sensível por parte de seus julgadores, é que restou apresentada Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de número 488/2010, prevendo a modificação do artigo 94 da CF/88, notadamente com o objetivo incluir a carreira dos defensores públicos no quinto constitucional. Contudo, a citada PEC hoje encontra-se apensada à PEC nº 128/2007, a qual aguarda exame da matéria por parte de comissão especial do Congresso Nacional.

Essa modificação tendente a propiciar vaga especifica para a Defensoria Pública na composição do quinto constitucional representaria, sem dúvida, significativos benefícios para a necessária oxigenação e democratização do Poder Judiciário brasileiro, notadamente em virtude da constatação de que figura como legítima instituição canalizadora da vontade de milhares de pessoas desassistidas e vulneráveis. Válido registrar, ademais, que embora tenha pouco tempo de existência, a instituição é considerada pela sociedade brasileira como a mais importante do Brasil na garantia de direitos fundamentais, segundo atesta levantamento recente (DEFENSORIA Pública…, 2019).

A medida, por certo, objetiva agasalhar — também na esfera do Poder Judiciário — o pluralismo social e político, viabilizando que o processo constitucional se abra mais à sociedade, notadamente aos legítimos representantes de grupos marginalizados e fragilizados da sociedade.

Seguindo essa linha de reflexão, apresenta-se, como sugestão para incremento da democratização do judiciário brasileiro, a imediata alteração da norma constitucional referente ao quinto constitucional, bem como o fomento de nomeação de membro da Defensoria Pública para ocupar vaga do STF (considerando a liberdade concedida ao Presidente da República para tal fim), visto que, no Brasil, à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos da América, os ministros do STF são livremente indicados e nomeados pelo presidente da República, após sabatina e aprovação pelo Senado Federal, respeitadas as exigências constitucionais (segundo dispõe o artigo 101, CF/88, deve o candidato nomeado tratar-se de brasileiro nato, com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada).

Nessa toada, durante palestra ministrada em evento realizado pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, sustentou o doutrinador Pedro Lenza [2] a necessidade de a Defensoria Pública integrar o quinto constitucional, como forma de possibilitar a verdadeira oxigenação dos tribunais. Durante a mesma oportunidade, o palestrante Geoff Burkhart, defensor público norte-americano, destacou a importância de representatividade da Defensoria Pública na Suprema Corte, a qual sempre foi integrada por promotores e advogados de grandes escritórios corporativos. "Agora temos alguém que, de fato, defende seus clientes nos momentos mais difíceis de suas vidas, que sabe o que significa defender uma pessoa que nunca teve voz", ressaltou o defensor [3].

Ora, é inegável que o ingresso de defensores — que asseguram um olhar atento e humanizado às pessoas e grupos vulnerabilizados — nos tribunais brasileiros constitui medida pertinente para possibilitar uma roupagem mais democrática, diversa e sensata para as decisões tomadas pelos tribunais brasileiros, além de fortalecer uma narrativa de transformações sociais positivas via atuação dos órgãos que compõem o Judiciário.

 


REFERÊNCIAS:

ALMANZA, Emily Galvin. One Public Defender Supreme Court Justice Is Not Enough. Balls and strikes, 21 mar. 2022. Disponível em: https://ballsandstrikes.org/legal-culture/ketanji-brown-jackson-public-defender/. Acesso em: 30 maio 2022.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 maio 2022.

BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 128/2007. Disponível em:  https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=359981. Acesso em: 30 maio 2022.

BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal, dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Diário Oficial da União, 13 jan. 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm. Acesso em: 30 maio 2022.

CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Comportamento ideológico e estratégico no Supremo Tribunal Federal. In: SARMENTO, Daniel (org.). Jurisdição política e constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 273-310

DEFENSORIA Pública é a instituição mais bem avaliada pela população. Defensoria Pública do estado de Minas Gerais, 3 dez. 2019. Disponível em: https://www.defensoria.mg.def.br/destaque/defensoria-publica-e-a-instituicao-mais-bem-avaliada-pela-populacao/. Acesso em: 30 maio 2022.

HARRIS, Allison P.; SEN, Maya Sen. Appointing public defenders as judges affects their decisions. Our study shows how. The Washington Post., 17 mar. 2022. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/outlook/2022/03/17/jackson-public-defender-courts/. Acesso em: 30 maio 2022.

PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à Lei Nacional da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2019.

 


[1] A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) interpôs Embargos Declaratórios no RE nº 1.240.999 requerendo que o Supremo Tribunal Federal saneasse eventual omissão, "podendo, inclusive, estabelecer regra de transição, reaguardando vagas para defensores públicos no quadro reservado à OAB, até que o Poder Legislativo positive a questão de forma expressa".

Autores

  • é defensor público em Minas Gerais, membro eleito do Conselho Superior da Defensoria Pública, biênio 2022-2024, ex-assessor judiciário do TJ-MG e ex-procurador municipal de Sete Lagoas (MG).

  • é doutora em Direito Público, mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG, professora de graduação do curso de Direito e defensora pública do estado de Minas Gerais.

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